17 de fev. de 2007

As Comunidades Eclesiais de Base: Vida e Esperança


Houve um tempo em que não havia muita necessidade de explicar o significado da sigla "CEBs". Fazia parte do imaginário e do vocabulário de muitos cristãos católicos, sobretudo no Brasil. Suscitava entusiasmos e esperanças, mobilizava desejos e energias, assim como perplexidades e interrogações.


Mas hoje, passada a dureza do período da ditadura militar e do processo de democratização; passados sobretudo os anos imediatamente seguintes ao Concílio Vaticano II, quando na América Latina as conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979) configuravam um novo rosto para a Igreja, é necessário fazer memória. Pois foi naquela época que brotaram, em todo o país, pequenas comunidades ligadas principalmente à Igreja católica. Querendo ou não, contribuíram de diferentes maneiras para o processo de democratização.


Eram grupos de pessoas que, morando no mesmo bairro ou nos mesmos povoados, se encontravam para refletir e transformar a realidade à luz da Palavra de Deus e das motivações religiosas. Daí o nome de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Começavam também a reivindicar pequenas melhorias nos bairros, mas, ao mesmo tempo, iniciavam uma caminhada para tomar consciência da situação social e política. Queriam a transformação da sociedade. Inspiradas no método Paulo Freire de alfabetização de adultos, executavam uma metodologia que levasse da conscientização à ação.


O prof. Faustino Luiz Couto Teixeira, especialista no assunto, escreve que "nos anos 70 e início dos 80, falava-se muito no impacto da atuação das CEBs no campo sócio-político, enquanto geradoras de uma nova consciência das camadas populares e fator de grande importância no processo de libertação dos pobres". Em outras palavras, essas pequenas comunidades cristãs, de 20 a 100 membros, eram consideradas um novo sujeito popular capaz de reverter a situação de pobreza, apontando para uma nova sociedade mais justa e fraterna.


Depois veio a abertura democrática e o fim da ditadura, houve a crise no Leste europeu e a queda do modelo socialista burocrático; houve a afirmação do capitalismo de corte neoliberal e também mais exclusão e pobreza. Foi na segunda metade dos anos 80 e nos anos 90 que as CEBs tiveram que repensar sua identidade.


Mais especificamente no interior da Igreja Católica, as CEBs queriam rever uma estrutura muito piramidal, de cima para baixo. Incentivadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), vislumbraram uma maior participação dos leigos e um processo mais participativo de tomada de decisões. Ao redor da imagem de "povo de Deus", que foi caracterizada pelo Concílio, as comunidades sentiram-se parte ativa na construção do Reino de Deus.


Mesmo que se tenha certa dificuldade em encontrar traços homogêneos e constantes em todas as CEBs, há alguns elementos que, em geral, podem ser detectados.


O primeiro é a territorialidade, isto é, as pessoas de uma comunidade estão situadas num território geográfico específico. É muito fácil que se conheçam e que estabeleçam relações e contatos. "Base" significa propriamente essa concentração de pessoas num povoado ou num bairro. As experiências históricas mostram que, muitas vezes, foram essas comunidades que ajudaram a reivindicar serviços básicos, como água, luz e esgoto, e a reorganizar a vida do bairro.


O segundo é a leitura e a reflexão sobre a Palavra de Deus que é outro traço característico das CEBs. Muitas comunidades começaram como reuniões bíblicas que iluminavam a vida das pessoas. À medida que a vida comunitária se organizava, foi introduzido, também, o culto dominical ou a celebração da Eucaristia.


O terceiro é a participação e a discussão dos problemas em forma de assembléia que caracterizou muitas Comunidades de Base. A metodologia participativa incluiu a colaboração de todos na discussão, na solução e no encaminhamento concreto dos problemas. Se, por exemplo, o tema é o desemprego, há no final um compromisso concreto que é assumido por todos: preparam-se cestas com alimentos básicos que são distribuídas aos desempregados.


O quarto, que foi desencadeado por essa configuração mesma, é o crescimento e a emergência de ministérios leigos que foram se multiplicando a partir das exigências da comunidade: há ministros da Palavra, ministros da Eucaristia, ministros da pastoral da moradia, do trabalho, do menor. Muitos serviços englobam mulheres e homens em clubes e pequenas organizações: hortas comunitárias, clubes de mães, alfabetização de adultos e, muitas vezes, grupos de sustentação dos movimentos populares.


Esses serviços destacam o compromisso das CEBs com os mais pobres e a relação conseqüente entre fé professada e vida concreta. É propriamente o compromisso com as camadas mais desfavorecidas da população que tornou as CEBs profundamente ativas no campo social. O pobre não é visto como problema, mas como solução no processo de construir uma nova sociedade.


Mais vivas do que nunca, as CEBs têm assento e coordenação nacional na CNBB e continuam preparando e fazendo com enorme entusiasmo suas reuniões ampliadas e seus encontros intereclesiais.


As CEBs da diocese de Itabira nos oferecem seus dez mandamentos como subsídio para nossa própria vida e para que nos sintamos sempre mais unidos a esse novo modo de ser da Igreja que elas representam:

01 - Amarás ao Deus da vida com único e libertador.

02 - Construirás permanentemente a sociedade igualitária como única forma de gerar vida e liberdade para todos.

03 - Cultivarás de geração em geração, a certeza de que é a partir dos pobres que se resgata a vida em abundância para todos.

04 - Formarás comunidades à luz da Palavra de Deus, fiéis à oração, à prática da partilha e à solidariedade.

05 - Respeitarás a individualidade de cada pessoa, seu credo, sua história e sua cultura.

06 - Denunciarás todas as formas de exclusão, injustiça e agressão à vida.

07 - Respeitarás a natureza como primeira linguagem da revelação de Deus.

08 - Construirás uma relação de igualdade entre homens e mulheres, rejeitando qualquer tido de discriminação.

09 - Cultivarás a memória dos mártires que tombaram na caminhada de luta pela libertação.

10 - Continuarás a formação do Povo de Deus, iniciada pelo pai Abraão, assumida pelos profetas, por Jesus Cristo e seus seguidores.


Maria Clara L. Bingemer é Teóloga.
Escrito em 2003.

16 de fev. de 2007

E a libertação continua...


Não são poucos os que perguntam: a quantas anda a teologia da libertação? Não obstante o persistente controle por parte das autoridades doutrinárias do Vaticano, ela continua viva nas Igrejas que tomaram a sério a opção pelo pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da libertação. Marx não foi nem é pai e padrinho deste tipo de teologia. Ela nasceu como resposta ao grito dos oprimidos e dos estertores da Terra. Ao agravar-se a injustiça social e ecológica, esse grito se transformou hoje em clamor. Daí a permanente atualidade da teologia da libertação nos lugares onde cristãos se recusam a aceitar essa anti-realidade e encontram em sua fé motivos poderosos para lutar contra ela, ombro a ombro com outros.


No âmbito das Igrejas ela lançou raízes nas cem mil comunidades de base, nos milhares e milhares de círculos bíblicos e nas várias pastorais sociais. Nestes espaços os cristãos aprendem a confrontar página da Bíblia com página da realidade e derivar compromissos transformadores. No âmbito da sociedade, a teologia da libertação ganhou corpo em inúmeros movimentos sociais, como nos Sem-Terra, em alguns movimentos de negros, de indígenas, de mulheres marginalizadas e outros. A assim chamada Igreja da libertação comparece como uma das forças que ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e ainda hoje lhe dá substância ética e espiritual e lhe garante caráter popular.


Fenômeno relevante é constatar que ela penetrou no campo especificamente político e contribuíu na elaboração de uma nova ética pública. Como se não bastasse, fez suscitar uma mística de transformação e de cuidado para com as coisas do povo, sem a qual as políticas sociais correm risco de se atolarem no pântano do populismo e desembocarem em medidas pobres para com os pobres.


Pude constatar tal fato nos inícios de maio quando me coube dar palestras e debates, a convite de grupos da Igreja da libertação e do Governo petista de Jorge Viana no Acre. Estive muitas vezes neste Estado nos anos 70 e 80, pois aí se instaurava um dos ensaios de Igreja libertadora dos mais consistentes sob a animação da excepcional figura do bispo Dom Moacyr Grecchi e hoje continuada pelo Pe. Luiz Ceppi, articulador inteligente entre fé, política e libertação. Esta Igreja não só organizou vasta rede de comunidades eclesiais de base senão que formou quadros comprometidos com a realidade da floresta. Estes quadros ganharam hoje a cena política, como o Governador Jorge Viana, seu irmão, o senador Tião Viana, a seringueira e senadora Marina Silva, o deputado federal e teólogo leigo Nilson Mourão entre tantos outros, de grande valor ético e político. Eles implementam uma política democrática e popular, realmente inspirada nos ideais da libertação.


Não há espaço para detalhar os conteúdos do projeto político em curso no Acre. Mas cabe ressaltar duas características relevantes. A primeira, a criação de uma metáfora forte que define ação política: "governo da floresta" e "florestania". Desenvolvimento não se faz destruindo a floresta, mas preservando-a, extraindo dela sua incomensurável riqueza e integrando quem lá habita.


A segunda, foi a de ter criado uma verdadeira mística de re-invenção do Acre que se apoderou das mentes e corações de seus operadores. Irradia-se uma aura benfazeja que impregna a todos, num despojamento exemplar dos símbolos de poder em função dos ideais de cuidado com o bem comum e de aproximação à realidade crua do povo.


Mais importante que a teologia da libertação, é a libertação concreta dos oprimidos. Tal evento é parte da política de Deus no mundo, chamada, não Igreja, mas Reino de Deus.


Leonardo Boff é teólogo.

Escrito em 2002

15 de fev. de 2007

A Religiosidade Popular da Folia de Reis


Somos despertados pela alegria dos cantos e da alegria. O galo canta, o sol inicia sua aurora e nela já estão de pé os mensageiros da Folia. Todos os anos somos convidados a interpretar e compreender este fenômeno da religiosidade popular brasileira que estimula-nos a refletir a importância da cultura católica no imaginário popular, bem como a fé como fonte de vida para àqueles e àquelas que recebem a visita dos foliões em suas casas.

A Folia de Reis é uma festa popular herdada da cultura portuguesa que chegou ao Brasil no século XVIII e que assumiu características próprias principalmente entre os camponeses tornando-se uma manifestação religiosa de rara beleza com simplicidade. Em Portugal, em meados do século XVII, tinha a principal finalidade de divertir o povo, enquanto aqui no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão.

Lembro-me neste dia particular a cidade de Goiás, Itapirapuã, Itapuranga e Itaberaí onde pude conviver mais de perto com esta realidade. Podia-se ouvir de longe ou encontrar os grupos especiais de músicos, cantadores e rezadores trajando seus fardamentos coloridos (expressando a alegria) e entoando os versos que anunciam o nascimento do menino Jesus, o Verbo que se encarna e entre nós faz sua morada, e também, homenageando os Reis Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) num memorial bíblico “(...) vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo” (Mt 2, 2) ou como se canta em nossas comunidades: Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Rei d’gente. Estou, evidentemente, falando da Folia de Reis que durante os dias 24 de dezembro a 06 de janeiro, dia dos Santos Reis, faz sua peregrinação à procura de acolhida ou em direção a alguma comunidade que já se encontra à espera dos foliões. Os versos são preservados como tesouro de geração após geração pela tradição oral.

Sem dúvida, trata-se de uma festa religiosa popular que não se encontra no calendário litúrgico oficial da Igreja. É uma festa do povo e com o povo. Portanto, sem nenhuma interferência da hierarquia da Igreja, pois se trata de uma expressão da religiosidade laical. Mas, não é apenas um folclore, um dado cultural do passado. A Folia contêm toda uma mística e uma espiritualidade que nasce e brota do povo escolhido por Deus. Emociona-nos ver os tocadores com suas sanfonas, reco-recos, caixas, pandeiros, chocalhos, violões e violas e outros tantos instrumentos que seguem os foliões pela noite e dia adentro, em longas caminhadas, levando a “bandeira” ou estandarte de madeira ornado com símbolos religiosos. Todos possuem o maior respeito à bandeira, pois se trata de um símbolo religioso. São liderados por mestre e contra-mestres, figuras de relevância dentro da Folia, pois são os entendidos nos versos e quase sempre são os puxadores do canto.

Em alguns lugares existe a promessa dos foliões em cumprir por um período de sete anos consecutivos saírem com a Folia e arrecadarem em suas andanças donativos para realizarem anualmente a Festa de São Sebastião no dia 20 de janeiro, festa com cantorias e ladainhas versadas pelos benditos.

Os personagens somam ao todo doze pessoas. Todos os integrantes do grupo trajam roupas bastante coloridas, sendo eles: mestre, contra-mestre, três Reis Magos, palhaço e foliões.O Mestre e Contra-mestre é dono de conhecimentos sobre a manifestação, é quem comanda os foliões; O Palhaço com seu jeito cínico e dissimulado que deve proteger o Menino Jesus, confundindo os soldados de Herodes. O seu jeito alegre e suas vestimentas coloridas são responsáveis pela distração e divertimento de quem assiste à performance. Representando o mal, usa geralmente máscara confeccionada com pele de animal e vai sempre afastado um pouco da formação normal da Folia, nunca se adiantando à “bandeira”. Apesar de seu simbolismo é personagem alegre que dança e improvisa versos, criando momentos de grande descontração; Os Foliões são compostos de homens simples, geralmente de origem rural, são os participantes da festa, dão exemplo grandioso através de sua cantoria de fé; Reis Magos são três Reis Magos que fazem viagem de esperança, certos de encontrarem sua estrela.

O Alferes da Folia, chefe dos foliões, seguido dos palhaços do Reisado e de seus instrumentos, bate nas portas dos fiéis, de manhãzinha, para tomar café e recolher dinheiro para a Folia de Reis, oferecendo uma bandeira colorida, enfeitada com fitas e santinhos. Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras, representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos. E a festa com orações, cantos, danças, comidas e bebidas vai até altas horas da noite e noutro dia tudo recomeça numa nova casa de acolhida.

O ponto alto da festa se dá quando dois grupos se encontram. Juntos, eles caminham em direção ao presépio da festa, o ponto final da caminhada. Os versos são simples, sempre com rimas, para que o povo possa decorar e passar para seus filhos e filhas. Vejamos:
Era meia noite em ponto
Bateu asa e cantou o galo
Bateu asa e cantou o galo...
Bateu asa e cantou o galo
Quando o Salvador nasceu
Quando o Salvador nasceu...
Que Jesus dê vida e saúde
Só voltamos para o ano
Só voltamos para o ano...
Com a ordem dos três Reis
Vou parar meus instrumentos
Vou parar meus instrumentos...
Desejamos vida e saúde
Para todos da cidade
Para todos da cidade...
Era meia noite em ponto
Bateu asa e cantou o galo
Bateu asa e cantou o galo...
Que Jesus dê vida e saúde
Só voltamos para o ano
Só voltamos para o ano.

Somente quando participamos é que entendemos o mistério da Fé que está em Jesus. A alegria é mesma alegria Pascal, alegria dos pobres. Muitos dirão inflamando-se com seus dogmas católicos que não passa de uma crença ingênua, outros mais moralista dirão que é uma coisa do demônio, pois se trata de uma festa da carne como danças, comidas e bebidas e, outros, a tratarão com simples espetáculo do folclore brasileiro, pois nosso mundo não suporta mais comportamentos como estes.

No entanto, prefiro ver a Folia de Reis sob um outro ponto de vista, tendo em vista, os atores desse processo de religiosidade popular que são pobres e trabalhadores. Homens, mulheres e crianças que louvam ao Deus da Vida com seus sonhos e esperanças sem entender de teologia, mas fazem teologia; sem entender de cultura, mas fazem a cultura; sem entender até mesmo de religião e seus dogmas, mas são pessoas profundamente religiosas. Com isso, podemos acreditar que o Menino Deus habita em nosso meio porque ainda o Reisado acontece na liberdade da expressão realizada por pastores do povo que não se diferenciam do próprio povo, pois o louvor é do próprio povo.
Claudemiro Godoy do Nascimento
Dezembro de 2005

14 de fev. de 2007

Uma Carta da Prisão


Este ano, a Campanha da Fraternidade da CNBB, que vai da Quarta-Feira de Cinzas ao domingo de Páscoa, é dedicada aos povos indígenas. Reproduzo aqui uma carta que escrevi a uma religiosa salesiana, há 30 anos, na Penitenciária Regional de Presidente Wenceslau, SP, quando me encontrava preso sob a ditadura militar.

Caríssima irmã Yolanda Ladeira,

Quando fomos integrados à população carcerária, os presos quiseram que déssemos aulas para eles. Aqui a maioria é semi-analfabeta, e o presídio só oferece curso até o 3° primário. O pessoal, sedento de cultura, logo nos cercou, na esperança de que ensinássemos o que sabemos (eles chegam a reler o mesmo livro três ou quatro vezes). Todavia, a administração não permitiu. Em torno da gente sempre houve a suspeita de que só abrimos a boca "para fazer proselitismo".

Com o tempo, entretanto, descobri que a simples convivência permite que haja entre nós, presos políticos e comuns, uma troca de conhecimentos. Eles têm muito a nos ensinar. A nossa formação é acadêmica, intelectualista, abstrata, livresca. A deles é empírica, pragmática, forjada no sofrimento, rica de sabedoria. A grande diferença é que nós sabemos que sabemos e eles não sabem que sabem. Ajudar a fazê-los ver o quanto sabem tem sido a nossa preocupação.

Outro dia, conversando com Paulão, perguntei a ele:

Quem tem mais cultura, um médico ou um índio?

O médico, é claro respondeu-me.

Por que o médico?

Porque foi à escola, leu muitos livros, aprendeu a curar doenças e fazer operações, tirou um diploma.

Então me diga uma coisa: o médico sabe pescar com arco e flecha, fazer tinta de genipapo, reconhecer o grito da capivara, distinguir plantas medicinais, transformar tronco de árvore em canoa, cultivar mandioca e milho, tecer a fibra de buriti, acender fogo sem fósforo, caminhar na mata sem bússola e preparar carne sem sal?

O companheiro pensou um pouco e meio surpreso respondeu:

É, não sabe não.

Como é, então, que você diz que o médico tem mais cultura que o índio?

Pelo que vejo, o médico tem sua cultura de médico e o índio tem sua cultura de índio.

A partir desse momento, Paulão passou a compreender algo que muitas pessoas diplomadas em universidades ignoram (apesar das obras monumentais de Lévi Strauss, Darcy Ribeiro e Paulo Freire): não existem homens mais cultos que outros, existem culturas paralelas e socialmente complementares.

O fato de a raça branca julgar como cultura só aquilo que ela sabe, levou-a a "pacificar" os índios. A quem fazem mal os "selvagens"? A ninguém. Vivem a sua vida, a sua cultura, a sua história. Mas nós, os brancos, nos julgamos uma raça superior (e este complexo nos levou a dizimar os vermelhos; isolar os amarelos; e subjugar os negros). Cremos que cultura e civilização são aquilo que constitui o nosso patrimônio. Esquecemos que o índio tem a sua própria civilização que, em muitos aspectos, é mais avançada que a nossa (vide astecas e maias). E com a nossa amnésia continuamos nos embrenhando pela floresta adentro, poluindo o ar e a água, subornando o índio com presentes de grego e corrompendo-o com promessas ilusórias. O preço de cada passo de nosso progresso é a ruína de mais uma tribo.

Um grupo japonês acaba de instalar-se no Brasil para exportar produtos de artesanato indianista. Sem falar da exploração que isso vai significar para o índio, o que todos parecem ignorar (não os índios, mas autoridades e empresários) é que esse artesanato depende de aves que se tornam cada vez mais raras. Aqui o preço será a extinção dessa fauna.

Venho acompanhando com muito interesse essa expedição que, junto ao rio Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, procura "pacificar" os índios gigantes Kranacaroes. Quanto mais a expedição avança, sob cobertura aérea, mais os índios se afundam na mata. Às vezes imagino o cacique reunindo a tribo assustada para explicar o que se passa:

"Irmãos, procurai estar sempre atentos, porque a qualquer momento esses caras pálidas selvagens podem alcançar-nos. Até a presente lua temos gozado da mesma paz e prosperidade em que viveram os nossos antepassados. Temos guardado nossa inocência, sem que o nosso coração se deixasse contaminar pela ambição e pela malícia; temos vivido com o que a natureza nos fornece, sem necessidade de apoderar-nos dos bens da terra ou de delimitar nosso território. Graças aos nossos deuses, jamais conhecemos a doença, a fome e a inimizade; nossos jovens são fortes e corajosos, nossas mulheres férteis e puras. Eis que agora os selvagens quebram nossa secular tranqüilidade. Ameaçam-nos com seus paus de fogo e suas lâminas de ferro; assustam-nos com seus pássaros metálicos e nos armam ciladas com bugigangas, sem as quais temos vivido luas e luas de felicidade. Vê-de como eles são: envergonham-se do próprio corpo e cobrem a pele; caminham devastando a mata, afugentando animais e secando as plantas. Querem aprisionar-nos e confinar-nos em seus parques, para que possam destruir a nossa terra e a nossa tribo. Contudo, não vos submeteis sem lutar. A terra que pisamos conheceu o homem quando aqui chegaram os nossos antepassados, que a legaram aos filhos de seus filhos. A nós ela pertence e, por ela, que nos dá vida e alimento sem exigir demasiado trabalho, combateremos até os limites de nossas forças".

Se, dentro de alguns anos, não houver mais índios no Brasil, a Igreja terá de reconhecer sua parte de culpa nisso. No passado, nossos missionários internaram-se na selva sem preparo e contaminaram os índios com o seu caldo de cultura europeizada. Acreditavam que civilizar era ensinar o índio a ter vergonha da nudez e usar roupa, e repudiar a vida coletiva da aldeia e aprender nossas línguas, e adquirir nossos costumes. Muitos missionários abriram caminho para os mascates que exploraram o índio, comprando seu artesanato e sua mulher por uma garrafa de álcool. Sob o pretexto de anunciar o Evangelho, contribuímos para o extermínio da raça. Levamos a morte onde havia vida.

São raros os missionários que, como Anchieta e Antônio Vieira, respeitaram a cultura do índio e tudo fizeram para preservá-la. Raros os que se tornaram índios com os índios. Mas felizmente eles existem e são a nossa esperança.
Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
Escrito em 2002.

13 de fev. de 2007

Sabor de Utopias


É provável que, nesses 2.400 anos que se estendem de Sócrates aos nossos dias, a humanidade não tenha conhecido um período tão desprovido de utopias como agora. Onde estão as grandes idéias filosóficas, religiosas ou políticas que nos movam em direção a um futuro melhor? O nipo-americano Francis Fukuyama expressa com muita propriedade o primeiro e único mandamento da onda neoliberalista que assola o Planeta: "A história acabou". Eis uma novidade, num mundo marcado pela cultura hebraico-cristã que difundiu a crença num Deus - Javé - que, ao contrário das divindades gregas, se revela na história.


Os adeptos de Jesus partilham a fé de que o mesmo Deus criador do Universo é o Pai que nos promete, na plenitude da história, o Reino de justiça e paz. Como ainda há guerras e fome, não se pode dizer que o Reino se manifestou; portanto, a história ainda não atingiu sua plenitude. Mas, por decreto de um funcionário do Departamento de Estado, ela teria chegado ao fim. Assim, não haveria mais um lugar ao qual chegar (= utopia). Sob o império das leis do mercado, este seria o melhor dos mundos, regido pela ditadura do mercado.


Mesmo as grandes religiões orientais, como o budismo, têm sua visão cíclica da história, ao considerar a vida etapa reencarnatória rumo à purificação que nos introduz no Nirvana. Como a filosofia grega, elas detectaram no coração humano o anseio de esperança. A existência não é mero acaso. É fruto de uma história natural sinalizada, em sua evolução, no relato da Criação contido no Gênesis.


Para a Bíblia, a história antecede a presença humana no palco da natureza. Aquele Deus cujo nome era História - pois Seu nome era pronunciado como resgate do passado, "o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó" - já imprimira movimento evolutivo no próprio ato da Criação. Isso as grandes religiões antigas já haviam intuído. Mas a ciência teve que aguardar o século XX de nossa era para constatar que o Universo teve início, no Big-Bang, há cerca de 15 bilhões de anos, quando então surgiu o tempo e, em sua esteira, a flecha da evolução. A energia condensou-se em matéria e, no calor das estrelas, foram fundidos, com diferentes consistências e qualidades, todos os átomos que integram, quais tijolos, as estruturas dos mundos inorgânico e orgânico. Os próprios átomos têm sua história de integração, desde suas partículas elementares que oscilam na indefinível fronteira entre o espiritual e o material, como os quarks e os elétrons, às moléculas e células que constituem os elos dos corpos minerais, vegetais e animais.


O milagre da vida


A vida é o dom maior de Deus - repetem os militantes das comunidades eclesiais de base (CEBs) da América Latina, cuja população é desprovida dos bens essenciais que evitam a morte precoce. Ainda que a vida da maioria dos latino- americanos seja considerada sem valor pelas elites do continente e dos EUA, ela é, em si, um fenômeno maravilhosamente indescritível, cientificamente inexplicável e tecnicamente irreproduzível, malgrado os clones futuros, pois as condições ambientais de um ser vivo jamais coincidem.


A história da vida de cada um de nós se inicia há milhões de anos. Até agora, parece-nos que a vida é exclusiva do sistema solar, mais exatamente do planeta Terra, a bordo do qual viajamos numa velocidade de 30 km por segundo. O Sol teria surgido há cerca de 5 bilhões de anos; a Terra, há cerca de 4 bilhões 550 milhões de anos; e a pouco mais de 3 bilhões de anos a vida teria emergido do fundo dos mares1. Assim, esse "dom maior de Deus", do qual você e eu somos exemplares, possui também sua própria história, que vai das bactérias às amebas, dos organismos monocelulares aos pluricelulares que, de tão viciadas em aspirar esse gás letal e fortemente oxidante - o oxigênio - conseguiram transformá-lo em alimento essencial aos seres vivos que respiram à luz do Sol.


Nós, seres humanos, somos decorrência de uma história que evolui do mais simples ao mais complexo, do menos consciente ao mais consciente, intrigando os cientistas que, ainda hoje, insistem em ignorar que a evolução parte da energia para condensar-se em matéria e, desta, para atingir sua plenitude na espiritualização informada pela dinâmica do amor. Do vovô Homo Sapiens, que logrou se emancipar da família Símios, até à civilização, foram 600 mil anos de aperfeiçoamento da espécie... embora ainda atiremos mísseis sobre nossos semelhantes e deixemos milhares padecerem de fome.


Tudo indica que a vida humana é a grande utopia de Gaia. Após sua irrupção, nenhuma outra espécie mais perfeita surgiu. E se Deus descansou no sétimo dia, nós, as criaturas, passamos a intensos trabalhos, tais como fazer a história que podemos, contar a história que fazemos e sonhar a história que queremos. Mesmo porque, na América Latina, a vida é um produto raro e caro e, a morte, abundante.


O centro europeu e a periferia americana


Vocacionado à plenitude, todo ser humano é um peregrino do Absoluto. Exceto Deus, nada nos sacia. E como Deus habita a profundidade do amor, tateamos em busca de ilusórios consolos, incorrendo na ambição que nos faz confundir as coisas.


Onde fica o centro do Universo? Em cada um de nós. É a nossa consciência que dá sentido ao Universo e, no entanto, não somos o centro do mundo. E todas as vezes que nos julgamos o centro do mundo adotamos a postura de proprietários do Jardim do Éden e expulsamos os nossos semelhantes do Paraíso. Assim, convencidos de que eram o centro do orbe terrestre e únicos detentores da civilização e da verdadeira e santa religião, os espanhóis que invadiram o México no século XVI expulsaram, da história e da vida 23 milhões de indígenas, segundo uns; 16 milhões, segundo outros autores; para reduzi-los, em 79 anos, a pouco mais 1 milhão.


A chegada dos europeus em nossas terras - chamadas de Abia Ayala pelos índios Kuna, do atual Panamá - provocou uma profunda crise na utopia daqueles povos que aqui viviam. Por uma perversa coincidência, aqueles homens de barba ruiva, montados em estranhos animais, como se tocassem o céu, correspondiam às datas e sinais das utopias vigentes entre os habitantes da Ameríndia. As divindades utópicas - Quetzalcóatl, no México, e Viracocha, no Peru - retornariam, respectivamente, no ano ce-acall e no reinado do XII Inca (Atahualpa), trazendo um tempo de fartura. O que veio, porém, naquelas imensas "casas flutuantes", foi a topia da morte.


A maioria dos súditos de Fernando e Isabel que aqui aportou, em busca do Eldorado, estava obcecada pela ambição de poder e de riqueza. Tudo devia cair sob o jugo colonizador: as riquezas naturais, pela força das armas; os corpos, pela escravidão e encomiendas ; e as almas, pela destruição das religiões e das culturas autóctones. A partir da invasão e da conquista, os povos que aqui viviam não deveriam sonhar senão o sonho do colonizador, sem pretender, no entanto, a ele se igualar.


Apesar do genocídio e do ecocídio causados pela empresa colonialista, durante 500 anos as vítimas - índios, negros, mulheres, migrantes e trabalhadores - mantiveram suas culturas de resistência. Disfarçaram de cristãos seus cultos, batizaram de cristãs suas divindades, buscaram a liberdade no fundo das selvas e nos quilombos, e cultivaram suas raízes na tradição de suas comidas, músicas, danças, crenças, idiomas e utopias. Do Alaska à Patagônia, todos os povos da América lutaram por sua independência frente aos reinos europeus. Porém, uma pequena parcela dos habitantes do Novo Mundo foi cooptada pelos colonizadores, tornando-se cúmplice na implantação de um modelo social e cultural mimetista, adequado aos interesses de fora. Assim, os brancos passaram a ser considerados superiores aos indígenas e negros; os patrões, aos empregados; os ricos, aos pobres; os homens, às mulheres; a América do Norte, à América Latina. De fato, não são as diferenças naturais e culturais que constituem a base desse sistema de dominação, mas apenas a riqueza que assegura acesso a armas mais poderosas. Quem tem mais força, tem mais razão; quem dispõe de mais poder, está revestido de mais autoridade. Pois não foi a razão cínica que possibilitou aos EUA anexarem a seu território, entre 1836 e 1848, vastas extensões do México, como o Texas, e todo um país soberano como Porto Rico?


Fora do mercado não há utopias?


A utopia que a dominação neocolonialista disseminou no continente é a do american way of life, fabricada nos estúdios de Hollywood. Mas, como sonhar com tão estreita porta? Como subir tantos degraus se nos faltam pernas e mãos? Seria proibitivo sonhar com um mundo onde não houvesse opressores e oprimidos e no qual as diferenças sexuais, raciais, étnicas e religiosas não instituíssem desigualdades entre pessoas? Platão, Tomás Morus e Campanella, cada um a seu modo, sonharam com esse mundo utópico. Mas sua viabilidade histórica surgiu no século XIX com o socialismo, cujas propostas chegaram à América Latina no início do século XX. Aqui as idéias socialistas foram difundidas pela militância de anarquistas e comunistas. Porém, não eram as doutrinas políticas e os receituários ideológicos que ressoavam no coração sequioso desse povo que busca alento em Nossa Senhora, seja ela de Guadalupe, de Aparecida, de los Angeles ou do Cobre; chamem-na de Patrona, Puríssima, Imaculada ou Mãe de Deus. Só as forças políticas que souberam incorporar os sentimentos religiosos do povo às suas propostas libertárias lograram fazer revoluções na América Latina: México (1912), Cuba (1959) e Nicarágua (1979).


Porém, dizem que agora chegamos ao "fim da história". A única opção que resta é entre capitalismo e capitalismo. Não matam os nossos sonhos, apenas ensinam que não são abstratos nem se situam na ponta do tempo. São concretos e palpáveis, situam-se em nosso espaço e custam dinheiro. Só eles devem ser objetos de nosso desejo: um par de tênis, uma bicicleta, um carro novo, uma casa de campo, férias no exterior e dinheiro no banco. O fim da história coincide com o advento das prateleiras. As catedrais góticas ficam agora à sombra dos shopping-centers. Hoje, o sonho já não precisa ser conquistado nem exige heroísmo. Talvez um pouco de sacrifício para ser comprado. E a ascética econômica, sob promessa de glórias futuras, é especialidade do FMI.


O sonho não depende de princípios, mas de interesses. Não nos exige dignificar a função que ocupamos; ao contrário, somos considerados pela grife que portamos. Saem os ideais, entra o mercado. Em meio a tanta competitividade, fica bem falar em solidariedade, como convém tecer loas à democracia para que a maioria não desconfie que se encontra excluída das decisões e das realizações do poder.


Vitorioso o neoliberalismo no panorama mundial, o "fim da história" mostra-se, de fato, como o fim das utopias. Já não há no que crer, o que crer, como crer, exceto para consumo privado e individual. Estamos em plena crise da racionalidade moderna. O Muro de Berlim ruiu, o determinismo histórico cedeu lugar ao princípio da indeterminação, a física geométrica de Newton foi suplantada pelo alucinado baile das partículas subatômicas de Planck e Heisenberg. As utopias volatilizaram-se, os paradigmas entraram em parafuso e a esperança exige, hoje, a lanterna de Diógenes. Neva em nossos corações e mentes.


Vitória da economia de mercado? Pirro talvez acreditasse nas propriedades nutritivas de um hambúrguer McDonald's. O fracasso, notório, é o do capitalismo implantado, há pelo menos um século, na África e na América Latina. O único país de nosso continente que logrou assegurar condições mínimas de vida à sua população foi Cuba. Graças ao socialismo. E se em Cuba as coisas não estão melhores não é porque Fidel Castro nega ouvidos aos patronos de ditaduras que insistem em lhe dar lições de democracia, mas devido ao bloqueio imposto pelo governo dos EUA e à desintegração da União Soviética. As estatísticas da FAO sobre a fome do mundo só não são mais gritantes porque 1 bilhão e 200 milhões de chineses comem ao menos duas vezes ao dia. Quem sabe Brigitte Bardot seja uma boa candidata às próximas eleições presidenciais na América Latina? Aplicasse aqui as leis da Sociedade Protetora dos Animais e estaríamos todos com uma vida bem melhor.


Na falta de horizontes, o céu é o limite. No bazar das crendices, vale tudo, do tarô ao Santo Daime, do pentecostalismo à astrologia, do I Ching aos gurus indianos. Mais do que fazer a cabeça, abalada por tantas incertezas, agora as pessoas querem fazer a alma. A matemática de Descartes cede lugar às energias cósmicas.


Há um duplo aspecto nessa onda de misticismo. De um lado, a idolatria do capital e do mercado. Já que não se pode mudar o mundo, o negócio é ganhar dinheiro e, se possível, mudar a si mesmo. Limitada a transa do corpo pelo risco da Aids, o jeito é soltar o espírito. Nessa, o divã dança. Muitos não querem nem saber as causas de seus bloqueios psíquicos. Chega de razão!


Terapia é mergulhar no mistério, seja pela via dos aditivos químicos, como as drogas, seja pela via dos modismos religiosos e esotéricos que cauterizam o buraco que trazemos no centro do peito e antecipam hoje o destino de amanhã.


O outro aspecto é altamente positivo, pois todo esse fenômeno revela a insuficiência da racionalidade moderna, confirmando a tese de meu confrade São Tomás de Aquino, de que "a razão é a imperfeição da inteligência". E recoloca, na ordem do dia, a questão da subjetividade. Deus, agora, é "in". Pena que as Igrejas históricas estejam tão estruturadas em seus modelos seculares, sem muitas condições de acompanhar os que mergulham rumo ao transcendente.


Ao contrário das tendências esotéricas, em geral voltadas para o próprio umbigo, o cristianismo faz do outro uma referência divina. E proclama o amor como experiência de Deus. Nessa linha, a esperança ressurge, não em torno de teorias mecânicas ou positivistas, mas centrada no concreto: como celebrar a vitória do neoliberalismo se o Leste europeu entra em processo acelerado de latino-americanização? Deus sim, mas servido e contemplado lá onde Jesus se identifica ao reconhecer "tive fome e me destes de comer" (Mateus 25, 35-41 ): nos meninos e meninas de rua, nos desempregados, nos aposentados, nos enfermos, nos oprimidos. O amor como desafio místico e político. E a oração como estímulo da ação.


Se lograrmos, na arqueologia das palavras, descer do patamar das abstrações e implodir as catedrais academicistas, talvez cheguemos ao pobre como referência fundamental, mesmo porque ele é grande maioria nesse continente cujo principal produto de exportação é capital líquido para os credores do Primeiro Mundo. Então, descobriremos que as utopias devem ter raízes espirituais, base ética e ressonância política. Homens e mulheres novos como filhos do casamento de Santa Teresa de Ávila com Ernesto Che Guevara.


A porta da razão é o coração e a chave do coração, a religião como expressão litúrgica da ousadia de se amar, de amar o próximo e de amar tudo que concorre para a soberania da vida, como plenitude de fé e de festa.


Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.

12 de fev. de 2007

A fogueira da inquisição do PT


Chega ao fim os dias do tesoureiro Delúbio Soares dentro do Partido dos Trabalhadores. Mas, como pensar que todo este sórdito esquema de corrupção organizado pelo PT tenha como único culpado o tesoureiro do Partido? Como compreender que o mesmo Delúbio tenha permanecido fiel ao Grupo Majoritário quando estes lhe negaram o devido apoio?

De fato, a fogueira da inquisição funcionou dentro do PT somente com Delúbio neste trágico esquema de "receitas não contabilizadas" ou no popular "Caixa 2", segundo o próprio Delúbio, uma pratica comum dentro dos partidos políticos.

A fogueira inquisitória do PT já havia funcionado anteriormente com militantes que ousaram ir contra o projeto neoliberal do Governo Lula ao votarem contra determinados projetos como foi o caso da Reforma da Previdência, ocasião pela qual, foram expulsos a Senadora Heloísa Helena e os três deputados, a saber: Babá, Luciana Genro e João Fontes.

No entanto, a fogueira demorou para ser acesa no caso dos atuais escândalos. Além disso, somente foi aceita porque o único condenado resistiu em permanecer no partido a contra-vontade da corja palaciana e do chamado Grupo do Zé. O Deputado José Dirceu tentou de todas as formas convencer Delúbio Soares para que saísse do Partido por livre espontânea vontade. Mas, há que se destacar o único mérito de Delúbio: morrer sozinho na praia. O único condenado vai sozinha para a fogueira carregando todo o fardo de ser o único culpado do esquema Caixa 2 organizado pelo PT.

O que pensar disso? Sinceramente, não compreendo como um tesoureiro faz tudo o que fez e que ninguém fique sabendo dentro da Executiva do Partido. Torna-se difícil acreditar que o presidente do PT, José Genoíno e que os outros membros da Executiva não soubessem acerca das famosas "receitas não contabilizadas" provenientes de acordos com o publicitário Marcos Valério. É díficil de acreditar que o então Ministro José Dirceu, homem forte dentro do partido, não soubesse do esquema e que muito menos, o Presidente Lula não soubesse de nada.

O que fica evidente é que somente um homem vai ser condenado. Aliás, a cúpula do Campo Majoritário não queria a expulsão do Delúbio Soares. Não queria jogar na fogueira um bom companheiro, fiel aos compromissos dessa ala do Partido, elitizada e mesquinha. Mas, não tinha jeito, pois a opinião pública precisa de um condenado. Não se pode jamais pensar em expulsão para José Dirceu e nem para outros comandados da tropa de choque. É preciso dar o sangue de um, aquele que assumiu as dores da humanidade do campo majoritário.

Na verdade, a figura de Delúbio Soares tornou-se emblemática dentro do Partido. Um homem que faz tudo sozinho sem que ninguém soubesse pode ser caracterizado como aquele que tem todo o Poder dentro do Partido, mas agora sua pessoa se torna "persona non grata". Delúbio Soares corre perigo de vida, pois sabe demais e essa gente não tem escrúpulo. Lembremos que dois prefeitos já tombaram, a saber: Toninho do PT e Celso Daniel. Por saber demais, Delúbio corre perigo de vida.

Não estou defendendo de forma alguma a figura emblemática do ex-tesoureiro do PT, apenas não considero justo um homem assumir toda a culpa de um esquema que jamais poderia ser arquitetado individualmente. Numa lógica racional isso seria impossível. É conto de fadas acreditarmos que o Campo Majoritário comandado pelo Zé Dirceu não soubesse e não participasse desse esquema sórdito, inescrúpuloso e imoral.

A fogueira está ardendo em fogos e labaredas e única pessoa que está queimada é Delúbio. Mas e os outros? E o Silvinho da Land Rover? E José Genoíno com seu passado de guerrilheiro do Araguaia negado com sua fraca força de decisão, pois o comando sempre esteve nas mãos do Zé Dirceu? E o Zé Dirceu, perderá seu mandato de Deputado Federal, mas não será expulso do PT? E os Deputados que receberam ajuda de custo das chamadas "receitas não contabilizadas", continuaram impunes dentro do Partido?

Na verdade, a fogueira do PT acendeu de formas. A primeira para os teimosos que ousaram enfrentar as garras do Poder do Grupo do Zé, o grupo que realmente assumiu o Partido no dia 01 de janeiro de 2003. A segunda para o único condenado desse esquema, Delúbio Soares, e esta última só foi acesa depois de muita discussão e muita pressão da sociedade civil. Daí a cabeça do Delúbio, culpado e expurgado da vida política, mas, por um lado, também injustiçado e por outro lado, medíocre, por ter assumido a culpa sozinho.

De fato, a partir de agora temos um outro PT. O PT das elites assume com todas as forças o Poder de permanecer no grupo majoritário do país. Portanto, não temos somente PFL, PP, PTB e PSDB, agora temos também o PT que junto com seus co-irmãos aderiu a prática do coronelismo e do caciquismo. Quem disse que o PT não tem cacique e coronel? Tem sim. Não é um coronel ACM da Bahia, mas um coronel que se utilizou da esquerda e de todo seu discurso para obter ascensão política e comandar todo um grupo de fiéis súditos. Para ele, a fogueira está fora de questão. Seria a mesma coisa se na Idade Média se tentasse usar a fogueira contra o inquisidor, ou seja, impossível.

Pronto, está tudo consumado. Delúbio já foi expulso. Paulo Rocha renúnciou, Silvinho Land Rover pediu a desfiliação, Genoíno se afastou da presidência e o Campo Majoritário continua numa boa, eleito agora com o sarcástico burguês da vez, Ricardo Berzoini. Agora, teremos uma nova fase dentro do PT, a fase para o estabelecimento das concepções neoliberais de um partido que surge a partir de grupos minoritários e hoje se encontra estabelecido na elite. Na verdade, a elite quando viu o surgimento do PT viu a necessidade de se infiltrar e oferecer seu modo de ver ao mundo àqueles que poderiam ser atraídos por ela. Aí, nem Frei Betto pode fazer nada com sua bela experiência de assessor das Comunidades Eclesiais de Base e teólogo da Libertação. No entanto, não agüentou e saiu da assessoria do Planalto por não concordar com o velho esquema liberal sendo adotado por um partido de esquerda, ou pelo menos, que se dizia de esquerda.

Espero que os militantes que vierem a refletir sobre este momento decidam por sair do PT, pois não se pode servir a dois senhores. O PT, assim como os partidos de direita, servem ao Dinheiro e se dizem servidores de Deus. Aqueles que acreditam na sociedade civil, na cidadania, nos movimentos sociais e populares, nas comunidades e em sua força, devem fazer um auto exame e repensar que mundo político estamos construindo. Chegou a hora de mudarmos de estratégia. Uma coisa, porém, é certa e evidente. Com o PT não dá mais, até porque sua fogueira se apagou e será acesa somente para os que tentarem continuar sendo fiéis as origens do Partido.
Claudemiro Godoy do Nascimento
Escrito em Outubro de 2005

11 de fev. de 2007

Paz como equilíbrio do movimento


O terrorismo que atingiu os ícones do sistema imperante no mundo e nos EUA provocou, ao lado da indignação, uma busca insaciável por paz. Entre muitas definições, privilegiamos uma, por ser extremamente sugestiva: a paz como equilíbrio do movimento.


Tudo é movimento. A fecundidade dessa definição reside no fato de que se ajusta à lógica do universo e de todos os processos orgânicos. Tudo no universo é movimento, nada é estático e feito de uma vez por todas. Viemos de uma primeira grande instabilidade e de um incomensurável caos. Tudo explodiu.


Começou o movimento, que ainda não terminou. Ao expandir-se, o universo vai pondo ordem no caos. Por isso esse caos é criativo e generativo. A ordem surge pelo jogo de relações que todas as coisas têm. Tudo tem a ver com tudo, em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Essa afirmação constitui a tese básica da cosmologia contemporânea, da física quântica e da biologia genética e molecular.


Por causa das relações de tudo com tudo, o universo não deve mais ser entendido como o conjunto de todos os seres existentes e por existir, mas como o jogo total, articulado e dinâmico de todas as relações que sustentam os seres, mantendo-os unidos e interdependentes. A vida, as sociedades humanas e as biografias das pessoas se caracterizam pelo movimento. A vida nasceu do movimento da matéria que se organizou; a matéria nunca é "material", mas um jogo altamente interativo de energias e de dinamismos que permitem que surjam os mais diferentes seres.


Não sem razão, asseveram eminentes biólogos que, quando a matéria alcança determinado nível de auto-organização, em qualquer parte do universo, emerge a vida como imperativo cósmico, fruto do movimento de relações de todo o cosmos. As coisas se mantêm em movimento, por isso evoluem; elas ainda não acabaram de nascer. Estão em processo de gênese: cosmogênese, biogênese, antropogênese, budogênese e cristogênese. O ser humano passa por sucessivos processos de transformação, mediante os quais constrói sua identidade e plasma seu destino.


Tudo busca seu equilíbrio. Mas o caos jamais teria chegado a cosmos e a desordem primordial jamais teria se transformado em ordem aberta se não houvesse o equilíbrio. Este é tão importante quanto o movimento. Movimento desordenado é destrutivo e produtor de entropia. Movimento com equilíbrio produz sintropia e faz emergir o universo como cosmos, vale dizer, como integridade, ordem e beleza.


Que significa equilíbrio? Equilíbrio é a justa medida entre o mais e o menos. É o ótimo relativo. Possui equilíbrio o movimento que se realiza dentro da justa medida e não é excessivo ou insuficiente. A paz é esse ponto de equilíbrio sutil e sempre em construção.


Se assim é, importa, então, sabermos o que significa a justa medida, sustentáculo da paz. A justa medida é a capacidade de usar potencialidades naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas possam durar o mais possível e possam, sem perda, se reproduzir. Esse propósito é alcançado quando se estabelece moderação e equilíbrio. A justa medida pressupõe realismo, quer dizer, aceitação humilde dos limites e aproveitamento inteligente das possibilidades e oportunidades. Esse equilíbrio garante a sustentabilidade de todos os fenômenos e dos processos, da Terra, das sociedades e da vida das pessoas.


O universo surgiu por causa de um equilíbrio sutil. Após a grande explosão originária, se a força de expansão fosse fraca demais, o universo colapsaria sobre si mesmo. Se fosse forte demais, a matéria cósmica não conseguiria adensar-se e formar galáxias, estrelas, sistemas planetários e seres singulares. Se não tivesse funcionado esse refinadíssimo equilíbrio, nós não estaríamos aqui.Há paz no universo e as estrelas não caem sobre nossas cabeças porque há equilíbrio do movimento.


Como alcançar o equilíbrio do movimento? Eis uma questão extremamente complexa. A própria natureza do equilíbrio demanda uma arte combinatória de muitos fatores e de muitas dimensões, buscando a justa medida entre todas elas. Pretender derivar o equilíbrio de uma única instância é situar-se numa posição de desequilíbrio.


Por isso não basta a razão crítica, não é suficiente a razão simbólica, presente nas religiões e nas artes, nem a razão emocional, subjacente ao mundo dos valores, nem o recurso da tradição, do bom senso e da sabedoria dos povos.


Todas essas instâncias são importantes, mas nenhuma delas é suficiente por si só para garantir o equilíbrio. Este exige articulação de todas as dimensões e de todas as forças. O equilíbrio evoca a sabedoria, que é exatamente o saber da medida justa, da ponderação dos prós e dos contras, saber que tem sabor porque colhe o melhor de cada coisa e de cada situação, numa atitude equidistante da carência e da abundância. A sabedoria representa a habilidade de somar positivamente todos os fatores que favorecem a vida e sua expansão.


A partir dessas idéias, temos condições de apreciar a excelência da compreensão da paz como equilíbrio do movimento. Se houvesse somente movimento sem equilíbrio, movimento desordenado, em qualquer direção, imperaria o caos e teríamos perdido a paz. Se houvesse apenas equilíbrio sem movimento, reinaria a estagnação e nada evoluiria. Seria a paz dos túmulos. A manutenção sábia dos dois pólos faz emergir a paz dinâmica.


A crise atual: muito movimento, pouco equilíbrio. Consideradas sob a ótica da paz como equilíbrio do movimento, as sociedades atuais são profundamente destruidoras das condições da paz. Vivemos dilacerados por radicalismos, unilateralismos, fundamentalismos e polarizações insensatas em quase todos os campos. Elas ganharam corpo nos aviões-bomba, destruindo os símbolos do poder econômico e do poder militar, ambos altamente desestabilizadores de equilíbrio mundial.


A concorrência na economia e no mercado, feita princípio supremo, esmaga a cooperação necessária para que todos os seres possam viver e continuar a evoluir. O pensamento único neo-liberal destrói a diversidade cultural e espiritual dos povos. A imposição de uma única forma de produção, com a utilização de um único tipo de tecnologia e de um único modelo de administração, maximizando os lucros, encurtando o tempo e minimizando os investimentos, devasta os ecossistemas e coloca sob risco o sistema vivo de Gaia, a Terra.


As relações profundamente desiguais entre ricos e pobres e entre religiões, umas considerando-se mais divinas que as outras, reforçam a arrogância, incrementam ressentimentos e aprofundam conflitos religiosos. Eis a dilaceração da paz, eis as bases do terrorismo.


Todos esses antifenômenos são manifestações da destruição do equilíbrio do movimento e, por isso, da paz. Só fazendo funcionar uma nova aliança entre todos e com a natureza, inspirada na "paz-equilíbrio-do-movimento" como método e meta, conseguiremos sociedades sem barbárie, onde a vida poderá florescer e os seres humanos poderão viver no cuidado de uns para com os outros, irradiando justiça e celebrando a paz perpétua, desde sempre buscada.


Leonardo Boff, teólogo e escritor, é autor de, entre outros livros, "Tempo de Transcendência" e "Princípio de Compaixão e Cuidado".