13 de fev. de 2007

Sabor de Utopias


É provável que, nesses 2.400 anos que se estendem de Sócrates aos nossos dias, a humanidade não tenha conhecido um período tão desprovido de utopias como agora. Onde estão as grandes idéias filosóficas, religiosas ou políticas que nos movam em direção a um futuro melhor? O nipo-americano Francis Fukuyama expressa com muita propriedade o primeiro e único mandamento da onda neoliberalista que assola o Planeta: "A história acabou". Eis uma novidade, num mundo marcado pela cultura hebraico-cristã que difundiu a crença num Deus - Javé - que, ao contrário das divindades gregas, se revela na história.


Os adeptos de Jesus partilham a fé de que o mesmo Deus criador do Universo é o Pai que nos promete, na plenitude da história, o Reino de justiça e paz. Como ainda há guerras e fome, não se pode dizer que o Reino se manifestou; portanto, a história ainda não atingiu sua plenitude. Mas, por decreto de um funcionário do Departamento de Estado, ela teria chegado ao fim. Assim, não haveria mais um lugar ao qual chegar (= utopia). Sob o império das leis do mercado, este seria o melhor dos mundos, regido pela ditadura do mercado.


Mesmo as grandes religiões orientais, como o budismo, têm sua visão cíclica da história, ao considerar a vida etapa reencarnatória rumo à purificação que nos introduz no Nirvana. Como a filosofia grega, elas detectaram no coração humano o anseio de esperança. A existência não é mero acaso. É fruto de uma história natural sinalizada, em sua evolução, no relato da Criação contido no Gênesis.


Para a Bíblia, a história antecede a presença humana no palco da natureza. Aquele Deus cujo nome era História - pois Seu nome era pronunciado como resgate do passado, "o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó" - já imprimira movimento evolutivo no próprio ato da Criação. Isso as grandes religiões antigas já haviam intuído. Mas a ciência teve que aguardar o século XX de nossa era para constatar que o Universo teve início, no Big-Bang, há cerca de 15 bilhões de anos, quando então surgiu o tempo e, em sua esteira, a flecha da evolução. A energia condensou-se em matéria e, no calor das estrelas, foram fundidos, com diferentes consistências e qualidades, todos os átomos que integram, quais tijolos, as estruturas dos mundos inorgânico e orgânico. Os próprios átomos têm sua história de integração, desde suas partículas elementares que oscilam na indefinível fronteira entre o espiritual e o material, como os quarks e os elétrons, às moléculas e células que constituem os elos dos corpos minerais, vegetais e animais.


O milagre da vida


A vida é o dom maior de Deus - repetem os militantes das comunidades eclesiais de base (CEBs) da América Latina, cuja população é desprovida dos bens essenciais que evitam a morte precoce. Ainda que a vida da maioria dos latino- americanos seja considerada sem valor pelas elites do continente e dos EUA, ela é, em si, um fenômeno maravilhosamente indescritível, cientificamente inexplicável e tecnicamente irreproduzível, malgrado os clones futuros, pois as condições ambientais de um ser vivo jamais coincidem.


A história da vida de cada um de nós se inicia há milhões de anos. Até agora, parece-nos que a vida é exclusiva do sistema solar, mais exatamente do planeta Terra, a bordo do qual viajamos numa velocidade de 30 km por segundo. O Sol teria surgido há cerca de 5 bilhões de anos; a Terra, há cerca de 4 bilhões 550 milhões de anos; e a pouco mais de 3 bilhões de anos a vida teria emergido do fundo dos mares1. Assim, esse "dom maior de Deus", do qual você e eu somos exemplares, possui também sua própria história, que vai das bactérias às amebas, dos organismos monocelulares aos pluricelulares que, de tão viciadas em aspirar esse gás letal e fortemente oxidante - o oxigênio - conseguiram transformá-lo em alimento essencial aos seres vivos que respiram à luz do Sol.


Nós, seres humanos, somos decorrência de uma história que evolui do mais simples ao mais complexo, do menos consciente ao mais consciente, intrigando os cientistas que, ainda hoje, insistem em ignorar que a evolução parte da energia para condensar-se em matéria e, desta, para atingir sua plenitude na espiritualização informada pela dinâmica do amor. Do vovô Homo Sapiens, que logrou se emancipar da família Símios, até à civilização, foram 600 mil anos de aperfeiçoamento da espécie... embora ainda atiremos mísseis sobre nossos semelhantes e deixemos milhares padecerem de fome.


Tudo indica que a vida humana é a grande utopia de Gaia. Após sua irrupção, nenhuma outra espécie mais perfeita surgiu. E se Deus descansou no sétimo dia, nós, as criaturas, passamos a intensos trabalhos, tais como fazer a história que podemos, contar a história que fazemos e sonhar a história que queremos. Mesmo porque, na América Latina, a vida é um produto raro e caro e, a morte, abundante.


O centro europeu e a periferia americana


Vocacionado à plenitude, todo ser humano é um peregrino do Absoluto. Exceto Deus, nada nos sacia. E como Deus habita a profundidade do amor, tateamos em busca de ilusórios consolos, incorrendo na ambição que nos faz confundir as coisas.


Onde fica o centro do Universo? Em cada um de nós. É a nossa consciência que dá sentido ao Universo e, no entanto, não somos o centro do mundo. E todas as vezes que nos julgamos o centro do mundo adotamos a postura de proprietários do Jardim do Éden e expulsamos os nossos semelhantes do Paraíso. Assim, convencidos de que eram o centro do orbe terrestre e únicos detentores da civilização e da verdadeira e santa religião, os espanhóis que invadiram o México no século XVI expulsaram, da história e da vida 23 milhões de indígenas, segundo uns; 16 milhões, segundo outros autores; para reduzi-los, em 79 anos, a pouco mais 1 milhão.


A chegada dos europeus em nossas terras - chamadas de Abia Ayala pelos índios Kuna, do atual Panamá - provocou uma profunda crise na utopia daqueles povos que aqui viviam. Por uma perversa coincidência, aqueles homens de barba ruiva, montados em estranhos animais, como se tocassem o céu, correspondiam às datas e sinais das utopias vigentes entre os habitantes da Ameríndia. As divindades utópicas - Quetzalcóatl, no México, e Viracocha, no Peru - retornariam, respectivamente, no ano ce-acall e no reinado do XII Inca (Atahualpa), trazendo um tempo de fartura. O que veio, porém, naquelas imensas "casas flutuantes", foi a topia da morte.


A maioria dos súditos de Fernando e Isabel que aqui aportou, em busca do Eldorado, estava obcecada pela ambição de poder e de riqueza. Tudo devia cair sob o jugo colonizador: as riquezas naturais, pela força das armas; os corpos, pela escravidão e encomiendas ; e as almas, pela destruição das religiões e das culturas autóctones. A partir da invasão e da conquista, os povos que aqui viviam não deveriam sonhar senão o sonho do colonizador, sem pretender, no entanto, a ele se igualar.


Apesar do genocídio e do ecocídio causados pela empresa colonialista, durante 500 anos as vítimas - índios, negros, mulheres, migrantes e trabalhadores - mantiveram suas culturas de resistência. Disfarçaram de cristãos seus cultos, batizaram de cristãs suas divindades, buscaram a liberdade no fundo das selvas e nos quilombos, e cultivaram suas raízes na tradição de suas comidas, músicas, danças, crenças, idiomas e utopias. Do Alaska à Patagônia, todos os povos da América lutaram por sua independência frente aos reinos europeus. Porém, uma pequena parcela dos habitantes do Novo Mundo foi cooptada pelos colonizadores, tornando-se cúmplice na implantação de um modelo social e cultural mimetista, adequado aos interesses de fora. Assim, os brancos passaram a ser considerados superiores aos indígenas e negros; os patrões, aos empregados; os ricos, aos pobres; os homens, às mulheres; a América do Norte, à América Latina. De fato, não são as diferenças naturais e culturais que constituem a base desse sistema de dominação, mas apenas a riqueza que assegura acesso a armas mais poderosas. Quem tem mais força, tem mais razão; quem dispõe de mais poder, está revestido de mais autoridade. Pois não foi a razão cínica que possibilitou aos EUA anexarem a seu território, entre 1836 e 1848, vastas extensões do México, como o Texas, e todo um país soberano como Porto Rico?


Fora do mercado não há utopias?


A utopia que a dominação neocolonialista disseminou no continente é a do american way of life, fabricada nos estúdios de Hollywood. Mas, como sonhar com tão estreita porta? Como subir tantos degraus se nos faltam pernas e mãos? Seria proibitivo sonhar com um mundo onde não houvesse opressores e oprimidos e no qual as diferenças sexuais, raciais, étnicas e religiosas não instituíssem desigualdades entre pessoas? Platão, Tomás Morus e Campanella, cada um a seu modo, sonharam com esse mundo utópico. Mas sua viabilidade histórica surgiu no século XIX com o socialismo, cujas propostas chegaram à América Latina no início do século XX. Aqui as idéias socialistas foram difundidas pela militância de anarquistas e comunistas. Porém, não eram as doutrinas políticas e os receituários ideológicos que ressoavam no coração sequioso desse povo que busca alento em Nossa Senhora, seja ela de Guadalupe, de Aparecida, de los Angeles ou do Cobre; chamem-na de Patrona, Puríssima, Imaculada ou Mãe de Deus. Só as forças políticas que souberam incorporar os sentimentos religiosos do povo às suas propostas libertárias lograram fazer revoluções na América Latina: México (1912), Cuba (1959) e Nicarágua (1979).


Porém, dizem que agora chegamos ao "fim da história". A única opção que resta é entre capitalismo e capitalismo. Não matam os nossos sonhos, apenas ensinam que não são abstratos nem se situam na ponta do tempo. São concretos e palpáveis, situam-se em nosso espaço e custam dinheiro. Só eles devem ser objetos de nosso desejo: um par de tênis, uma bicicleta, um carro novo, uma casa de campo, férias no exterior e dinheiro no banco. O fim da história coincide com o advento das prateleiras. As catedrais góticas ficam agora à sombra dos shopping-centers. Hoje, o sonho já não precisa ser conquistado nem exige heroísmo. Talvez um pouco de sacrifício para ser comprado. E a ascética econômica, sob promessa de glórias futuras, é especialidade do FMI.


O sonho não depende de princípios, mas de interesses. Não nos exige dignificar a função que ocupamos; ao contrário, somos considerados pela grife que portamos. Saem os ideais, entra o mercado. Em meio a tanta competitividade, fica bem falar em solidariedade, como convém tecer loas à democracia para que a maioria não desconfie que se encontra excluída das decisões e das realizações do poder.


Vitorioso o neoliberalismo no panorama mundial, o "fim da história" mostra-se, de fato, como o fim das utopias. Já não há no que crer, o que crer, como crer, exceto para consumo privado e individual. Estamos em plena crise da racionalidade moderna. O Muro de Berlim ruiu, o determinismo histórico cedeu lugar ao princípio da indeterminação, a física geométrica de Newton foi suplantada pelo alucinado baile das partículas subatômicas de Planck e Heisenberg. As utopias volatilizaram-se, os paradigmas entraram em parafuso e a esperança exige, hoje, a lanterna de Diógenes. Neva em nossos corações e mentes.


Vitória da economia de mercado? Pirro talvez acreditasse nas propriedades nutritivas de um hambúrguer McDonald's. O fracasso, notório, é o do capitalismo implantado, há pelo menos um século, na África e na América Latina. O único país de nosso continente que logrou assegurar condições mínimas de vida à sua população foi Cuba. Graças ao socialismo. E se em Cuba as coisas não estão melhores não é porque Fidel Castro nega ouvidos aos patronos de ditaduras que insistem em lhe dar lições de democracia, mas devido ao bloqueio imposto pelo governo dos EUA e à desintegração da União Soviética. As estatísticas da FAO sobre a fome do mundo só não são mais gritantes porque 1 bilhão e 200 milhões de chineses comem ao menos duas vezes ao dia. Quem sabe Brigitte Bardot seja uma boa candidata às próximas eleições presidenciais na América Latina? Aplicasse aqui as leis da Sociedade Protetora dos Animais e estaríamos todos com uma vida bem melhor.


Na falta de horizontes, o céu é o limite. No bazar das crendices, vale tudo, do tarô ao Santo Daime, do pentecostalismo à astrologia, do I Ching aos gurus indianos. Mais do que fazer a cabeça, abalada por tantas incertezas, agora as pessoas querem fazer a alma. A matemática de Descartes cede lugar às energias cósmicas.


Há um duplo aspecto nessa onda de misticismo. De um lado, a idolatria do capital e do mercado. Já que não se pode mudar o mundo, o negócio é ganhar dinheiro e, se possível, mudar a si mesmo. Limitada a transa do corpo pelo risco da Aids, o jeito é soltar o espírito. Nessa, o divã dança. Muitos não querem nem saber as causas de seus bloqueios psíquicos. Chega de razão!


Terapia é mergulhar no mistério, seja pela via dos aditivos químicos, como as drogas, seja pela via dos modismos religiosos e esotéricos que cauterizam o buraco que trazemos no centro do peito e antecipam hoje o destino de amanhã.


O outro aspecto é altamente positivo, pois todo esse fenômeno revela a insuficiência da racionalidade moderna, confirmando a tese de meu confrade São Tomás de Aquino, de que "a razão é a imperfeição da inteligência". E recoloca, na ordem do dia, a questão da subjetividade. Deus, agora, é "in". Pena que as Igrejas históricas estejam tão estruturadas em seus modelos seculares, sem muitas condições de acompanhar os que mergulham rumo ao transcendente.


Ao contrário das tendências esotéricas, em geral voltadas para o próprio umbigo, o cristianismo faz do outro uma referência divina. E proclama o amor como experiência de Deus. Nessa linha, a esperança ressurge, não em torno de teorias mecânicas ou positivistas, mas centrada no concreto: como celebrar a vitória do neoliberalismo se o Leste europeu entra em processo acelerado de latino-americanização? Deus sim, mas servido e contemplado lá onde Jesus se identifica ao reconhecer "tive fome e me destes de comer" (Mateus 25, 35-41 ): nos meninos e meninas de rua, nos desempregados, nos aposentados, nos enfermos, nos oprimidos. O amor como desafio místico e político. E a oração como estímulo da ação.


Se lograrmos, na arqueologia das palavras, descer do patamar das abstrações e implodir as catedrais academicistas, talvez cheguemos ao pobre como referência fundamental, mesmo porque ele é grande maioria nesse continente cujo principal produto de exportação é capital líquido para os credores do Primeiro Mundo. Então, descobriremos que as utopias devem ter raízes espirituais, base ética e ressonância política. Homens e mulheres novos como filhos do casamento de Santa Teresa de Ávila com Ernesto Che Guevara.


A porta da razão é o coração e a chave do coração, a religião como expressão litúrgica da ousadia de se amar, de amar o próximo e de amar tudo que concorre para a soberania da vida, como plenitude de fé e de festa.


Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.

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