3 de mar. de 2007

Ressuscitamos na luta


Brasil - Lutar por direitos é defender a vida!

"Nem o tempo, amigo,
Nem a força bruta
Pode um sonho apagar...
Quem perdeu o trem
Da história por querer,
Saiu do juízo sem saber...
Foi mais um covarde
A se esconder, oh!
Minha estrela amiga,
Porque você não fez a
Bala parar...?"

A Pastoral Operária em nível nacional iniciou em 1º de maio, uma jornada de luta de um ano.
Ela terá como sintonia o eixo articulador Uma Nova Cultura do Trabalho e realizará várias atividades conjuntamente com as dioceses do Brasil. Uma dessas atividades será no dia 30 de outubro de 2004, em que estaremos celebrando os 25 anos do martírio do operário Santo Dias da Silva.

Santo foi assassinado em frente a Fábrica SYLVANIA, numa tarde de 1979. Para todos/as aqueles/as que lutam de forma incondicional em defesa da vida, Santo representa toda a mística e o compromisso para com o sofrimento dos/as trabalhadores/as urbanos.

Neste momento histórico da atualidade brasileira, ao celebrarmos a memória do companheiro Santo Dias, possibilitará também, desafiar o conjunto das organizações dos/as trabalhadores/as a refletir sobre suas estratégias de ações na conjuntura atual, a partir de três aspectos fundamentais da militância de Santo Dias e do período em que foi assassinado:

1. Santo foi assassinado porque estava defendendo os direitos e melhores condições de trabalho.

2. Santo Dias não trabalhava na fábrica SYLVANIA, mas naquela tarde de 1979, movido pela paixão e o amor à luta e principalmente pela solidariedade classista, estava lá, o operário, estava lá presente até as últimas conseqüências doando a própria vida.

3. Em 1979, quando Santo foi assassinado, o sindicalismo brasileiro estava ressurgindo, com avanços e vitórias, apesar das perseguições e ausências de democracia, em plena ditadura militar, um novo sindicalismo começava a retomar o seu caminho.

Na conjuntura nacional, diante da crise, a classe dominante tenta de todas as formas recuperar suas margens de lucro. Para isso, buscam retornar ao início do capitalismo em que os patrões faziam o que queriam com os/as trabalhadores/as, a exemplo da reforma sindical e trabalhista, que estará tramitando no Congresso Nacional no próximo ano. Essas reformas têm como objetivo central, flexibilizar os direitos trabalhistas, esvaziar e enfraquecer os sindicatos como interlocutores na relação capital e trabalho.

A exemplo de Santo Dias, as organizações dos/as trabalhadores/as precisam estar preparadas para o enfrentamento destes desafios com uma nova pedagogia das lutas. O movimento sindical e as centrais sindicais precisam sair do imobilismo e da burocratização. Entender que a grande maioria dos/as trabalhadores/as estão fora das fábricas e vivem aguçando o seu sofrimento nos bairros da periferia. Assim como Santo foi presença ativa, o movimento sindical também precisa estar inserido nessa nova civilização de trabalhadores/as, para acolher, escutar e criar espaços em que os mesmos possam também interpretar a realidade e serem protagonistas. O movimento sindical precisa tomar consciência dessa nova realidade ou correrá o risco de se tornar desnecessário para a história.

Outro aspecto, Santo não viveu suficiente para ver o partido dos/as trabalhadores/as, mas se estivesse vivo, com certeza estaria bastante triste com a dinâmica de ação do partido, que vive preso ao calendário eleitoral deixando as lutas populares dispersas e sem nenhuma perspectiva política, resumindo a democracia meramente pelo simples fato das pessoas participarem de um processo eleitoral. Assim como Santo Dias que foi até as últimas conseqüências na luta pela democracia em plena ditadura, os partidos também precisam radicalizar a democracia, afinal, em pleno desenvolvimento técnico científico com imensa produção de bens socialmente produzidos na sociedade, pensar a democracia nessa realidade é possibilitar também que as pessoas possam participar e usufruir desta riqueza. Para isso, será necessário uma nova reengenharia partidária com uma nova cultura política.

Por último, Santo Dias movido pela solidariedade, sempre estava presente na luta. A solidariedade é um valor fundamental, porém, cada vez mais é distanciada do cotidiano das organizações dos/as trabalhadores/as que se fecham e departamentalizam suas ações e não se dão conta que perder a solidariedade é perder o rumo da história, afinal, a solidariedade é um valor fundamental na vida de homens e mulheres que assumem o compromisso de estar presente na dor e no sofrimento do povo.

A Pastoral Operária Nacional, nesta jornada de um ano, ao lembrar a militância de Santo Dias da Silva, em que completa seus 25 anos de martírio, quer convocar homens e mulheres da PO das Dioceses do Brasil, para termos ousadia no enfrentamento da realidade brasileira, desenferrujar as nossas ações, fugir da mesmice, oxigenar as mentes e apaixonar os corações da militância, resgatar o trabalho de base e construir novos caminhos.

Onde está Santo Dias?

À pergunta que merece profunda reflexão, ousamos responder que o exemplo e a presença de Santo Dias da Silva estão por todos os cantos do Brasil, simbolizado nas mais diversas homenagens, nos locais que abrigam lutas e serviços aos trabalhadores e trabalhadoras:

- A nossa Pastoral Operária do Brasil é o Instituto Nacional Santo Dias.

- A PO Estadual de Minas Gerais é o Instituto Estadual Santo Dias. Em Uberlância/MG, está a Farmacinha de remédios naturais Santo Dias e, numa atitude bem ousada, há uma comunidade de Paróquia em Ipatinga/MG que tem como padroeiro, Santo Dias.

- Em Fortaleza/CE temos a Associação Santo Dias e a Praça Santo Dias

- Em Curitiba/PR, existe o Centro de Formação Santo Dias.

- Em Campina Grande/PB ocorre a grande romaria para Santo Dias.

- Em São Paulo, encontramos Santo Dias em caminhadas e celebrações. Tem o Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, a comunidade Santo Dias e a Creche Santo Dias (Jardim Ângela), o Centro de Referência do Idoso Santo Dias e a Praça Santo Dias (Vila Remo), o Parque Municipal Santo Dias (Cohab Adventista), a Escola Municipal Santo Dias (Cidade Dutra), o Conjunto Habitacional Santo Dias (Campinas) e o Comitê Santo Dias.

- Em muitos outros lugares encontramos Santo Dias. Mais que em todas estas instituições, Santo Dias da Silva está presente na esperança dos romeiros trabalhadores, na perseverança dos excluídos que gritam e na animação dos que refletem a fé e a política. Na coragem dos que lutam por direitos e na confiança de quem constrói a sociedade nova.

- Está presente na figura de seus filhos e netos. Está gravado na presença simpática de Ana Dias, sua companheira por vários anos.

- Ele está em nossa memória e construindo conosco, a história.

Santo Dias está conosco todos os dias!

Manoel Rodrigues Júnior, Coordenador Nacional da Pastoral Operária.

2 de mar. de 2007

Convite, Caminho e Inclusão


Neste ano, a Campanha da Fraternidade nos provoca uma reflexão inclusiva. Seguindo o chamado de Jesus que nos convida “Levanta-te, vem para o meio” (Mc 3, 3) acaba nos mostrando um projeto de amor e acolhimento para com os excluídos e excluídas dessa sociedade de consumo na qual vivemos. Neste sentido, a Igreja do Brasil, por meio da CNBB, nos convoca a refletirmos na CF 2006 acerca da Fraternidade e Pessoas com Deficiência.

O acolhimento e a valorização desses irmãos e irmãs na comunidade eclesial e na sociedade como um todo é o objetivo central da CF. É um momento propício para que possamos tomar consciência das diversas realidades de exclusão e das alternativas inclusivas que são fomentadas a partir das pessoas com deficiências. O certo e verdadeiro é que Deus se encontra nas alegrias e esperanças, nas tristezas e angústias desses irmãos e irmãs, que são chamados e chamadas a serem protagonistas da história. A CF também é um convite para que todo cristão e cristã deixe sua postura de espectador e passe a assumir uma atitude de acolhimento com estas pessoas que devem ser respeitadas em sua dignidade humana. É um convite para construirmos uma cultura da solidariedade frente ao avanço de culturas de morte e desrespeito que são implantadas em nossa sociedade.

Numa sociedade desumana baseada na lógica do capital as pessoas com deficiências são mais um grupo humano excluído e discriminado, vítimas de uma cultura do preconceito e da competição. Muitos sociólogos já afirmam há mais de uma década, só sobrevive nesta sociedade neoliberal os que estão aptos a competir entre si. Estes outros são seres descartáveis, conforme já anunciava a CF de 1995 sobre exclusão. Mas, neste caso específico, quem são os atores e atoras do processo? Segundo o Texto-Base da CF são todos e todas com algum tipo de deficiência natural ou não, ou seja, cegos, surdos, os que estão com lesão física ou cerebral ou mental. Numa perspectiva do seguimento a Jesus, somos chamados e chamadas a incluir, a romper com a lógica de excluir e de descartar seres humanos. “Levante-te, vem para o meio” é o sinal claro da proposta de acolhimento realizada por Jesus. O meio é o local da participação, da roda, da comunidade. O meio é o espaço onde existe a dignidade humana e onde os direitos são respeitados e se valoriza a pessoa humana por mais deficiente que seja.

As comunidades cristãs terão o período da Quaresma, tempo de penitência e de escuta, para refletir acerca da temática da CF que não deve se esgotar na Páscoa, mas se prolongar por todo este ano. Tal reflexão não pode se restringir as dioceses e paróquias, mas a toda sociedade. Por isso, o objetivo central da CF 2006 é o de “conhecer melhor a realidade das pessoas com deficiência e refletir sobre sua situação, à luz da Palavra de Deus e da ética cristã, para suscitar maior fraternidade e solidariedade em relação às pessoas com deficiência, promovendo sua dignidade e seus direitos” (CF 2006: 10).

Uma constatação é que as pessoas com deficiência incomodam aqueles e aquelas que sentem repulsa e outra compaixão paternalista. A pessoa com deficiência tira o não deficiente de sua comodidade e de sua tranqüilidade. A CF quer mostrar que é preciso acolher e não gerar um sentimento de repulsa e rejeição para com estes que se encontram com uma debilidade física ou motora, sensorial ou mental, mas gerar um sentimento de compaixão. Compadecer-se não significa ter pena, ter um sentimento de “dó”, pelo contrário, compadecer-se pelo outro em suas virtudes e denunciar assim a formação de uma cultura do eugenismo.

Muitas famílias acabam dando um significado de peso, de cruz que se carrega diante de uma pessoa que se encontra numa situação de deficiência. Outros associam o cuidado para com eles como se fosse um castigo ou uma missão dada por Deus. Uma constatação é que as pessoas com deficiências, por meio da via dolorosa assumida, nos ensinam reconhecer e aceitar o próximo em suas diferenças e peculiaridades.

A deficiência, qualquer que seja, não significa uma associação de incapacidade. Pelo contrário, todos somos capazes, mesmo que tenhamos jeito e formas diferenciadas de ser e agir na sociedade. Diante de um mundo baseado na lógica perversa do ter, ser diferente com uma deficiência, significa estar sempre em luta pela inclusão e por um mundo possível para todos e todas, dizendo um “basta” aos contravalores assumido por essa sociedade de consumo e individualista.

Para entendermos a dinâmica da CF é necessário retomar a prática de uma pastoral encarnada e inserida na realidade do povo. Muitos e muitas, pessoas com deficiência, estão à margem da sociedade e da própria comunidade cristã. A visita, o ver, o escutar, o sentir a realidade desses nossos irmãos e irmãs torna-se ponto crucial na dinâmica apontada pela CF. Com isso, deixaremos de lado o imobilismo e o fatalismo, passando assim, a conhecer e reconhecer nestes irmãos sinais claros da presença de Deus que é sempre Amor. Também, suscitar-se-á mais solidariedade e fraternidade entre a comunidade que deve assumir a inclusão como objetivo pastoral e ajudando a identificar nossas próprias deficiências que passam desapercebidas e que não notamos, pois temos olhos e ouvidos somente quando se trata do outro.

A CF quer nos proporcionar um momento de escuta de Deus na vida do povo, em especial, na vida de nossos irmãos e irmãs com deficiência. Significa que somos chamados a ver a pessoa humana com deficiência enquanto ser humano e não como objeto descartável, inválido, imprestável etc. Devemos ver a pessoa na deficiência e não como deficiente incapaz. Este novo olhar nos dá a condição de rompermos com determinados termos incorporados pela cultura que nos apresenta um conceito sobre e, por detrás, um preconceito que nega a humanidade desses irmãos e irmãs.

Outro fator importante dessa CF é a valorização integral desses seres humanos com deficiência. Para que haja maior valorização torna-se necessário e urgente a clara efetivação de políticas públicas de inclusão social. Por isso, no decorrer desta CF, estaremos refletindo com mais afinco acerca dessas questões emergentes que a Igreja do Brasil, por meio da CNBB, que nos faz refletir sempre com o desejo pedagógico de estarmos nos comovendo, conhecendo e lutando para a construção de uma sociedade justa e solidária para todos e todas, neste ano em especial, as pessoas com deficiência. Por isso, a Igreja nos faz um convite para refletirmos essa temática, alicerçada pelo caminho do Evangelho de Marcos para que nossas comunidades possam estar fomentando a inclusão daqueles e daquelas que se encontram a margem.

Claudemiro Godoy do Nascimento

1 de mar. de 2007

Fome Zero Mundial


O velho Marx tinha razão: ainda não saímos da pré-história da humanidade. Somos 6,1 bilhões de habitantes nesta nave espacial chamada Terra, dos quais 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza. Vivem com menos de US$ 30 por mês. Desses, 1,2 bilhão estão abaixo da linha da miséria, dos quais 841 milhões estão ameaçados pela desnutrição crônica.


A cada 24 horas morrem de fome no mundo 100 mil pessoas, entre as quais 30 mil crianças com menos de 5 anos de idade. No dia 11 de setembro, a derrubada das torres gêmeas de Nova York completou três anos. Houve imensa comoção internacional. A cada dia a fome faz desabar 10 torres gêmeas repletas de crianças. Ninguém chora nem se comove. Por quê?

Dias 20 e 21 de setembro, por ocasião da abertura da Assembléia Geral da ONU, o presidente Lula lançará em Nova York o Fome Zero Mundial. Estará respaldado por cerca de 55 chefes de Estado, inclusive o papa João Paulo II.

Se a fome é o principal fator de morte precoce e vergonha para a civilização do século XXI, por que não provoca mobilização? Por uma razão cínica: ao contrário do terrorismo e da guerra, do câncer e de outras doenças, a fome faz distinção de classe. Só atinge os miseráveis. E, em geral, apoiamos campanhas em benefício próprio. Nem sempre demonstramos sensibilidade quando se trata de direitos alheios.

Lula aprendeu, com a história da escravidão no Brasil, que um problema social só encontra solução quando se transforma numa questão política. Durante mais de 300 anos a escravidão foi considerada legítima e legal. Mas pouco antes de 1888 ela passou a ser tratada como uma questão política. Veio, então, a sua abolição oficial (pois todos sabemos que ainda há, em nosso país, fazendeiros que mantêm trabalhadores em regime de escravidão).

O Fome Zero beneficia, hoje, milhões de brasileiros(as), entre os quais 5 milhões de famílias que recebem renda mensal do programa Bolsa Família. Por ser uma política pública não-assistencialista, e sim de inclusão social, atrai a atenção de outros países. Em função desse interesse já estive no Paraguai, na Argentina, no Peru, na Guatemala, na Itália, na Espanha e na ONU.

Há iniciativas semelhantes no Chile, na Argentina, no México e na Guatemala. Cresce a consciência de que a fome é um flagelo a ser imediatamente combatido. Devemos nos empenhar para que a pobreza, à semelhança da escravidão e da tortura, seja considerada crime hediondo, grave violação dos direitos humanos.

O presidente Lula quer evitar no exterior o que logrou no Brasil: que se pretenda combater a fome apenas com distribuição de alimentos. Se um país rico envia toneladas de comida às regiões mais pobres do mundo ele incorre em quatro erros: justifica seus subsídios agrícolas; destrói as culturas locais; aumenta a dependência dos beneficiários; e favorece os políticos corruptos que distribuirão os donativos. Já bastam o fracasso da Aliança para o Progresso, nos anos 60, e da Revolução Verde, na década seguinte, para sabermos por onde não ir.

A proposta é mobilizar recursos mundiais, dos quais o Brasil não será beneficiário, para não levantar suspeitas de advogar em causa própria. Esses recursos, supervisionados pela ONU, financiariam projetos de empreendedorismo, cooperativismo e desenvolvimento sustentável nas regiões mais pobres. Pois fome não se combate com donativos, nem apenas com transferência de renda. Precisa ser complementada por políticas efetivas de mudanças estruturais, com as reformas agrária e tributária, capazes de desconcentrar as rendas fundiária e financeira. Tudo isso amparado por uma política ousada de insumos e créditos às famílias beneficiárias, que devem ser alvo de um intenso trabalho educativo na linha de Paulo Freire, de modo a se tornarem protagonistas socioeconômicas e sujeitos políticos e históricos.

"Eu tive fome e me deste de comer", disse Jesus encarnado na figura do pobre. Combater a fome é uma exigência evangélica, um imperativo ético, um dever de cidadania e solidariedade, para que possamos tirar a humanidade dessa pré-história em que bilhões de pessoas ainda não têm assegurado o direito animal mais elementar - comer.

* Organizador, em parceria com outros autores, de "Fome Zero" (Garamond).

* Frei Betto, dominicano. Escritor.

28 de fev. de 2007

Tempos de Anticristo

Quando são confrontados com a suprema iniquidade, quando se ultrapassa aquele ponto de perversidade face ao qual até a razão cessa e o sentido de humanidade some totalmente, os cristãos recorrem a duas expressões bíblicas: a "abominação da desolação" e a "parusia do Anticristo". É o que sentimos face ao massacre dos inocentes em Beslan.

"Abominação da desolação" traduz uma situação onde o mal irrompe com tal virulência, que deixa os olhos esbugalhados, secas as lágrimas e mortas as palavras na garganta. Pois assim foi com as pessoas em Beslan. Depois, ao se enterrarem as vítimas, pareceu-nos ouvir as palavras de São Mateus por ocasião da matança dos inocentes por Herodes:"Em Ramá (Beslan) se ouviu uma voz, muito choro e grande gemido: são as mães que choram seus filhos e suas filhas e não querem ser consoladas porque os perderam e eles nunca mais voltarão". É a dor infinita e o luto sem fim.

"Anticristo" configura outra situação de extrema maldade, situação que pode ganhar corpo em pessoas e movimentos. Ele é o reverso do Cristo. Cristo não é originalmente um pessoa, no caso Jesus de Nazaré. Cristo é uma dimensão, um modo de ser e um título para designar a história do amor, da bondade, da doação, da compaixão e do perdão no mundo desde o justo Abel até o último eleito. Esta dimensão-Cristo se encontra presente em cada ser humano. Em figuras seminais como Buda, Krishna, Miriam de Nazaré, Gandhi, Dom Helder e Irmã Dulce se densificou de forma singular. Para os cristãos, apareceu de forma suprema, em Jesus de Nazaré. Por isso começou a ser chamado de Jesus, o Cristo. Mas bem entendido: ele não detém o monopólio do "Cristo" que se realiza também em outras figuras históricas.

A dimensão-Anticristo se opõe à dimensão-Cristo. Ela representa a história do ódio, da perversidade, da desumanidade, da destrutividade em supremo grau. Pode expressar-se em estruturas de grande injustiça, em ideologias que se propõem eliminar etnias e em políticas que optam pela truculência como única forma resolver problemas. E pode também ganhar corpo em figuras perversas, das quais o século XX nos forneceu exemplares aterradores.

O Anticristo faz uso de duas armas: da política e da religião. Pela política arrogante, bestial e tirânica se impõe a todos e sacrifica os opositores. Pela religião utiliza os símbolos sagrados e o nome de Deus para seduzir à sua causa e conferir legitimidade última à sua política perversa. Sua blasfêmia maior reside, segundo São Paulo, no fato de "erguer-se acima de tudo que se chama Deus".

A dimensão-Cristo e a dimensão-Anticristo se permeiam nos envolvendo a todos em enfrentamentos dramáticos. Há momentos em que a dimensão-Anticristo parece triunfar como agora. Irrompe de forma tão aterradora que nos paralisa e quase rouba a esperança dos justos.Em circunstâncias assim consola-nos o Mestre:"O Cristo aniquilará o Anticristo com um simples sopro de sua boca". Mas quando, Senhor, quando?

A categoria Anticristo foi esgrimida na história com o fim de alguém satanizar o outro. Devemos precaver-nos contra identificações fáceis. Mas há momentos como o atual em que a perversidade é tanta que devemos usá-la como denúncia e profecia. O Anticristo está, sim, entre nós, agindo em ambos os lados. Eles têm em comum o desprezo pela vida e a falta de piedade para com os inocentes. E são assassinos frios.

Leonardo Boff, Teólogo. Membro da Comissão da Carta da Terra.

27 de fev. de 2007

Festa na aldeia Krahô-Canela



História de Deus na História da gente. Nas tribos primeiras, raiz Ameríndia do povo da terra, da Terra sem Males, dos males da terra. Nos dias antigos do rio, da lua, da dança. Na História violenta de tantas conquistas e tantos martírios. Na História teimosa de tanta bravura vencendo os impérios do lucro e da morte. Na História de Deus feito gente na história. Na história da gente tornando-se Deus, na única História da terra e do céu. (Dom Pedro Casaldaliga – Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia – MT).

Todo grupo humano é culturalmente festeiro. Festejamos tudo na vida. Desde o nascimento de uma criança até mesmo festejamos a irmã morte em algumas culturas. Festar ou festejar é uma atitude humana-animal. Quantas e quantas vezes somos acordados pelo som festeiro dos pardais em suas danças nas manhãs que surge anunciando um novo dia porvir. Quantas vezes vemos o grupo de andorinhas deslizando numa atitude de festa nos ares e no vento de um cair da tarde anunciando a noite que está para chegar. A própria natureza é uma festa constante, pois tudo é vida. Nem mesmo a morte nos separa da vida, pois até mesmo a morte não é capaz de nos separar da vida que é uma Festa.

Na sociedade ocidental, judaica-cristã, festeja-se a fé, a vida, o aniversário, a memória, amor, a colheita, a produção etc. Tudo se festeja. A vida é uma festa e a festa é símbolo da vida. A aldeia está em festa. A maloca Krahô canta sua alegria, pois estão em marcha, retornando ao lar que lhes é de direito.

Hoje a maloca está em festa. É uma festa humana-divina, pois Deus também dança a alegria de um povo. Não seria demais pensarmos na promessa de Deus ao Povo de Israel no passado e promessa de Deus hoje ao Povo Krahô-Canela, a saber: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para liberta-lo do poder dos egípcios e para faze-lo subir dessa terra a uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel...” (Ex 3, 7-8). Deus viu o sofrimento de seu povo Krahô que está em Tocantins. O mesmo Deus de Israel ouviu o clamor do Povo Krahô contra seus opressores, ouviu o clamor por libertação. O poder dos latifundiários e do poder local não foram suficientes para se esconderem de Deus que os conhece e sabe de suas ações contra os Krahô. O Deus da Vida e da Festa se fez Krahô e habita entre nós, pois fez com que os índios subissem ou retornassem ao seu verdadeiro lar, uma terra que historicamente lhes pertence e que lhes foi tomada por seus opressores. Por isso, esse Deus da Vida e da Festa é um Deus Justo.

Para os cristãos, Deus se fez gente entre nós e ao se fazer gente, assumiu nossa história de alegrias e tristezas. Vale lembrar o que diz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes acerca do papel da Igreja no mundo de hoje: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (n. 01). Deus dança e a Igreja também dança de alegria junto com aqueles que sofreram para conquistar o direito de cidadania legítimo, direito a terra.

Depois de tantas cruzes no caminho do Povo Indígena Krahô-Canela, enfim a Páscoa-Ressurreição. Deus hoje se faz índio na esperança e nos sonhos desse povo irmão. Para nós cristãos tornou-se motivo de alegria pascal a participação nessa luta pela conquista da homologação das terras a estes irmãos e irmãs. Sabemos que muitas expressões de solidariedade se destacaram para conseguir pressionar o Ministério Público e o Juiz Federal com o objetivo de promover uma verdadeira rede de solidariedade humana para com os Krahô-Canela.


Os Krahô-Canela conseguiram suas terras. Sua luta foi nossa luta. Suas tristezas foram nossas tristezas que geraram gestos concretos de solidariedade por todo o Brasil. Localizados no estado do Tocantins, contaram com o apoio de muitos e muitas que colaboraram na campanha organizada pelos Direitos Humanos e por agentes de pastorais, entre eles, destaco dois personagens centrais: Dom Heriberto Hermes, bispo católico da Prelazia de Cristalândia e Padre Brás Rodrigues da Costa, sacerdote da Igreja Anglicana. Com seus testemunhos muitos outros entraram nesta rede de solidariedade criada para apoiar a conquista dos direitos de cidadania dos Krahô-Canela.

Foram quase 30 anos de angústia, dor, sofrimento, cruzes e a implantação de um projeto de genocídio a uma cultura, a um povo. Uma cultura da morte foi implantada para exterminar, massacrar e humilhar uma cultura que não conhecia as violentas formas de atuação do império do lucro, do medo e do capital. Para a lógica do capital, matar índios e tomar suas terras parece ser eticamente correto, pois nessa mesma lógica os índios não precisam de tanta terra.

Terra conquistada, sonhos recriados. Um novo sol urge na esperança. É Páscoa-Ressurreição na história de um povo que vence os males da terra. É hora de celebrar a festa da vida de um povo da terra, povo Krahô que também sonha com uma Terra Sem Males. É hora de repensar a cultura, os gestos, os símbolos, as tradições, os cantos e encantos milenares. É chegada a hora de rever a caminhada na alegria da conquista da Mãe-Terra, Pacha de todos os povos da terra, Gaia de sempre. Neste momento de alegria e de esperança torna-se propício o discernimento da caminhada feita na história. O caminho continuará apresentando novos desafios que serão assumidos para serem conquistados e outros superados. Mas, a dimensão da Festa jamais poderá ser perdida no tempo e no espaço, pois é nela que o Povo continuará resistindo e mantendo os rumos da história assumido pela luta social realizada para se (re) conquistar a tão esperada Terra Prometida.

A vida venceu a morte. O projeto de vida venceu, ao menos neste caso, o projeto da morte. Por isso, hoje tem festa na aldeia Krahô-Canela. Tem vinho novo no espírito da terra conquistada que é de todos e todas, ou seja, da comunidade Krahô.


Claudemiro Godoy do Nascimento

Agenda para o desenvolvimento social


Na campanha eleitoral de 2002, Lula instituiu o CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) integrado por empresários, dirigentes sindicais e personalidades da sociedade civil. Instalado o novo governo, foi criada a Secretaria Especial do CDES, diretamente vinculada à Presidência de República, com status de ministério. Coordenada em 2003 pelo ministro Tarso Genro, hoje tem à sua frente o ministro Jaques Wagner.

O CDES, que se reúne periodicamente em Brasília, conta com um Grupo de Trabalho de Fundamentos Estratégicos, que colabora na produção dos resultados do projeto "Brasil em Três Tempos". Seu objetivo é visualizar como será o nosso país em 2007, quando se inicia o próximo governo; em 2015, quando o Brasil deverá ter cumprido as Metas do Milênio propostas pela ONU; e em 2022, quando completaremos 200 anos de nossa Independência.

Pesquisa efetuada este ano entre os membros do CDES, a maioria empresários, revelou o Brasil que eles querem. O objetivo é obter consenso quanto aos fundamentos e as diretrizes de uma Agenda Nacional de Desenvolvimento. A imagem ideal é de um país que tenha sanado as carências básicas da economia e da sociedade brasileiras.

Quais são, na opinião dessas lideranças de nossa sociedade, os maiores problemas a serem enfrentados? Os principais são a concentração de renda, a desigualdade social, a pobreza e a miséria, somadas às deficiências de educação. É interessante constatar, primeiro, que não figura entre eles a falta de investimento externo ou o baixo índice de nossas exportações.

De certo modo, as prioridades estão todas enfeixadas numa única: redução da desigualdade social através de melhor distribuição da renda. O que teria impacto imediato no refluxo da miséria e da pobreza e, por sua vez, no desemprego e na estagnação econômica, apontados em segundo lugar e secundados pelas dívidas interna e externa e a dependência do capital estrangeiro.

Como combater esses problemas e alcançar os objetivos propostos? O CDES acredita que, entre as potencialidades favoráveis ao desenvolvimento socioeconômico do Brasil figuram, pela ordem: os recursos naturais, o turismo, a biodiversidade e o agronegócio, seguidos da criatividade de nosso povo e de sua diversidade cultural e étnica, bem como a geração de ciência e tecnologia em centros de pesquisas e universidades.

O Brasil acredita no Brasil. O que nos falta é uma agenda que defina a estratégia de desenvolvimento a ser monitorada pelo governo, porém assumida pelo conjunto da sociedade. Para chegar a ela é preciso abrir um amplo debate em que todos os atores sociais tenham voz e vez. Não se trata de tirá-la da cartola de um grupo de conselheiros. A meta é, no debate com eles e com outros setores da sociedade, criar as condições para que a nação possa pensar o país e encontrar soluções que nos arranquem do subdesenvolvimento, da injustiça, da violência e da dependência externa.

Há que ser realista. Somos uma nação desigual, eivada de preconceitos, com uma elite desacostumada ao diálogo, um grande contingente da população sem suficiente educação e informação, e um Estado desprovido de recursos para bancar, por si só, o crescimento econômico e o desenvolvimento social.

Há, por outro lado, aspectos positivos. Não fomos devastados por guerras, não estamos cindidos em ideologias antagônicas, não contamos com movimentos separatistas, nossa economia não se encontra mergulhada no caos e a sociedade, malgrado a miséria e a violência, não está desagregada em seus valores e ainda acredita que a saída se encontra em medidas institucionais.

Se o Governo Federal estivesse convencido de que só ele conhece o caminho das pedras, restando à sociedade seguir as vias que ele aponta, esse debate não estaria sendo proposto. Se o faz é porque tem consciência de que o Brasil do futuro tem que ser obra de todos os brasileiros(as). Mas para isso é preciso detectar os problemas e suas causas, estabelecer uma agenda de como enfrentá-los, convocar todas as forças sociais e levantar quais os recursos de que dispomos para alcançar os objetivos almejados.

Qual o Brasil que nós queremos? Eis o tema que deve ser intensamente debatido por todos os setores de nossa sociedade: sindicatos e Igrejas, ONGs e escolas, empresas e centros de pesquisa, grupos artísticos e equipes de esporte, trabalhadores, donas de casa, profissionais liberais e empregadores. Esse é o caminho para que, em 2022, a nossa Independência seja menos retórica e mais real.

* Frei Betto, dominicano. Escritor.

25 de fev. de 2007

O banquete das letras em um mundo de inclusão


É um assunto que está em todos os fóruns e encontros de educadores: a prioridade da alfabetização de todos para que possa existir verdadeira inclusão social. Em 2003, a ONU, sob a coordenação da UNESCO, iniciou a Década da Alfabetização. Cada ano consagra o 08 de setembro como dia internacional da educação. O objetivo é que os países e grupos comprometidos com a educação retomem esta opção e dêem novos passos para tornar a alfabetização uma realidade acessível a toda humanidade. A UNESCO calcula que ainda existam no mundo 860 milhões de adultos e mais de cem milhões de crianças sem acesso à educação básica e à escola.

No Brasil, o governo Lula declarou que a alfabetização é uma prioridade. O Ministério da Educação concluiu o ano passado otimista com sua atuação. Em dez anos (de 1992 a 2002), a taxa de analfabetismo no país que era de 16,4% entre as pessoas com mais de dez anos de idade, passou para 10,9%. De 1992 para 2002, a quantidade de crianças entre 5 e 17 anos de idade que não freqüentam escola caiu de 25% para 9,7%. Já na faixa etária de 7 a 14 anos, o percentual de crianças fora da escola desceu de 13,4% para 3,1%. Na faixa de 10 a 14 anos de idade, passou de 12,4% para 3,8%. Quanto ao gênero, na faixa de 10 a 14 anos de idade, a taxa de analfabetismo entre os homens foi de 5,1% enquanto a das mulheres foi apenas 2,5%, portanto menos da metade. A população com idade a partir de 10 anos até os jovens com ensino médio completo passou de 14,1% para 23,4%.

Estes dados são animadores mas devem ser lidos não só no seu aspecto quantitativo, mas no seu teor qualitativo. Antigamente se considerava analfabeto quem não sabia assinar o nome ou não conseguia ler uma carta que recebesse. Paulo Freire insistia que analfabeto não é quem não sabe escrever e sim quem não consegue expressar-se, ou seja, ser ativo no diálogo da sociedade. A própria noção de analfabetismo passa pela concepção de exclusão social.

Na tradição da Igreja, dizia-se sempre que Santo Antão, patriarca dos monges, eremita do século IV no Egito, era analfabeto. Os estudos atuais revelam que ele falava bem copta (egípcio), mas não se expressava em grego e na época as línguas do Império eram grego e latim. Antão era culto na sua tradição copta, mas analfabeto na linguagem do Império. Hoje existem analfabetos funcionais (sabem ler e escrever, mas na prática não conseguem usar este recurso), analfabetos virtuais (não sabem usar um computador ou a internet) e assim por diante.

Um elemento fundamental no trabalho de alfabetização, tanto de crianças como de adultos é a diversidade de culturas. É bom saber que, no sul, existe uma Universidade de Estudos Negros e que, em todo o país, já se somam em dezenas as escolas para as crianças, nas quais a educação é bilíngüe ou é dada em língua indígena. Para adultos, a diversidade não só de línguas, mas de culturas continua sendo desafio maior e mais complexo.

Em fins de julho, Porto Alegre sediou o 3o Fórum Mundial de Educação que contou com mais de 22 mil pessoas de 47 países. (Ver no site http://www.campanhaeducacao.org/). Não deixa de ser elucidativo ver os temas escolhidos para as conferências maiores que nortearam todo o Fórum: A Educação para Além do Capital, Conhecimento, Poder e Emancipação e Solidariedade e Democracia e Paz: outro mundo possível. Estas reflexões geraram uma Plataforma Mundial de Lutas pela Democratização da Educação que se traduz em uma lista de 16 pontos, elaborados a partir das discussões e diálogos entre os/educadores/as e que são propostos aos governos e a toda a sociedade internacional.

A meta é defender, intransigentemente, a educação pública em todos os âmbitos e a obrigação intransferível do Estado de garanti-la, apresentar aos governos nacionais uma agenda que priorize programas para a eliminação do analfabetismo, pela inclusão educacional da população de baixa renda e contra a exploração do trabalho infantil, além de exigir dos governos a valorização dos trabalhadores(as) da educação, o respeito aos seus direitos profissionais e a garantia de condições dignas de trabalho. São elementos sem os quais não adianta falar em prioridade para a educação porque seria como quem atravessar o mar e não se preocupa em ter o meio de transporte.

Alfabetizar não pode ser apenas a operação mecânica de decifrar palavras e escrever um código de sons reconhecidos pelos outros como letras e sim de ter acesso à comunicação mais profunda que liga às pessoas, comunidades e povos para termos uma família humana que viva a dignidade da justiça e da paz.


* Irmão Marcelo Barros, Monge beneditino.