14 de fev. de 2007

Uma Carta da Prisão


Este ano, a Campanha da Fraternidade da CNBB, que vai da Quarta-Feira de Cinzas ao domingo de Páscoa, é dedicada aos povos indígenas. Reproduzo aqui uma carta que escrevi a uma religiosa salesiana, há 30 anos, na Penitenciária Regional de Presidente Wenceslau, SP, quando me encontrava preso sob a ditadura militar.

Caríssima irmã Yolanda Ladeira,

Quando fomos integrados à população carcerária, os presos quiseram que déssemos aulas para eles. Aqui a maioria é semi-analfabeta, e o presídio só oferece curso até o 3° primário. O pessoal, sedento de cultura, logo nos cercou, na esperança de que ensinássemos o que sabemos (eles chegam a reler o mesmo livro três ou quatro vezes). Todavia, a administração não permitiu. Em torno da gente sempre houve a suspeita de que só abrimos a boca "para fazer proselitismo".

Com o tempo, entretanto, descobri que a simples convivência permite que haja entre nós, presos políticos e comuns, uma troca de conhecimentos. Eles têm muito a nos ensinar. A nossa formação é acadêmica, intelectualista, abstrata, livresca. A deles é empírica, pragmática, forjada no sofrimento, rica de sabedoria. A grande diferença é que nós sabemos que sabemos e eles não sabem que sabem. Ajudar a fazê-los ver o quanto sabem tem sido a nossa preocupação.

Outro dia, conversando com Paulão, perguntei a ele:

Quem tem mais cultura, um médico ou um índio?

O médico, é claro respondeu-me.

Por que o médico?

Porque foi à escola, leu muitos livros, aprendeu a curar doenças e fazer operações, tirou um diploma.

Então me diga uma coisa: o médico sabe pescar com arco e flecha, fazer tinta de genipapo, reconhecer o grito da capivara, distinguir plantas medicinais, transformar tronco de árvore em canoa, cultivar mandioca e milho, tecer a fibra de buriti, acender fogo sem fósforo, caminhar na mata sem bússola e preparar carne sem sal?

O companheiro pensou um pouco e meio surpreso respondeu:

É, não sabe não.

Como é, então, que você diz que o médico tem mais cultura que o índio?

Pelo que vejo, o médico tem sua cultura de médico e o índio tem sua cultura de índio.

A partir desse momento, Paulão passou a compreender algo que muitas pessoas diplomadas em universidades ignoram (apesar das obras monumentais de Lévi Strauss, Darcy Ribeiro e Paulo Freire): não existem homens mais cultos que outros, existem culturas paralelas e socialmente complementares.

O fato de a raça branca julgar como cultura só aquilo que ela sabe, levou-a a "pacificar" os índios. A quem fazem mal os "selvagens"? A ninguém. Vivem a sua vida, a sua cultura, a sua história. Mas nós, os brancos, nos julgamos uma raça superior (e este complexo nos levou a dizimar os vermelhos; isolar os amarelos; e subjugar os negros). Cremos que cultura e civilização são aquilo que constitui o nosso patrimônio. Esquecemos que o índio tem a sua própria civilização que, em muitos aspectos, é mais avançada que a nossa (vide astecas e maias). E com a nossa amnésia continuamos nos embrenhando pela floresta adentro, poluindo o ar e a água, subornando o índio com presentes de grego e corrompendo-o com promessas ilusórias. O preço de cada passo de nosso progresso é a ruína de mais uma tribo.

Um grupo japonês acaba de instalar-se no Brasil para exportar produtos de artesanato indianista. Sem falar da exploração que isso vai significar para o índio, o que todos parecem ignorar (não os índios, mas autoridades e empresários) é que esse artesanato depende de aves que se tornam cada vez mais raras. Aqui o preço será a extinção dessa fauna.

Venho acompanhando com muito interesse essa expedição que, junto ao rio Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, procura "pacificar" os índios gigantes Kranacaroes. Quanto mais a expedição avança, sob cobertura aérea, mais os índios se afundam na mata. Às vezes imagino o cacique reunindo a tribo assustada para explicar o que se passa:

"Irmãos, procurai estar sempre atentos, porque a qualquer momento esses caras pálidas selvagens podem alcançar-nos. Até a presente lua temos gozado da mesma paz e prosperidade em que viveram os nossos antepassados. Temos guardado nossa inocência, sem que o nosso coração se deixasse contaminar pela ambição e pela malícia; temos vivido com o que a natureza nos fornece, sem necessidade de apoderar-nos dos bens da terra ou de delimitar nosso território. Graças aos nossos deuses, jamais conhecemos a doença, a fome e a inimizade; nossos jovens são fortes e corajosos, nossas mulheres férteis e puras. Eis que agora os selvagens quebram nossa secular tranqüilidade. Ameaçam-nos com seus paus de fogo e suas lâminas de ferro; assustam-nos com seus pássaros metálicos e nos armam ciladas com bugigangas, sem as quais temos vivido luas e luas de felicidade. Vê-de como eles são: envergonham-se do próprio corpo e cobrem a pele; caminham devastando a mata, afugentando animais e secando as plantas. Querem aprisionar-nos e confinar-nos em seus parques, para que possam destruir a nossa terra e a nossa tribo. Contudo, não vos submeteis sem lutar. A terra que pisamos conheceu o homem quando aqui chegaram os nossos antepassados, que a legaram aos filhos de seus filhos. A nós ela pertence e, por ela, que nos dá vida e alimento sem exigir demasiado trabalho, combateremos até os limites de nossas forças".

Se, dentro de alguns anos, não houver mais índios no Brasil, a Igreja terá de reconhecer sua parte de culpa nisso. No passado, nossos missionários internaram-se na selva sem preparo e contaminaram os índios com o seu caldo de cultura europeizada. Acreditavam que civilizar era ensinar o índio a ter vergonha da nudez e usar roupa, e repudiar a vida coletiva da aldeia e aprender nossas línguas, e adquirir nossos costumes. Muitos missionários abriram caminho para os mascates que exploraram o índio, comprando seu artesanato e sua mulher por uma garrafa de álcool. Sob o pretexto de anunciar o Evangelho, contribuímos para o extermínio da raça. Levamos a morte onde havia vida.

São raros os missionários que, como Anchieta e Antônio Vieira, respeitaram a cultura do índio e tudo fizeram para preservá-la. Raros os que se tornaram índios com os índios. Mas felizmente eles existem e são a nossa esperança.
Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
Escrito em 2002.

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