18 de jun. de 2007

Reforma agrária, justiça social e soberania popular

Claudemiro Godoy do Nascimento *

Adital - O que podemos esperar do 5º Congresso Nacional do MST? Talvez seja esta a pergunta que muitos e muitas estarão se fazendo durantes estes dias no qual acontece em Brasília o Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O encontro que foi aberto oficialmente no dia 11 de junho irá possivelmente romper com a política agrária do governo Lula que descambou para o ridículo. A principal tarefa do MST é continuar fazendo com que a sociedade brasileira não perca o sonho e a utopia de que é possível outro mundo, outra sociedade, outra soberania, outra política e, principalmente outra reforma agrária. Somente o MST pode clamar por tais demandas já que simboliza o que há de mais genuíno nos movimentos sociais do Brasil. Uma cidade de lona será construída em Brasília durante o Congresso Nacional que receberá cerca de 18 mil delegados dos Projetos de Assentamentos e de Acampamentos espalhados pelo Brasil.
As místicas realizadas nos encontros do MST representam quase sempre a memória da luta dos trabalhadores contra os latifundiários e a resistência contra as violências implementadas pelo Estado e pelos grupos oligárquicos do meio rural que hoje são representados pelo laço matrimonial entre o Agronegócio e o Latifúndio, que não se realiza ainda devido as ações coletivas realizadas pelos trabalhadores rurais que resistem em suas lutas sociais. Na mística, realizada sempre no início das manhãs ou no retorno do almoço, ou ainda, nas vésperas que antecedem o findar do sol que nos ilumina, é quando o povo trabalhador se une ao clamor do Deus da Vida. Lembrar os mártires, os companheiros da caminhada, mulheres, homens, jovens e crianças, significa lembrar que Deus caminha com seu povo na busca da justiça. Lembrar as organizações que apóiam a luta significa pensar que Deus suscita companheiros e companheiras dos lugares donde menos esperamos, mas que estão ali, unidos e fortes na marcha em defesa da dignidade humana, entre elas, a Comissão Pastoral da Terra que foi uma espécie de irmã mais velha do MST.
Além disso, o Congresso do MST refletirá e abordará durante estes dias a conjuntura política brasileira e internacional e os avanços e refluxos do MST durante estes 23 anos de história. A saudação aos participantes do encontro foi feito por representantes de organizações que apóiam incondicionalmente as ações e lutas do MST e pelo movimento Marina Santos abriu oficialmente o 5º Congresso Nacional. O curioso foi a falta de um representante do governo Lula na abertura do Congresso o que representa um indício de que as relações estão estremecidas.
Houve uma reflexão sobre a conjuntura internacional e o grupo de mística apresentou a luta dos trabalhadores dos cinco continentes com uma águia norte-americana voando sobre suas cabeças o que representa que os povos do Sul ainda não conseguiram sair da dependência estadunidense. O principal nome dessa análise conjuntural foi François Houtart, professor da Universidade Católica de Louvain na Bélgica, que assumiu a defesa dos movimentos sociais em todo o mundo. Para ele, vivemos numa crise do neoliberalismo e o declínio do imperialismo norte-americano, mas ainda hegemônico e talvez os movimentos sociais precisem ficar atentos. Uma coisa é queda do império, outra é a queda do capitalismo. O capitalismo procura novas fronteiras, entre elas, a transformação da agricultura camponesa em espaços de mais-valia no campo com o chamado Agronegócio e Hidronegócio. E reafirma veemente o Professor François Houtart: "os movimentos sociais devem se fortalecer, lutar contra as guerras e contra a lógica do capitalismo. O modelo capitalista de desenvolvimento destrói a natureza e condena à morte milhares de pessoas. O capitalismo não tem uma espiritualidade que pense e objetive justiça social. A Teologia da Libertação tem que reviver em nossos movimentos" (Fonte: CPT).
No século XX, o grande inimigo foi o capitalismo, isso serviu para que os movimentos sociais e populares passassem da resistência à ofensiva. Resta agora construir novas redes de solidariedade entre os movimentos para que se fortaleçam num objetivo comum e encerra dizendo: "Os movimentos populares tem que ter a consciência que se trata de uma luta de classes mundial contra o capitalismo. São lutas comuns que precisam reforçar o protagonismo dos movimentos" (Fonte: CPT).
Além da luta pela terra, o MST é convocado a construir justiça social e soberania popular. Significa que os paradigmas almejados pelo movimento social se diferem da lógica do governo Lula que anuncia como seu carro chefe, aquilo que conduzirá seu segundo mandato, o PAC. A busca incondicionada por crescimento econômico se difere da busca incondicionada por justiça social realizada pelo MST e outros movimentos sociais que se unem ao mesmo clamor. O PAC representa a adesão ao capitalismo e suas conseqüências que poderão contribuir ainda mais para aumentar a desigualdade social, por outro lado, poderá também contribuir para o desastre ambiental que se inicia em nosso planeta.
O PAC de Lula representa apoio ao Agronegócio e a Transnacionais que continuarão sua investida contra os trabalhadores rurais a todo e qualquer custo, pois se busca somente a mais-valia, o lucro em nome da espoliação de milhões de famílias. Além disso, o PAC representa o Hidronegócio que neste dia inicia, de forma autoritária, a tão falada Transposição do Rio São Francisco. O mercado falou mais alto do que as vozes dos trabalhadores rurais ribeirinhos. Como explicar tais atitudes de um governo que nasceu a partir da luta dos trabalhadores no Brasil?
Não é a proposta dessa reflexão, mas, superficialmente penso que a questão se encontra no modelo de trabalhador que temos no Brasil. Há dois modelos: o trabalhador operário, sindicalizado, urbano e que não teme realizar acordos (pois já realizam acordos com seus patrões) e, agora, a realizam na política também; e, existe o trabalhador camponês representado pelo MST e também por outros movimentos sociais do campo que não possuem a mesma lógica do operariado, não possuem sindicatos, mas coletivos e assembléias populares, são camponeses mesmo tendo uma concepção do urbano e o principal, não realizam acordos com os latifundiários e fazendeiros, portanto, também na política não realizam acordos que poderá distorcer o sentido da luta.
O que quero dizer, resumidamente, pois se necessita de uma análise histórica mais completa, é que o mundo de Lula não é, definitivamente, o mundo do MST. A lógica que permeia o mundo de Lula é a lógica de uma concepção operária de luta sindical que demanda por reivindicações que possibilita acordos com os patrões. Já a lógica do MST e dos trabalhadores rurais é a lógica de uma concepção camponesa de luta social que demanda por reinvidicações que não possibilita jamais qualquer acordão com os latifundiários e fazendeiros. Daí a incompatibilidade de Lula compreender a importância da agricultura familiar camponesa em substituição a uma lógica compensatória de agricultura familiar politicista.
Para o MST, soberania popular significa uma soberania a partir dos desejos e anseios do povo e não de governos e, muito menos, do mercado. Uma das bandeiras do MST para que consigamos soberania popular está na educação. Aqui também as lógicas são contrárias entre o PDE de Lula e o desejo de uma educação popular que surja a partir dos interesses e anseios de cada comunidade. Universalizar o ensino significou para o MST uma amordaça colocada na boca das comunidades espalhadas pelo Brasil e que hoje não possuem autonomia alguma para construírem o seu projeto político pedagógico, com sua matriz curricular, com seu jeito próprio de pensar e de fazer a educação e as ações pedagógicas. O PDE não passa de mais um plano que se destina a aumentar o fosso entre educação crítica e educação mecanizada para o mundo do trabalho.
Dessa forma, podemos perceber que o MST não pode deixar de calar-se na sociedade brasileira. É o único movimento social que pode, de fato, estremecer as armaduras do capitalismo implantado nas lógicas de um governo que se diz defensor dos trabalhadores, mas que faz acordos políticos com latifundiários, fazendeiros, banqueiros e com empresários que são contrários às demandas sociais já que pensam tão somente em suas posses e propriedades privadas.
É exatamente por isso que o MST pode contribuir para que não percamos os sonhos, as esperanças, as utopias de que é possível realizar uma transformação histórica na sociedade brasileira acostumada a ver escândalos políticos de corrupção e considerar uma ação normal. O MST simboliza exatamente esse sonho que não pode acabar. Muitos dirão: Eles querem a Revolução Proletária. Diria que não, pois os papéis hegemônicos se inverteriam caso se quisesse realizar Revolução Proletária. O que se quer é justiça social para todos e até mesmo para os fazendeiros e latifundiários que devem aprender com o MST a partilhar o pão.

* Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação pela Unicamp. Doutorando em Educação pela UnB. Pesquisador do Centro Transdisciplinar de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural - CETEC/UnB

Envio para libertar a Terra (1)

Marcelo Barros *

Adital - Para mim (2) é uma alegria imensa estar aqui neste 5º Congresso do MST. Sinto-me quase como se estivesse voltando para reencontrar os companheiros que me acolheram em minha ida a Ronda Alta, em 1980, quando, junto com outros companheiros fui detido pelos homens do famoso Coronel Curió... A diferença é que naqueles contatos primeiros, estávamos arriscando a vida e ainda com um projeto iniciante. Agora, vemos um movimento consolidado e vitorioso, mesmo se com desafios sempre novos. E é justamente sobre desafios e perspectivas de agora para frente que eu quero conversar com vocês aqui. Sou monge e a gente tem certos vícios de profissão que não tem jeito, por mais que se critique, acaba sempre retomando. E hoje este condicionamento de religioso me faz querer fazer desta conversa aqui com vocês um envio.... Uma espécie de pedir a bênção à Mãe Terra, à Pachamama, para um imenso desafio que nós temos pela frente neste Brasil do agronegócio e do etanol. E quando a gente fala de missão, tem de ter claro qual a missão, por que (as motivações) e como podemos cumpri-la. E estes são os três passos que quero agora percorrer com vocês.
1. Libertar a Terra do destino de mercadoria
Nós somos, todos, filhos e filhas da Terra. Eu me lembro na Bolívia de ver, no mês de agosto, quando a terra descansa no tempo da entressafra, lavradores dizerem: Neste tempo agora, ninguém deve arar nem plantar nada, porque a Pachamama está naqueles dias que a gente deve respeitar. E de repente, chega uma empresa capitalista e devasta tudo, desrespeitando os tempos e os ritos. Não podemos deixar de sofrer ao ver nossa mãe agredida, explorada, estuprada por este modelo de organizar o mundo.
Há muita gente por aí que ao ver nosso congresso ou se escutassem minhas palavras, nos julgariam sem lógica. Atrasados. Contra o progresso. Por que eles têm outra lógica, uma lógica que nós julgamos perversa. A lógica deles é o mercado. O mercado sempre existiu no mundo e, em si, é uma coisa boa de relação humana e intercâmbio.... Eu adoro ver estas feiras de troca-troca que tem em alguns lugares do Brasil. No Equador, tem uma imensa.... Não se usa dinheiro. Troca-se um casaco de frio por uma flauta indígena, um livro por um CD e assim por diante... O mercado nacional e internacional é uma instituição de intercâmbio e sociabilidade humana, como a escola, uma Igreja e mesmo um governo. Em sociedades antigas, o mercado era subordinado às instituições sociais. A família, a Igreja, o governo.... Ninguém vendia uma coisa a um irmão ou a um parente para ter lucro... A Igreja fazia dias de feriado que todo mundo obedecia e fechava o mercado naqueles dias. Os governos garantiam preços justos para os pobres. O mercado era controlado. A sociedade capitalista emancipou o mercado e, ao contrário, colocou a sociedade sob o domínio do mercado. Aí o mercado impõe suas leis, por exemplo, o individualismo. Cada um por si e Deus por ninguém. O que importa é o interesse individual. Isso é da lógica do mercado capitalista. Não pode ser diferente. A única coisa que o mercado entende é de mercadoria. Se não há mercadoria, não há mercado. Mercadorias são bens ou serviços produzidos para serem vendidos a qualquer pessoa por um preço definido pela oferta e procura. O conceito de mercadoria é chave, porque a tendência do mercado é tratar todos os bens e serviços como se fossem mercadorias. Mercadoria é o fruto de uma produção humana. O trabalho humano não é mercadoria. A Terra não é mercadoria. A Água não é mercadoria. A própria vida não é mercadoria. Mas, a lógica de funcionamento do mercado é fazer de tudo mercadoria. E aí os valores da sociedade de mercado são a livre iniciativa, a competição, a capacidade de empreender, etc. Por isso, nós não podemos condenar apenas o capitalismo selvagem e ser contra os excessos do mercado. Não. Temos de ser contra este tipo de mercado, ou este tipo de sociedade que gira em redor do mercado.... (3). Por causa dele, segundo os estudiosos, todas as noites, ao menos um terço da humanidade vai para cama com fome.
Precisamos libertar a Terra, libertar a humanidade e libertar a nós mesmos desta escravidão (4). Há cinco séculos, dominava o colonialismo. Havia a escravidão negra, indígena e outras. Agora existem o que chamam de políticas de desenvolvimento. São formas de controle tão efetivos e sistêmicos quanto as políticas escravagistas de antes. Antigamente um exército estrangeiro vinha, invadia e ocupava a terra dos pobres. Agora, fazem isso com tratores e com soja ou, agora o governo brasileiro quer fazer com cana de açúcar para o etanol. A finalidade é pagar a divida externa brasileira e o resultado é mais exclusão social e mais destruição da natureza. É a invasão do Capitalismo no campo. Como resistir e como vencer esta invasão dominadora?
Minha amiga e assessora de comunicação, a jornalista Thânia Coimbra (de Goiânia) perguntou a um companheiro da luta pela terra como resistir a isso e ele respondeu que são necessárias quatro motivações ou condições e quatro elementos pelos quais devemos lutar (5).
As motivações são as seguintes:
1) - Ser dono do seu tempo, ser livre para fazer suas escolhas, ter liberdade de ir e vir.2) - Testemunhar o fruto do próprio trabalho: que alegria a pessoa colher o que planta e ter o gosto de ver beleza naquilo que faz: Para o lavrador, existe alegria maior do que ver o campo florido, o fruto maduro e a mesa com fartura?3) - Valorizar a qualidade de Vida que se tem quando se vive no campo. Um ritmo de tempo mais tranqüilo, a gente conhece os vizinhos e se faz amizade. A comida é de boa qualidade. São coisas simples que nos dão força de resistir.
Ele ainda acrescentou uma quarta coisa que pode ser muito importante: o acesso à tecnologia, muitas vezes simples, mas que facilita e permite resultados melhores.
Quanto aos quatro fatores que criam uma verdadeira muralha de resistência ao capital:
1º - manejo eficiente e preservação adequada2º - uma economia baseada no bem-estar e bem-viver e não apenas no lucro3º -auto-suficiência de mão de obra4º -senso de comunidade
Qualquer quebra em um desses pontos fragiliza a resistência ao capital e passa, pelo contrário, a exigi-lo. Porque se o manejo é inadequado os recursos escasseiam e a safra não é boa. Se ele for seduzido pelo lucro, ele assimila a lógica do capital; se começa a contratar mão-de-obra passará fatalmente a explorá-la em algum momento. Diferente dos mutirões e da troca de ajuda entre vizinhos, claro. Se ele não se insere na comunidade ele não resiste.
Neste contexto, é bom insistir que temos de lutar contra duas idéias falsas: 1ª - a crença de que quanto mais melhor. O mais nem sempre é melhor. Nem sempre o crescimento ajuda. Por exemplo, no organismo humano, o câncer são células que se multiplicam desordenadamente. Neste caso, quanto mais, pior... Na sociedade também, o crescimento pelo crescimento não tem ajudado a humanidade e a vida. 2º - É preciso romper com a suposição de que o único meio de acabar com a pobreza é o econômico, quando é justamente ele que gera a pobreza.
2. Re-encantar a Terra com nossa vida.
O nosso grande mestre Celso Furtado ensinava que a idéia de desenvolvimento desvia as atenções da gente da tarefa básica que é identificar as necessidades fundamentais da coletividade. Um conhecido pensador indiano, Amartya Sen, diz que só existe verdadeiro desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem para ampliar as capacidades humanas, entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser ou fazer na vida.
Precisamos estabelecer novas relações sociais de produção. É preciso superar o mercado na sua forma atual, como instituição reguladora das relações sociais de produção. Instituições como a "economia solidária" ou a "cooperativa" podem substituir bem o mercado na regulação da produção. Elas tratam como mercadoria apenas aquilo que é fruto do trabalho, e não os demais meios de produção. O importante é que se articulem em rede nacional e até internacional para ser realmente eficientes. Se ficar só uma cooperativazinha local, isolada, a gente sabe que não consegue sobreviver e realizar sua missão.
Quanto à economia, o que parece desvantagem nos termos atuais, pode ser visto como vantagem no momento da crise ecológica. O transporte de mercadorias tem um custo ecológico que só se justifica para bens de primeira necessidade que não possam mesmo ser produzidos localmente. Não vai dar mais para transportar camisas de malha ou guarda chuvas da China para o Brasil. Num sistema de "economia solidária" não se pode pensar em economizar no valor do dinheiro se isso implicar uma deseconomia ecológica. A coisa tem que ir por aí: unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo padrão de consumo material (em relação aos parâmetros atuais nos países ricos).
À primeira vista, falar em baixar o padrão de consumo pode assustar, mas só os ricos terão este problema. E os pobres que não têm, mas sonham em ter automóvel e todos os equipamentos de luxo que se importam ou são feitos com prejuízo da natureza.
Isso significará uma vida sem graça? De jeito nenhum! Temos que pensar aqui no fantástico desenvolvimento das forças produtivas que não são somente materiais e a partir de um modo de produção cooperativo e solidário. Isso significa, em primeiro lugar, o fim da apropriação privada dos avanços científicos e tecnológicos. Todo avanço intelectual deve ser socializado, tornando-se um bem coletivo. Assim como o lucro não é a meta das unidades de economia solidária, também não deve ser a meta dos pesquisadores e intelectuais: a recompensa de quem descobre e inova pode ser o prestígio, o "status" e outras formas sociais de honrarias. O resultado é que vamos poder viver daquilo que produziremos com o mínimo desgaste ecológico. Vamos compensar o nível menor ou mais baixo de consumo material por um alto nível de consumo imaterial: acesso à cultura, à arte, lazer. Isso significa melhor qualidade de vida. Teremos, então, uma verdadeira comunhão entre a humanidade, a Terra e toda a natureza. Para os pobres, isso só será ganho. Não será fácil, porque será necessário quebrar os sonhos ilusórios que mantém a esperança dos pobres na sociedade de mercado (sonho de um dia viver como rico) para que eles nutram outros sonhos: uma vida material simples complementada por uma rica e variada vida cultural. Se vocês pensarem bem, verão que quem pode ajudar a humanidade a viver isso serão os empobrecidos do mundo, seremos nós que estamos aqui reunidos e todos os companheiros de caminhada que queiram se juntar conosco. 3 - O envio que vocês recebem hoje
Talvez alguém ainda se pergunte se estas transformações são possíveis. Não somente são possíveis, como já começaram a se realizar. O acontecimento mais importante destes últimos 20 anos na América Latina foi a ressurgência dos povos indígenas e as conquistas importantes que eles conseguiram viver em vários paises do continente. Depois de cinco séculos de tanto sofrimento, eles se organizam e assumem a consciência de cidadania e de soberania. É a partir dos movimentos camponeses e indígenas que elegeram um índio presidente da Bolívia e conseguiram a vitória no Equador, sem falar na Venezuela. Mas eles não só elegem presidentes. Também derrubam. Derrubaram três na Bolívia e três no Equador. Um amigo passou na Bolívia e perguntou a uma velha índia que vendia artesanatos na rua.
- Como vai Evo Morales? Ela respondeu:- Vai bem. Mas, se não for, nós o tiramos....
Esta força indígena é nova. E abre novas questões para a História. Na véspera de assumir a presidência da República, Evo Morales recebeu uma consagração indígena em Tihuanaco. E ali ele falou o seguinte aos índios: "Se nós sobrevivemos a cinco séculos de decreto de extermínio, é porque somos portadores de valores necessários para toda a humanidade".
Um primeiro envio deste congresso pode ser o de acertarmos um diálogo mais profundo e permanente com organizações indígenas para organizar melhor a luta comum pela Terra e pela soberania nacional e comunitária, mas para um projeto além disso: para escutarmos os índios e aprendermos com sua sabedoria e seus valores.
Quais são estes valores? Este estilo diferente que devemos dar à nossa luta pela Reforma Agrária e por um país livre e mais justo?
O objetivo é garantir a todo mundo a possibilidade de ter uma vida longa e saudável. (Um texto bíblico - Isaías 65 - diz que será considerado uma tragédia morrer com menos de cem anos). É fazer com que todas as pessoas possam ter um nível de vida simples, mas digna. É viver a relação amorosa com a Terra e com os espíritos que regem a Terra. Vamos aprender isso com as comunidades indígenas. Vamos retomar o gosto de viver em comunidade e de acordo com a cultura local. Revolucionar a relação entre homem e mulher, entre os companheiros e entre nós, os animais e a natureza.
Para viver isso, vamos assumir uma nova atitude diante da vida. Leonardo Boff tem trabalhado muito bem as virtudes para o século 21: hospitalidade, respeito, tolerância, convivialidade... (6) Elas podem ser resumidas na atitude da compaixão, no sentido de "sentir com" e portanto no profundo respeito a todas as vidas, tanto humanas, como a vida animais. Nós nos desumanizamos ao tratar outros seres vivos como coisas e não como nossos semelhantes, companheiros de vida no Planeta.
Enfim, temos que caminhar por dois lados: uma atitude pessoal de amor à vida, que se for verdadeira deve se refletir na compaixão, e uma militância política, que supere o mercado como forma de regulação da produção e crie uma forma mais humana de relação entre os seres humanos e entre estes e a natureza.
É importante que os companheiros do MST, seus dirigentes e seus militantes, nós todos, assumamos a luta pela Reforma Agrária, justiça social e soberania nacional de um modo novo, a partir de novas relações entre nós e com a Terra. É preciso ser testemunha de um amor que fecunda o universo, de uma energia de compaixão que está em nós e age por nós. É isso que se chama "espiritualidade da Terra". E aí viveremos desde já uma economia de reciprocidade e partilha.
Vocês sabem que em Israel, a terra da Bíblia, a terra de Jesus tem dois mares. O Mar da Galiléia é fértil. Tem muita água e muito peixe. O outro se chama Mar Morto. É a maior depressão que existe no planeta Terra e a água é tão salgada que nele não existe vida. Não tem peixe. Não tem algas. Não tem nada. Uma antiga lenda judaica perguntava por que os dois mares são tão diferentes. E os rabinos respondiam: o Mar da Galiléia recebe os rios e riachos que descem das montanhas de Golam com a neve descongelada e deixa suas águas saírem para o rio Jordão. É um mar que recebe e dá. O Mar Morto é morto porque recebe as águas do rio Jordão, mas retém, prende. Dali não sai nada. Os rabinos explicavam que ele não sabe receber, porque receber é estabelecer uma relação com a natureza e com o universo. Com gente também é assim. Se a pessoa quer só receber, mas não repartimos, nos separamos da Vida verdadeiramente Vida (7).
Quem aceita o desafio de viver isso cotidianamente, fique de pé. Em um momento de silêncio, retome o compromisso fundamental pelo qual está nesta caminhada. Verifique se está começando por si mesmo estas novas relações de justiça e de solidariedade amorosa com os outros e com a Terra. Deixe vir à sua pele, toda a amorosidade da qual você é capaz e olhe os seus companheiros e companheiras em redor de você desta forma, Olhe assim o mundo que nos cerca e com esta energia amorosa saudemos a Mãe Terra. (toquemos na Terra). Agora, nos sintamos mergulhados, imersos em uma grande tenda que é este mistério de compaixão presente no universo. Os antigos judeus chamavam este mistério de Shekináh, uma presença feminina e materna que é a Terra, que é o Espírito Divino e é a utopia, a esperança de uma Terra repartida e justa que todos temos.
Proponho a todos que se abracem, abraçando o vizinho/a vizinha dos dois lados, perto de você.
(Dança judaica: Shekina)Obrigado e um beijão para todos.
Notas:
(1) Palestra no encerramento do 5º Congresso Nacional do MST, Brasília, 15 de junho de 2007.(2) Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor dos movimentos populares e da Pastoral da Terra na América Latina. Tem 30 livros publicados e acompanha como amigo e assessor o MST desde o seu nascimento. (3) Para este número, recebi assessoria do nosso amigo e companheiro, professor Pedro Ribeiro de Oliveira, assessor dos movimentos populares e das Cebs. (4) Nesta parte do texto, sigo orientações e sugestões do amigo e companheiro, professor Pedro Lapa, diretor comercial do Banco do Nordeste, importante aliado do MST em vários projetos sociais em todo o Brasil. (5) A jornalista Thânia Coimbra me passou estes dados por email. (6) Cf. LEONARDO BOFF, Virtudes para um novo tempo, 3 volumes, Vozes... (7) Cf. NILTON BONDER, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 20.

* Monge beneditino e autor de 26 livros. mosteirodegoias@cultura.com.br

23 de mai. de 2007

Que modelo de catolicismo Bento XVI promove?

"É notório que no Brasil persistem dois tipos de catolicismo: o devocional e o do compromisso ético", diz Leonardo Boff. Afirmando que Bento XVI reforça o modelo devocional, Boff enfatiza que o Papa "melancolicamente repete a cantilena: não aos contraceptivos, não ao divórcio, não aos homossexuais, não à modernidade, sim à família tradicional, sim a uma rígida moral sexual, sim à disciplina. Tantos "não" tornam a sua mensagem antipática, como se não houvesse temas mais urgentes (...) que têm a ver com a discussão sobre a missão da Igreja em si, senão com o futuro da Terra e da humanidade e com examinar em que medida a missão do catolicismo pode ajudar a assegurar o porvir, sem a qual nada se sustenta.

Olhando a partir da perspectiva do entusiasmo popular, podemos dizer que a visita do Papa ao Brasil foi um grande sucesso. Ainda que não possua a irradiação carismática de seu antecessor, a figura de Bento XVI, naturalmente contida, aqui se mostrou desinibida em contato com o
entusiasmo dos fiéis.

A figura do Papa é um símbolo poderoso que evoca arquetipos ancestrais do grande pai, do sábio e do pastor que dispõe de poderes sobrenaturais. Arquetipos desta magnitude chegam à profundidade das pessoas e mobilizam fortes sentimentos.

Mas, que modelo de catolicismo o Papa promove? É notório que no Brasil persistem dois tipos de catolicismo: o devocional e o do compromisso ético. O primeiro tem um cunho popular centrado na devoção dos santos, na oração e nas peregrinações, e hoje, em sua forma moderna, na
dramatização midiática com forte conteúdo emocional.

O catolicismo do compromisso ético se inspira na ação católica e nas pastorais sociais e culmina com a teologia da libertação. Este modelo requer mediações socioanalíticas porque está interessado, a partir de sua perspectiva espiritual, na transformação social.

Qual deles é o mais apropriado para uma nação que deve revisar sua antihistória, herdada do colonialismo, do etnocídio indígena, do escravismo e da moderna dependência dos centros metropolitanos?

A resposta depende do nível de consciência alcançado pelos católicos. Creio que o catolicismo devocional não tem potencialidade de transformação social, por estar voltado sobre si mesmo; ao passo que o outro articula constantemente fé, justiça e evangelho com compromisso de libertação.

Vistas a partir deste enfoque, as intervenções do Papa foram em crescendo até fazer-se explícitas no encontro com os bispos em Aparecida. No começo, procurou manter-se equidistante entre os dois modelos, mas terminou reforçando o devocional, já que as aberturas ao social foram mais esboçadas que afirmadas.

Há em Bento XVI um tom fundamentalista quando fala da centralidade de Cristo até nos assuntos sociais que, seguramente, dificultará o diálogo interreligioso; é uma teologia sem o Espírito, pois tudo se reduz a Cristo, o que na teologia se denomina de cristomonismo - a "ditadura" de Cristo na Igreja -, como se o Espírito também não estivesse presente, a Ele que vemos na história e nos processos sociais suscitando verdade, justiça e amor.

O que o Papa disse sobre a primeira evangelização no Brasil, como um encontro de culturas e não uma imposição e alienação não se sustenta historicamente. A colonização e a evangelização foram parte de um mesmo projeto, que significou um dos maiores genocídios da história. Não esqueçamos o testemunho do texto sacro maia, o Chilam Balam: "Entre nós se introduziu a tristeza, se introduziu o cristianismo, o princípio de nossa tristeza e de nossa escravidão; vieram matar nossa flor, a castrar o sol".

Condenar como "utopia e retrocesso" a vontade de resgatar tais religiões, com sua sabedoria ancestral, equivale a um insulto aos indígenas e um desalento aos esforços de tantos missionários que apoiam estas iniciativas.

É teologicamente frágil a tese de que Deus é explicitamente imprescindível para construir uma sociedade justa. Os Estados Pontifícios desmentem esta tese. A Espanha de Franco e a Portugal de Salazar louvavam publicamente Deus e não deixavam de torturar e condenar a morte. O que faz falta é um consenso ético e uma abertura à transcendência, deixando aberta a definição do conteúdo, como acontece com os Estados modernos. Estas insuficiências teóricas fazem com que o discurso papal deslize para o moralismo e o espiritualismo.

E melancolicamente repete a cantilena: não aos contraceptivos, não ao divórcio, não aos homossexuais, não à modernidade, sim à família tradicional, sim a uma rígida moral sexual, sim à disciplina. Tantos "não" tornam a sua mensagem antipática, como se não houvesse temas mais
urgentes.

Estes discursos expressam uma "razão indolente", categoria analítica criada pelo pensador português Boaventura de Sousa Santos. Indolente é a razão que não capta os desafios relevantes do presente e que não aproveita as boas experiências do passado.

Há silêncios significativos nos discursos do Papa: apenas uma única vez se referiu às comunidades eclesiais de base, uma vez à opção pelos pobres, uma vez à libertação, nunca à teologia de libertação e às pastorais sociais, nunca ao gravíssimo problema do aquecimento global. Ao contrário, retrocede aos anos 50 do século passado com o discurso tradicional e ambíguo da caridade e da assistência aos pobres. Esses silêncios são uma forma de negar e ocultar.

A razão indolente, própria de grandes instituições como a Igreja, é um modo de razão míope que se concentra no próximo e descuida do distante, ou de uma razão prejudicial que não busca caminhos novos e sempre volta aos antigos (mais catequese, mais celibato, mais obediência, mais adesão ao magistério), ou de uma razão arrogante, quando insiste na Igreja como a única verdadeira, ou de uma razão antiutópica, por não suscitar um horizonte de esperança e por acreditar que o futuro é a mera prolongação do presente.

O Papa não adverte os novos temas centrais, que têm a ver com a discussão sobre a missão da Igreja em si, mas com o futuro da Terra e da humanidade e com examinar em que medida a missão do catolicismo pode ajudar a assegurar o porvir, sem a qual nada se sustenta.

O catolicismo brasileiro e latino-americano, para estar à altura dos tempos atuais, exige a coragem que tiveram os primeiros cristãos: abandonaram o solo cultural judaico de Jesus e se inseriram no solo pagão helenista. Dessa inserção nasceu o cristianismo atual, que é uma
expressão do Novo Testamento, não do Antigo.

Necessitamos agora de um catolicismo de rosto indio-negro-latino-americano que não esteja contra o romano, mas em comunhão com ele.

Leonardo Boff

22 de mai. de 2007

Carta ao povo cristão da América Latina e do Caribe

Caras irmãs e irmãos do povo de Deus

Por ocasião da V Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha, nós, participantes do Seminário Latino-americano de Teologia, organizado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, queremos comunicar a nossa reflexão em torno do tema central: “Discípulos/as e missionários/as de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham vida”. Somos 250 pessoas, vindas de vários estados do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, Equador, México, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Guatemala, El Salvador, Haiti, Nicarágua, Canadá, França e Itália, além dos participantes de inúmeras salas virtuais.

Dentre os muitos pontos aprofundados, queremos destacar alguns aspectos que julgamos importantes para a caminhada da Igreja latino-americana e caribenha.

Sentimo-nos interpelados pelas diversas formas de agressão à vida humana, a todas as formas de vida e à Terra, nossa mãe: o aprofundamento da pobreza e da desigualdade social; o clima de violência que atinge particularmente a população mais jovem, as mulheres e as crianças; a destruição dos povos e da cultura negra e indígena.

A humanidade experimenta uma crise generalizada, que atinge a família, a Igreja, as relações sociais e econômicas, a organização política e o conjunto de valores construídos a longo do tempo. Trata-se de uma crise sistêmica e paradigmática, que rompe o equilíbrio nas relações entre os seres humanos e destes com toda a Criação.

Na fidelidade ao seguimento de Cristo, aos seu profetismo e pedagogia, não podemos calar diante dos gritos e clamores dos povos latino-americanos e caribenhos, causados por esse processo histórico de exploração.

Nada disso é natural ou acontece por acaso. O neoliberalismo agravou o endividamento externo e interno e multiplicou a dura experiência da miséria e da exclusão social. Além disso, aprofundou o grau de dependência dos nossos povos na forma de um neocolonialismo que se expressa especialmente em relações de livre comércio profundamente desiguais e geradoras de exploração em todos os níveis.

Porém, não podemos deixar de apontar os sinais dos tempos que tornam visível para os dias de hoje a Ressurreição de Jesus: o aumento da consciência ecológica; as experiências de democracia participativa e expressões de soberania popular; a criatividade nas experiências de economia solidária e comércio justo; a multiplicação e o fortalecimento de muitos movimentos sociais. Expressão importante desse movimento de resistência e ressurreição de nossos povos tem sido a realização dos sucessivos fóruns sociais regionais e mundiais.

A Igreja, enquanto participante da historia, também passa por situação de profunda crise: diminuição significativa do número de fiéis; dicotomia entre fé e vida; ausência de renovação da linguagem e símbolos religiosos; permanência de uma estrutura piramidal rígida, que leva ao não reconhecimento da missão e do sacerdócio comum de todo o povo de Deus; a não valorização do laicato, e de modo especial das mulheres, como sujeito eclesial e sua participação nos espaços de decisão.

Diante de tudo isso, sentimo-nos desafiados a:

· reconhecer o protagonismo dos empobrecidos no processo de evangelização e na construção de uma nova sociedade, baseada na justiça e solidariedade;

· assumir com firmeza a opção pelos pobres, afirmando-a como irreversível e irrenunciável, como um imperativo do seguimento de Jesus e de fidelidade ao Deus da Justiça;

· construir novas relações com equidade de gênero;

· reconhecer a presença de Deus nas culturas, nos povos, nas religiões, vivenciar processos de inculturaçao e fomentar espaços de diálogo intercultural e inter-religioso;

· criar estruturas adequadas para o trabalho de evangelização no mundo urbano;

· reconhecer a riqueza da diversidade e a pluralidade, cultivando a alteridade;

· promover uma nova cultura do trabalho a partir da crise da sociedade do emprego;

· estimular a presença de bispos e presbíteros diretamente nas experiências libertadoras em suas paróquias e dioceses.

Assim, convidamos a todos os irmãos e irmãs a assumir conosco esses compromissos:

· aprofundar a experiência de vida cristã inspirada em Jesus de Nazaré;

· construir uma igreja que seja rede de comunidades que sejam expressões vivas do povo de Deus; que reafirma as estruturas próprias das igrejas latino-americanas e caribenhas, historicamente fundadas no tripé: CEBs, pastorais e conferências episcopais; que dialoga com as realidades do tempo de hoje; que fermenta as ações humanas que vão construindo uma sociedade nova – um outro mundo já possível, em que possamos experimentar a globalização da solidariedade -, tecendo parcerias com movimentos sociais;

· aprofundar a teologia da libertação como inspiração que nasce da rica experiência eclesial e da profunda religiosidade dos povos latino-americanos, e que alimenta a fé, renova sua esperança e que torna mais libertadora a prática do amor;

· assumir uma ética da vida em âmbito pessoal e social;

· promover espaços de evangelização que possibilitem aos jovens uma adesão livre e amadurecida ao Evangelho de Jesus;

· manter-se livre na relação com as estruturas necessárias para a evangelização, sabendo que devem ser reformadas permanentemente;

· fomentar a promoção de um fórum social cristão, com o objetivo de refletir sobre a transição de época e os diversos cenários eclesiais face aos desafios político-sociais;

· incentivar uma maior integração das pastorais com os movimentos, enquanto crescimento da consciência social e libertadora da igreja latino-americana e caribenha como caminhada de todo o povo de Deus;

· aprofundar a reflexão sobre o uso das novas tecnologias a favor da vida, bem como a reflexão crítica acessível e prática das conseqüências do sistema de globalização capitalista.

Pindamonhangaba, São Paulo, 20 de maio de 2007.

18 de mai. de 2007

Um véu de integrismo e fundamentalismo ameaça o mundo pluralista de hoje

No primeiro dia da visita do papa escrevi um texto criticando a unilateralidade da mídia, que até melhorou nos dias subseqüentes. Mas ao final da visita, o questionamento virou-se para minha própria Igreja. A estadia do papa provocou emoções no mundo católico, como os aiatolás mobilizam multidões muçulmanas. Mas e os não católicos? Afinal, neste país, católicos realmente praticantes são uma minoria. Somos uma sociedade plural, com muitos católicos nominais, um número crescente de evangélicos, um número maior das religiões afro do que as estatísticas indicam, uma forte corrente espírita, outras religiões ameríndias ou asiáticas, os sem religião, etc. Aliás, o papa disse que não se podia convencer por imposição, mas pelo testemunho.
Como católico, fiquei vendo na televisão uma manifestação asfixiante de poder eclesiástico, vestes aparatosas, declarações contundentes. Tudo isso convencendo e, talvez, fortalecendo emocionalmente os já convencidos. Confesso que me senti bastante incômodo.
Meu primeiro texto ainda era esperançoso, mas depois de um dia respondendo por telefone a entrevistas de jornais, revistas e tvs, e vendo a mídia ocupada por um papa categórico, foi subindo um cansaço pelas afirmações petrificadas e as certezas sem reticências, mais perto dos guardiães do templo, do que de um Jesus que não ditava orientações, porém conversava com os menos respeitados, fazia perguntas e contava historinhas – parábolas. O papa começou tímido, mas o sorriso foi se abrindo aos poucos, influenciado pelo clima dos católicos arrebatados, especialmente no encontro com ex-drogados, um dos poucos momentos de humanidade. Porém no sentido contrário, os pronunciamentos, por exemplo, aos bispos brasileiros, foram se fazendo mais inflexíveis. Minha mulher e eu fomos respirar e ver “A alma imoral”, com texto do rabino Milton Bonder e interpretação fantástica de Clarice Niskier. Ali as certezas pétreas se dissolviam em vida e ternura, em dúvidas revigorantes, no rompimento de uma razão fechada nela mesma. Como seria bom se a Fé convivesse com esse clima de liberdade e de ousadia!
Por outra parte, do outro lado do mundo, mais de um milhão de turcos saíram à rua para defender um estado secular, livre de um governo islâmico fundamentalista. Ali os cristãos torcem para evitar o perigo. O patriarca cristão de Jerusalém, o segundo em dignidade depois do bispo de Roma, acuado no seu bairro pobre do Fanar, teria ainda menos liberdade num estado islâmico.
E aqui, os não católicos não terão razão de temer as investidas velhas de pedidos de acordos ou de caducas concordatas? O Papa falou de um “sadio” laicismo. Quais suas fronteiras? Por que pespegar um adjetivo vago e ambíguo? Por que não dizer que uma sociedade laica e plural é mais favorável à exemplaridade do Evangelho? O papa indicou a necessidade de criar consensos em torno a uma sociedade menos desigual e com estruturas justas. Mas consensos com quem? Consenso conosco mesmos é um solipsismo que não se agüenta em pé. Para criar consensos há que estar aberto e ouvir os outros. Não se trata de negar nossa identidade, que deve ser afirmada sem medos mas esta, enrijecida, vira fundamentalismo, ou na nossa linguagem, integrismo.
O Papa convoca os chamados leigos – porque não dizer os cristãos em geral? – a construir uma nova sociedade. Mas para isso são necessárias as mediações – movimentos sociais e culturais, opções de idéias, partidos. Tirando-lhes importância o que nos sobra? Simples argumentos éticos, uma cruzada de consciências ou reviver uma cristandade? Estou de acordo com a crítica a ideologias – como expressão de falsa consciência –, sejam as velhas ideologias de um marxismo que encolheu em idéias abstratas e experiências sufocantes, seja de um capitalismo que destila o que pensam e fazem as elites acuadas e iníquas. Mas então, qual seria a saída? De nenhuma maneira uma ideologia social-cristã, que historicamente também fracassou, resvalando para a direita liberal, ou para uma esquerda cristã de que sempre desconfiei. No Chile, nos anos sessenta, eu dizia que porque tinha Fé não podia ser ideologicamente democrata-cristão - ou socialista cristão-, encolhendo a Fé em ideologia. Isso aprendera com Emmanuel Mounier, em seu livro “A cristandade morta”. Porém o cristão, iluminado pela Fé, tem de procurar com outros, respostas concretas. Uma nova sociedade exige colar-se na realidade, a partir de análises, para chegar a programas, idéias e práticas novas. Mas se dissermos que o real só nós o possuímos, em Deus e em seu filho Jesus, de saída fechamos o diálogo, já que temos a solução no bolso. Para os possíveis interlocutores não deixaria de ser prova de arrogância e de falta de abertura à diferença. O discurso do papa, na inauguração da conferência dos bispos, muito bem encadeado e com aparentes perguntas, na verdade foi um desdobramento de respostas e de certezas asfixiantes para um diálogo e para a busca de consensos.
A começar por afirmações terríveis sobre a história do encontro das culturas na América, ocultando o conflito e a imposição do cristianismo pela espada e pela cruz. Como uma certa leitura das cruzadas, vistas do lado de cá, apenas como defesa solícita dos lugares sagrados. Um papa que virou santo, Pio V, perto daqueles tempos da conquista da América, chegou a dizer, justificando a inquisição, que matar hereges podia ser um ato de defesa da fé. Hoje temos vergonha de uma afirmação destas. Em alguns anos teremos pudor de algumas declarações que ouvimos agora?
A imprensa e alguns comentaristas disseram tolices, como que a crítica ao marxismo era interpretada como uma crítica à teologia da libertação. Essa reflexão latino-americana, que se abre a muitas dimensões e com novos participantes, se às vezes usou parcialmente mediações da teoria marxista, há muito as relativizou, descobrindo sua unilateralidade e limitações. Entretanto, essa teologia tem no seu cerne a opção preferencial pelos pobres, que segundo o mesmo papa é central na vida de Fé. Eu diria que aí ele confirmou, querendo ou não, a caminhada de uma Igreja da libertação, com suas pastorais sociais e suas comunidades eclesiais de base. Mas ao mesmo tempo, não pronunciou nem uma só palavra sobre elas, apenas fazendo a menção indireta de novos movimentos, que vão em outras direções.
Há uma contradição que dificilmente se mantém em pé. Ao afirmar a centralidade da Eucaristia, fica claro que a Igreja precisa de muitos espaços de celebração eucarística. Mas isso será impossível mantendo apenas a figura cada vez mais minoritária e marginal, no mundo de hoje, do sacerdote obrigatoriamente celibatário, que o papa magnifica a seguir. Faz logo adiante um apelo voluntarista a vocações para entrar nessa mesma fôrma, historicamente em crise, ou produzindo um novo clero conservador, inseguro e meio deslocado do mundo. Multiplicar a Eucaristia é multiplicar seus ministros e ministras, para isso ordenando cristãos e cristãs das próprias comunidades. O celibato obrigatório está mais ligado à vida consagrada do que à categoria dos presbíteros, que presidem a celebração eucarística. Mais e mais bispos e cristãos dizem isso em voz baixa, num sussurro que vai aumentando, mas que é ainda abafado por censuras e auto-censuras. Novos pontificados ou novos concílios terão que tratar corajosamente deste e de outros pontos ainda congelados (celibato obrigatório, a mulher na Igreja, reprodução e sexualidade, diálogo interreligioso, etc.)
Para isso há que enfrentar a esquizofrenia entre uma doutrina da sexualidade e da reprodução, em discordância crescente com a prática real dos católicos, no que Pietro Prino chama um “scisma sommerso”. O cardeal Newman, que esse papa admira, falava do desenvolvimento da doutrina. Em tantos campos, até agora bloqueados para uma discussão serena e corajosa, não se trata de negar dogmas, que são muito menos do que alguns crêem, mas de rever regulamentações historicamente datadas e passíveis de mudanças. Com isso não quero dizer que a prática determina a doutrina, o que seria uma posição preguiçosa ou oportunista, mas ela a questiona com novas perguntas que exigem novas respostas. Repetir o de sempre é encerrar-se num mundo que está morrendo.
Fica também no ar um clima integrista, uma adesão quase idolátrica à figura do bispo de Roma, que só pode ferir nossos irmãos cristãos não católicos e fazer sorrir quem vêm de outras tradições religiosas ou quem não as têm.
Jesus, um rabi que várias vezes se escondeu quando o queriam mitificar ou coroar, dava como exemplo de Caridade, não o sacerdote apressado que corria ao templo para cumprir seus deveres de profissional da religião, mas o samaritano heterodoxo, que não ia a Jerusalém, mas ao monte Garizim. Também se detinha para falar, à beira do poço, com outra samaritana, que tivera muitos homens em sua vida, e que poderia ser chamada por muitos de hedonista ou dissoluta. Os discípulos se escandalizaram. Os seguidores de hoje se esquecem disso.
Trago aqui o desabafo melancólico e triste de um católico que faz um balanço de tantos dias de triunfalismo, fechamento ao diálogo e alinhamento com fundamentalismos que apenas sabemos ver nos outros. Assim, não se visibiliza uma Boa Nova, mas se repetem prescrições rígidas saídas de manuais de uma catequese voltada para dentro. E depois, os católicos nos queixamos da diminuição dos fiéis – ou ficamos em manifestações que revelam um emocionalismo aeróbico, que tem muito pouco a ver com a Fé em Jesus Cristo, mesmo se Marcelo Rossi foi posto de lado por uns dias.
Não tivemos atitudes duras como as de João Paulo II na declaração de abertura da conferência em Puebla que, aliás, os bispos não seguiram nas discussões subseqüentes. Mas diante de um discurso bem articulado como o de Bento XVI é mais difícil, em Aparecida, uma posição crítica dos bispos, pois envolve por sua lógica e se torna mais complexo descobrir ali os pontos frágeis e contraditórios.
Teria sido muito bom ter ouvido alguém aberto a escutar, trazendo misericórdia e com-paixão, e não uma reflexão bem armada de um teólogo europeu, com seu discurso tradicional, aberto ao diálogo com a academia ou com Habermas, mas não com as comunidades latino-americanas, com seus pobres, índios, negros, cada vez mais protagonistas na história social e política. Não senti um papa de todos, pronto realmente – não teoricamente – a criar consensos, ao desafio de novas culturas e de novas sensibilidades, ele que poderia parecer atento às cultura de hoje. Não que tivesse que aceitar passivamente o que o mundo diz, mas uma visão pessimista desse mundo o vê unilateralmente marcado pelo individualismo ou pelo hedonismo. Há que estar aberto ao pluralismo das diferenças, e não ter medo do que há de prazeroso na busca de ser feliz – tão longe dos complexos culposos de uma espiritualidade ainda marcada pelo medo, por um jansenismo que paira no ar, e um agostinismo mal digerido.
A Igreja precisa hoje não só de profetas, de místicos, de mártires e de santos, e penso em Hélder Câmara ou Romero, mas de um testemunho coletivo de humildade e de simplicidade, para saber conviver com a alteridade e aí apresentar a Boa Nova, na construção plural, com os outros, de um mundo sem injustiças e sem desigualdades escandalosas. O que dirá a conferência de Aparecida? Seguirá mecanicamente e sem um discernimento adulto os passos indicados por Bento XVI ou saberá também ouvir o consensus fidelium de suas igrejas locais, como mostrou Newman em outra fase crítica da Igreja, no século IV? Assim poderá abrir-se à construção, na linha de João XXIII, de um consenso com outros homens e mulheres de boa-vontade, que realmente responda às necessidades e aos anseios de liberdade, de qualidade de vida e de felicidade, num mundo ao mesmo tempo rodeado de fundamentalismos, violências, fanatismos e ameaças ao próprio planeta.

17 de mai. de 2007

BEATIFICAÇÃO DE DOM ROMERO?

Carlos C. Santos*

A mídia burguesa, parcial e interesseira, como era de se esperar, deu destaque especial às críticas levantadas por Bento XVI à teologia da libertação, enquanto voava em direção ao Brasil. No entanto, não foi capaz de noticiar com igual ênfase a menção do Papa ao Arcebispo Mártir de San Salvador, El Salvador, Dom Oscar Arnulfo Romero (cf. http://noticias.terra.com.br/brasil/visitadopapa/interna/0OI1613746-EI8325,00.html), assassinado em 1980, por forças de ultradireita interessadas em conter o avanço do processo revolucionário salvadorenho, desencadeado pela FMLN (Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional), e impedir que se seguisse, aí, o “mau exemplo” da Nicarágua Sandinista que acabava de triunfar.

Um processo de canonização de Dom Romero fora aberto em San Salvador, em 1994 e, em 1997, repassado à Congregação para a Causa dos Santos, em Roma, tendo sido, aí, paralisado.

Na alusão a Dom Romero, Bento XVI ressalta que “não se pode negar que tenha sido uma grande testemunha da fé e das virtudes cristãs, comprometido com a paz e contra a ditadura”. Além disso, “ele foi assassinado durante a consagração e, portanto, se trata de uma morte que serve como prova de fé”.

É mais do que evidente que, em contexto latino-americano, este é um detalhe que faz a diferença. Romero é símbolo da conjugação de inúmeros fatores que traçam o perfil do verdadeiro discípulo e discípula de Jesus na América Latina. Entre eles, a conversão ao evangelho dos pobres e aos pobres do evangelho; o caminhar no meio do povo simples e ameaçado, partilhando da mesma sorte dos oprimidos; a defesa incondicional dos direitos dos mais fracos e da vida perseguida e ameaçada; a opção pela justiça como única arma que poderá vencer as desigualdades e construir a paz; o amor autenticamente cristão que, levado às últimas conseqüências, se traduz em doação e entrega total e generosa da vida, como Cristo, pela libertação do povo...

Todas essas virtudes genuinamente evangélicas fazem de Dom Romero modelo de Pastor e Profeta para seu povo sofrido, e para todos os povos da América Latina e do Caribe. Sua ação evangelizadora e pastoral estava voltada para reconciliar e pacificar os salvadorenhos no amor e na justiça. Sua postura crítica era faca de dois gumes que questionava duramente tanto a conivência do governo, marionete das ingerências estrangeiras, como as práticas equivocadas de grupos pseudo-revolucionários.

No compromisso empenhado pela libertação do povo salvadorenho, suas proféticas palavras não ficam a dever, em nada, à profecia de corte bíblico: “Frente à ordem de matar seus irmãos deve prevalecer a Lei de Deus, que afirma: NÃO MATARÁS! Ninguém deve obedecer a uma lei imoral (...). Em favor deste povo sofrido, cujos gritos sobem ao céu de maneira sempre mais numerosa, suplico-lhes, peço-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus: cesse a repressão!”. Estas foram as últimas palavras que a pequena grande nação salvadorenha ouviu de seu Pastor e Profeta que, no dia seguinte, se tornaria Mártir da Igreja dos Pobres.
Na celebração eucarística que presidia, no dia “24 de março e de agonia”, como que, já preparado, querendo preparar também os que o ouviam para o que aconteceria, Dom Romero atualiza a memória do Senhor da Vida e da Morte: “Neste cálice o vinho se torna sangue, que foi o preço da salvação. Possa este sacrifício de Cristo nos dar a coragem de oferecer nosso corpo e nosso sangue pela justiça e pela paz do povo”...Pouco depois, soaria o disparo fatal.

No dia 29, um grupo de bispos latino-americanos, presente para os funerais, redigiu e assinou um documento que é testemunho histórico da santidade do novo Mártir: “Três coisas admiramos e agradecemos no episcopado de dom Oscar A. Romero: foi, em primeiro lugar, anunciador da fé e mestre da verdade (...). Foi, em segundo lugar, um resoluto defensor da justiça (...). Em terceiro lugar, foi o amigo, o irmão, o defensor dos pobres e oprimidos, dos camponeses, dos operários, dos que vivem nos bairros marginalizados”...

Em consonância com a sadia tradição cristã, está aquela convicção que rezamos, inclusive na V Oração Eucarística proposta para o Congresso de Manaus: “santos são aqueles que sabem amar Cristo e seus irmãos”. Com seu testemunho de vida e de morte a serviço do Reino e dos Pobres, Dom Oscar Romero tornou-se naturalmente Santo. Esquecido e até escondido por setores da sociedade e da Igreja que defendem os mesmos interesses da mídia burguesa e elitista, Dom Romero continuou a ser venerado nos altares do seu Povo, de El Salvador, da América Central, da América Latina como o Santo dos Pobres das Causas Latino-americanas!

Por isso, acolhemos com grande alegria esta feliz referência de Bento XVI à pessoa de Dom Romero e à sua eventual beatificação que, mais do que reparação à Igreja da América Latina, é resgate da esperança e da vida dos Pobres do Continente que, sobrevivendo à exclusão e morte impostas, hoje, pelo capitalismo neoliberal, continuam ouvindo e seguindo confiantes, a voz do seu Pastor, Profeta, Mártir e Santo: “Se me matam, ressuscitarei na luta do meu povo”.

*Presbítero e assessor das CEBs da Arquidiocese de Juiz de Fora.

BENTO 16 E A GUERRA NA IGREJA

LEONARDO BOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

AS GUERRAS não existem apenas no mundo. Dentro da igreja há também uma guerra de baixa intensidade. Ela faz muitas vítimas, com os instrumentos adequados da guerra religiosa, escondidos sob palavras, não raro, piedosas e espirituais. Só para dar um exemplo pessoal: quando fui condenado pelo então cardeal Joseph Ratzinger em 1985 por causa do meu livro "Igreja: carisma e poder", foi-me imposto o que ele denominou de "silêncio obsequioso".
Esse eufemismo implicava muita violência: deposição de cátedra, remoção de editor religioso da Vozes, da redação da "Revista Eclesiástica Brasileira", proibição severa de falar, dar entrevistas, escrever e publicar sobre qualquer assunto.
Objetivamente "obsequioso" não possui nada de obsequioso.
O mesmo ocorreu com o teólogo da libertação Jon Sobrino, de El Salvador, condenado em fevereiro deste ano. Recebeu apenas uma "notificação". Esta inocente palavra, "notificatio", esconde violência porque ele não pode mais falar, nem dar aulas, conceder entrevistas e acompanhar qualquer trabalho pastoral. O vitimado por uma condenação é "moralmente" morto, pois vem colocado sob suspeita geral, tolhido, isolado e psicologicamente submetido a graves transtornos, o que levou a alguns a terem neuroses e a um deles, famoso, perseguido por idéias de suicídio.
Nós fomos, no mínimo, caçados e anulados, pois um teólogo possui apenas como instrumento de trabalho a palavra escrita e falada. E estas lhe foram seqüestradas, coisa que conhecemos das ditaduras militares.
O que foi escrito acima parece irrelevante, pois é algo pessoal, mas não deixa de ser ilustrativo da guerra religiosa vigente dentro da Igreja. Nela o então cardeal Ratzinger era general. Hoje como papa é o comandante em chefe. Qual é este embate? É importante referi-lo para entender palavras e advertências do papa e a partir de que modelo de teologia e de Igreja constrói o seu discurso.
Dito de uma forma simplificadora, mas real: há na igreja duas opções claramente opostas, o que não impede que, na prática, possam se entrelaçar. Face ao mundo, à cultura e à sociedade há a atitude de confronto ou de diálogo.
A partir da Reforma no século 16 predominou na Igreja Católica romana a atitude de confronto: primeiro com as Igrejas protestantes (evangélicas) e depois com a modernidade.
Face à Reforma houve excomunhões, e face à modernidade, anátemas e condenações de coisas que nos parecem até risíveis: contra a ciência, a democracia, os direitos humanos, a industrialização. A Igreja se havia transformado numa fortaleza contra as vagas de reformismo, secularismo, modernismo e relativismo. Missão da igreja, segundo esse modelo do confronto, é testemunhar as verdades eternas, anunciar a Cristo como o único Redentor da humanidade e a Igreja sua única e exclusiva mediadora, fora da qual não há salvação.
Em seu documento de 2000, Dominus Jesus, o cardeal Ratzinger reafirma tal visão com a máxima clareza e laivos de fundamentalismo. Tudo é centralizado no Cristo.
Esta atitude belicosa predominou até os anos 60 do século passado quando foi eleito um papa ancião, quase desconhecido, mas cheio de coração e bom senso, João 23. Seu propósito era passar do anátema ao diálogo. Quis escancarar as portas e janelas da Igreja para arejá-la. Considerava blasfêmia contra o Espírito Santo imaginar que os modernos só pensam erros e praticam o mal.
Há bondade no mundo, como há maldade na Igreja. Importa é dialogar, intercambiar e aprender um do outro. A Igreja que evangeliza deve ela mesma ser evangelizada por tudo aquilo que de bom, honesto, verdadeiro e sagrado puder ser identificado na história humana.
Deus mesmo chega sempre antes do missionário, pois o Espírito Criador sopra onde quiser e está sempre presente nas buscas humanas suscitando bondade, justiça, compaixão e amor em todos. A figura do Espírito ganha centralidade.
Fruto da opção pelo diálogo foi o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), que representou um acerto de contas com a Reforma pelo ecumenismo e com a modernidade pelo mútuo reconhecimento e pela colaboração em vista de algo maior que a própria Igreja, uma humanidade mais dignificada e uma Terra mais cuidada.
Este "aggiornamento" trouxe grande vitalidade em toda a Igreja, especialmente na América Latina, que criou espaço para aquilo que se chamou de Igreja da base ou da libertação e da Teologia da Libertação. Mas acirrou também as frentes.
Grupos conservadores, especialmente incrustados na burocracia do Vaticano, conseguiram se articular e organizaram um movimento de restauração, de volta à grande tradição.
Este grupo foi enormemente reforçado sob João Paulo 2º, que vinha da resistência polonesa ao marxismo. Chamou como braço direito e principal conselheiro, seu amigo, o teólogo Joseph Ratzinger, elevando-o diretamente ao cardinalato e fazendo-o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, a ex-Inquisição.
Aí se processou de forma sistemática, vinda de cima, uma verdadeira Contra-Reforma Católica. O próprio cardeal Ratzinger no seu conhecido "Rapporto sulla fede", de 1985, um verdadeiro balanço da fé, dizia claramente: "A restauração que propiciamos busca um novo equilíbrio depois dos exageros e de uma abertura indiscriminada ao mundo".
Ele elaborou teologicamente a opção pelo confronto a partir de sua formação de base, o agostinismo, sobre o qual fez duas teses minuciosamente trabalhadas. Notoriamente Santo Agostinho opera um dualismo na visão do mundo e da Igreja. Por um lado está a cidade de Deus e por outro a cidade dos homens, por uma parte a natureza decaída e por outra, a graça sobrenatural.
O Adão decaído não pode redimir-se por si mesmo, seja pelo trabalho religioso e ético (heresia do pelagianismo) seja por seu empenho social e cultural. Precisa do Redentor. Ele se continua e se faz presente pela Igreja, sem a qual nada ganha altura sobrenatural e se salva. Em razão desta chave de leitura, o papa Bento 16 se confronta com a modernidade, vendo nela a arrogância do homem buscando sua emancipação por próprias forças. Por mais valores que ela possa apresentar, não são suficientes, pois não alcançam o nível sobrenatural, único caráter realmente emancipador. Nela vê mais que tudo secularismo, materialismo e relativismo. Essa é também sua dificuldade com a Teologia da Libertação. A libertação social, econômica e política que pretendemos, segundo ele, não é verdadeira libertação, porque não passa pela mediação do sobrenatural.
Para concluir, se o atual papa tivesse assumido uma teologia do Espírito, coisa ausente em sua produção teológica, teria uma leitura menos pessimista da modernidade. No atual momento se dá o forte embate entre essas duas opções. A Igreja latino-americana pende mais pela opção do diálogo. Esta é mais adequada à cultura brasileira que não é fundamentalista nem dogmática, mas profundamente relacional e dialogal com todas as correntes espirituais.
Somos naturalmente sincréticos na convicção de que em todos os caminhos espirituais há bondade para além dos desvios e que, definitivamente, tudo acaba em Deus. Não parece ser esta a opção de Bento 16: seus discursos enfatizam a construção da Igreja em sua forte identidade para que seu testemunho seja vigoroso e possa levar valores perenes a um mundo carente deles, como se viu claramente em seu discurso aos bispos brasileiros na catedral de São Paulo.
Essa Igreja é necessariamente de poucos, coisa reafirmada pelo teólogo Ratzinger em muitas de suas obras. Mas esses poucos devem ser santos, zelosos e comprometido com a missão de orientar e conduzir os muitos, sem se deixar contaminar por eles e pelo mundo. Ocorre que esses poucos nem sempre são bons. Haja vista os padres pedófilos. Por isso, a Igreja precisa renunciar a certa arrogância, ser mais humilde e confiar que o Espírito e o Cristo cósmico dirijam seus passos e os da humanidade por caminhos com sentido e vida.

16 de mai. de 2007

Missionário de Cristo: alguém capaz de amar

"Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n'Ele nossos povos tenham vida". Esse é o lema da Quinta Conferencia Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, inaugurada pelo Papa Bento XVI.
A América Latina e o Caribe são 43 países e colônias com 558.595.318 pessoas. São centenas de povos, alguns milenares, como os quéchuas e os yanomamis. A América Central é hoje governada por partidos de direita (exceto o Panamá e Costa Rica) enquanto a América do Sul foi para a esquerda, excetuando a Colômbia, Paraguai e o Suriname. A América Latina passou do Consenso de Washington à recusa continental do neoliberalismo. A região investe 31 bilhões em mísseis antiaéreos, e paradoxalmente tem o maior índice de desigualdade entre ricos e pobres do planeta.
A Igreja Católica atende às culturas locais com estes recursos: 425.599.389 milhões de católicos, organizados e reunidos em 800 dioceses, 31.530 paróquias, 104.331 centros de evangelização, coordenados por 1201 bispos, 66.684 sacerdotes, 10.302 diáconos permanentes, 5.484 irmãos, 129.813 freiras e 1.350.495 catequistas.
Os dados sobre a pertença religiosa mostram uma grande diversidade. Vejamos os números do continente: católicos: 425.599.389 (76%); Muçulmanos: 4.450.000 (0,8%); hinduístas: 1.327.000 (0,2%); budistas: 2.701.000 (0,5%); judeus: 6.024.000 (1,14%); espíritas: 151.000 (0,03%); xintoístas: 56.000 (0,01%); ateus e não-religiosos: 30.153.000 (5,7%); outras religiões: 596.000 (0,1%); cristãos de fronteira: 10.531.000 (1,9%) como Mórmons, Testemunhas de Jeová e Adventistas; protestantes e pentecostais: 49.549.200 (9,42%) basicamente no Brasil, Bolívia e Guatemala.
O Cardeal Aloísio Lorscheider nos recorda que se a primeira Conferência Geral foi guardada pela idéia-chave da defesa da fé e das vocações, a segunda o foi pela idéia da libertação, a terceira pela comunhão e participação e a quarta pela inculturação. Nesta quinta Conferência a Igreja Católica não poderá trair os pobres. Deve testemunhar a fé dos mártires, como d. Oscar Romero assassinado em 1980, após sua volta do encontro de Puebla. Ele sela com sangue o que assinara no documento do episcopado. Será preciso manter a tradição magisterial destes encontros continentais. A missão da Igreja não pode ser cristalizada no passado. É preciso transmitir o legado e atualizá-lo. Cultivar sementes, atentos aos novos sinais dos tempos, para acompanhar a 'floresta que cresce' pela graça de Deus.
Que vinhas podar para o melhor vinho degustar?
- Assumir uma visão mais global da teologia do Espírito cultivando a profundidade mística;
- Assumir os pobres, os jovens, as mulheres e os migrantes como protagonistas da fé.
- Valorizar a Igreja Povo de Deus, bebendo das fontes da revelação abertos ao ecumenismo,
- Priorizar o missionário leigo no mundo urbano.
- Condenar a corrida armamentista e o imperialismo norte-americano como fracassos civilizatórios.
- Viver a sapiencial lição das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, que vieram da França ao Araguaia para ser 'tapirapé com os tapirapés', mudando a prática missionária ao acompanhar a doce aventura do 'renascer de um povo'.
É preciso propor um perfil alegre do missionário como aquele desenhado pelo padre Louis-Joseph Lebret: "Eis o perfil de um missionário de Cristo Jesus: alguém capaz de amar e ter consciência desse amor".
Fernando Altemeyer Junior
Teólogo, doutor em ciências sociais e Ouvidor da PUC-SP

15 de mai. de 2007

Papa reafirma opção preferencial pelos pobres

"A opção pelos pobres está implícita na fé cristã naquela em que Deus se fez pobre por nós, para que nós enriquecêssemos com sua pobreza", disse o Papa aos bispos da América Latina e do Caribe. A afirmação não veio no parágrafo destinado aos problemas sociais do continente, ma sim naquele que trata da primazia da fé em Cristo. Dessa forma, ele não só respaldou o caminho da Igreja na América Latina, como também lhe conferiu o status teológico correspondente.
O discurso é de uma enorme riqueza e transcendência. Não encontramos palavras de condenação à reflexão teológica do continente, esperada por alguns, mas sim uma sólida reflexão e um chamado a responder aos desafios atuais a fé na América Latina, que são dois: "o desenvolvimento harmônico da sociedade e a identidade católica de seus povos".
Dando continuidade as cinco conferências, Bento XVI constata que desde São Domingo, em 1992, muitas coisas mudaram: a globalização, em certos aspectos positiva, mas com o risco dos grandes monopólios e da conversão do lucro no valor supremo;"a evolução em direção à democracia e o perigo do autoritarismo, a economia liberal que causa que "sigam aumentando os setores sociais que se vêem postos à prova cada vez mais a uma enorme pobreza ou mesmo perdendo seus bens naturais". Também se refere à situação da fé mais madura em muitos leigos, mas debilitada na sociedade. Tudo isto exige "uma renovação e uma revitalização" da fé em Cristo para "viver de maneira responsável e alegre de fé e irradia-la ao próprio ambiente.
O trecho seguinte do discurso está dedicado à fé em Cristo, que não é "uma fuga em direção ao intimismo, ao individualismo religioso", já que todos os sistemas religiosos que colocam Deus isolado fracassam na solução dos problemas sociais, políticos e econômicos. Por meio te suas palavras sobre a opção pelos pobres, o Papa trata de como conhecer Cristo: a resposta é a "rocha da Palavra de Deus", e a catequese, que deve intensificar-se, que compreende também uma "catequese social" que forme a doutrina social da Igreja. "É preciso recordar que a evangelização sempre esteve unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã", disse o Papa.
A seguir ele afirma que "os povos latino-americanos e caribenhos têm direito a uma vida plena, própria dos filhos de Deus, com condições mais humanas: livres das ameaças da fome e da violência. Para estes povos, seus pastores têm de fomentar uma cultura de vida que permita, como dizia meu predecessor Paulo VI, 'passar da miséria à posse do necessário'", disse citando a conhecida passagem de Populorum Progressio, que "convida todos a superar as graves desigualdades sociais e as enormes diferenças de acesso aos bens".
Neste contexto que fala da Eucaristia, que permite descobrir Cristo como "o Vivo que caminha a nosso lado e nos mostra o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa". "O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho e de testemunhá-lo na sociedade para que esta seja mais justa e humana". Como vemos, é esta integralidade a que constitui a vida cristã para Bento XVI, e não se pode portanto reduzir a tarefa da Igreja somente ao "religioso" em sentido estreito; aqueles que agem dessa forma não são fiéis à doutrina católica.
Vem então uma pergunta central: como a Igreja pode contribuir para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos, e responder ao grande desafio da probreza e da miséria? A questão fundamental sobre o modo como a Igreja, iluminada pela fé em Cristo, deve reagir a todos estes desafios, concerne a nós todos". Como vemos, não está em questão se a Igreja deve ou não contribuir, mas sim como deve faze-lo. Não se pode responder a esta questão apenas com atividades de ajuda ou assistência, pois, como disse Bento XVI, "neste contexto é inevitável falar do problemas das estruturas, sobretudo das que criam injustiça. Na verdade, as estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade".
Aqui vem à tona uma posição muito importante que citamos extensamente: "tanto o Capitalismo quanto o Marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas... E esta promessa ideológica se mostrou falsa. Os fatos o põem de manifesto. O sistema marxista, onde governou, não só deixou uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, como também uma dolorosa opressão das almas. E o mesmo vemos também no Ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietante degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis miragens de felicidade".
Logo insiste que estas estruturas justas requerem um consenso na sociedade que só por partir de valores éticos e que a reforce. Retornando a um de seus temas preferidos, disse que "onde Deus está ausente - o Deus de rosto humano, Jesus Cristo - estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles".
Acrescenta ricas observações sobre o modo de usar racionalmente este consenso sobre a "o bom exercício dos leigos - inclusive com a pluralidade das posições políticas - essencial na tradição cristã autêntica", e explica que "o trabalho político não é de competência imediata da Igreja". "A Igreja é advogada da Justiça e dos pobres, precisamente por não se identificar com os políticos nem com os interesses partidários. Apenas sendo independente por mostrar os grandes critérios e os valores inderrogáveis, orientar as consciências e oferecer uma segunda opção de vida que vá além do âmbito político. Formar as consciências, ser advogada da Justiça e da Verdade, educar nas virtudes individuais e políticas, é a vocação fundamental da Igreja neste setor". E menciona a responsabilidade dos leigos na vida pública: "devem estar presentes na formação dos consensos necessários e na oposição contra as injustiças", disse, conclamando mais vozes e iniciativas de leigos católicos no âmbito político, comunicativo e universitário.
Fonte: Informativo CRP, CNR, IBC

Habemus Papam?

Allan Mahet
A primeira visita de Bento XVI ao Brasil veio cercada de polêmica. Em muito devido ao tema do aborto que cada vez mais ganha as páginas dos jornais e as pautas políticas. Fora isso chamou atenção a primeira canonização realizada fora dos limites do Vaticano, em um momento propício para a renovação de fé católica no Brasil que parou de perder espaço para as religiões protestantes.
Além dos pronunciamentos e encontros, Bento XVI em seu ultimo dia em solo brasileiro promoveu a abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e Caribe. Sua presença, tão providencial quanto à 'santificação' de Frei Galvão em solo brasileiro, a que tudo indica, irá ditar os rumos das resoluções que serão promovidas no encontro e que nortearão a atuação da Igreja na região pelos próximos dez ou vinte anos.
Vive-se na América Latina nos últimos anos uma efervescência da esquerda - se legítima ou não é outro assunto - da qual poucas vezes em nossa recente história podemos ver. É justamente esse furor vermelho que incomoda 'Roma'.
Em 1958, quando as sublevações se indicavam ao redor do mundo, João XXIII, de papado transitório a princípio, promoveu drásticas mudanças na Igreja, a aproximando de seus fiéis, descentralizando o poder papal e abrindo as portas do Palácio de São Pedro ao povo. Ou quase isso. Antes da conclusão dos trabalhos do primeiro Concílio em quase cem anos, convocado por ele, o carismático e inovador Papa morreu, o que veio a comprometer os documentos finais do encontro mundial.
Contudo, os ecos promovidos pelo Concílio Vaticano II atravessaram o oceano e atracaram em terras tropicais. Em 1968, a II Conferência Episcopal da América Latina e Caribe, em Medellín deu o que podemos considerar o passo mais à esquerda que a Igreja (ou parte dela) tinha visto em dois milênios. As ditaduras pululavam como pragas em todo o continente e na visão dos bispos latino-americanos a Igreja não poderia se omitir. E assim como Jesus que escolheu ficar do lado dos miseráveis e oprimidos, a Igreja do Terceiro Mundo fez sua opção pelos pobres, seja através das lutas populares, seja pela conscientização da população sobre seus direitos.
Na Conferência de Puebla (1979) essa posição é reafirmada: a necessidade de uma tomada de posição frente à desumana realidade Latino-Americana.
Alguns setores da Igreja realmente procuram assumir esse papel e a partir do discurso de Medellín e Puebla se aventuraram na busca de uma práxis cristã alinhada com a defesa do povo e pela liberdade. Nasce assim a Teologia da Libertação. Com ela a Igreja ganha um papel fundamental na luta de classes, trabalhando em prol da transformação da ordem societária e se posicionando contra a opressão dos pobres pelos ricos. A promoção dos ideais libertários avançou em largos passos em um continente assolado pela opressão direitista de seus generais. Seus líderes combateram o massacre promovido pelos governantes latinos e por isso foram perseguidos, torturados, mortos (até pelas costas como Padre Jozimo), mas sedimentaram em nosso solo uma teologia na qual Cristo se mostra como um revolucionário, um transformador, que desce da cruz e ao lado dos pobres encara o seu algoz. E 'sua' igreja deveria cumprir esse papel. Uma igreja dos pobres (como Jesus) e para os pobres (como seu rebanho).
Obviamente esse posicionamento radicalmente 'humano' e progressista não ressoou agradavelmente nos corredores palacianos do clérigo romano que não mais contava com a presença do bonachão João XXIII. Como poderia uma organização que se esbanja em ouro e investe em bolsas de valores pelo mundo ir de encontro ao sistema capitalista? Como ficaria a imagem dessa instituição perante as potências mundiais que exploram o terceiro mundo? O medo da investida revolucionária em seu interior fez o Vaticano adotar medidas drásticas. Bispos foram transferidos de suas dioceses, reprimiu-se a atuação de padres em organizações populares, promoveram ameaças de excomunhão e impuseram o silêncio obsequioso a Leonardo Boff (ainda frei) nome máximo da Igreja da Libertação no Brasil, em um processo conduzido pelo ainda cardeal Ratzinger, presidente do novo tribunal da Santa Inquisição.
Assim a TL, reprimida, enfraqueceu e se restringiu aos círculos das Comunidades Eclesiais de Base.
O carismático João Paulo II com sua pesada mão tratou de suprimir a mais recente tentativa da TL se reerguer em sua última visita em solo tupiniquim e mais uma vez o conservadorismo falou mais alto e o povo católico da América Latina retornou ao seu papel de subserviente a Deus, à Igreja, ao Papa, aos grupos dominantes e suas leis. Os leigos retornaram ao degrau mais baixo do altar, afastando-se de Cristo, Jesus. Esta sombra que pairava sobre a Igreja dos bilhões de fiéis se enegreceu no último Conclave no qual a ala mais conservadora se fez novamente presente elegendo o mesmo Ratzinger, que calou Boff, ao posto (cargo) mais alto da Igreja de Roma.
É com a rigidez na defesa dos dogmas milenares (e outros nem tão antigos assim) que o `novo' Papa deu início aos trabalhos de Aparecida. Sua postura monolítica refrata qualquer discurso mais progressista. A crítica ao Marxismo é um aviso claro e sonoro aos religiosos e leigos que vivem na luta. O terror que provocou aos defensores da Igreja libertadora permanece vivo na memória de todo o Clero e são os sustentáculos para a contenção de uma reedição de Medellín e Puebla. A opção preferencial pelos pobres continua marcando a linha orientadora da Igreja na região, mas a luta permanecerá relegada a favor da benesse e da caridade. Nada mais conservador do que a consentimento pela doação. Ao clamar pela independência da Igreja com relação às ideologias políticas limita a defesa dos espoliados à evangelização. Nada mais conservador do que fugir à luta.

14 de mai. de 2007

Vida e morte da Teologia da Libertação

Os teólogos da América Latina e Caribe assumiram a chave interpretativa proposta por Simone Weil: "a plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de perguntar: qual a tua aflição?". A Teologia da Libertação quer pensar a fé cristã respondendo às perguntas dos aflitos. A Teologia da Libertação continua viva ao preocupar-se com os novos pobres do continente e assumir-se como uma teologia da compaixão.

Uma primeira Instrução Vaticana condenara, em 1984, o uso do marxismo na teologia católica e muitos disseram que fora a certidão de óbito dessa teologia. Uma carta do papa João Paulo II dirigida ao episcopado brasileiro, de 9 de abril de 1986, pede, entretanto, que não se abandone a tarefa necessária desse fazer teológico: "...estamos convencidos, nós e os senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa - em estreita conexão com as anteriores - daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico patrimônio da doutrina social da Igreja expressa em documentos que vão da Rerum Novarum a Laborem Exercens". E insiste: "Os pobres deste país, que tem nos senhores os seus pastores, os pobres deste continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los".

A certeza básica de qualquer teólogo "é a de que só é teologia aquela reflexão sobre a fé em que o ‘lumen fidei’ da revelação divina é o princípio último e o critério da verdade (padre Félix Pastor, sj)". O teólogo é movido pela palavra de Deus. Produz teologia sob o manto do Espírito de Deus na rigorosa disciplina mental auscultando os desígnios de Deus e confrontando-os com a realidade. A Teologia da Libertação não morreu, pois é um caminho místico: "Aquilo mesmo mediante o qual a teologia é ciência é aquilo pelo qual ela é mística (Marie-Dominique Chenu)".

Essa escola espiritual é feita de larga tradição de muitos patriarcas e matriarcas: Bartolomeu de las Casas, São Pedro Claver, São Martinho de Lima, Francisco Solano, Toribio de Mongrovejo, Santa Rosa de Lima, Santo Antonio Maria Claret, José Antônio Pereira Ibiapina, Juventude Universitária Católica, Comunidades Eclesiais de Base, Paulo Freire, Candido Padim, Richard Shaull, Rubem Alves, Hugo Assmann, Leonardo Boff, Carlos Mesters, Clodovis Boff, João Batista Libanio, Jurgen Moltmann, Johan Baptist Metz, Karl Rahner, Edward Schillebeckx, Jean-Yves Congar, Fernando Gomes, Manuel Larrain, Ivone Gebara, Milton Schwantes, Orestes Stragliotto, Frei Betto, Elza Tamez, Antonio Cecchin, Ronaldo Munhoz, Raul Vidales, Enrique Dussel, Franz Hinkelammert, Enrique Angelelli e Gustavo Gutiérrez entre tantos outros.
E neste largo peregrinar da fé dos pequeninos assume os versos de Drummond: "Como vencer o oceano se é livre a navegação, mas proibido fazer barcos?". A tarefa da teologia é produzir remos para que o barco da Igreja se lance ao mar e, submetida ao Espírito Santo, acuda os náufragos que confiam suas frágeis existências àqueles que conduzem os instrumentos de salvação guiados pelo Pai de Jesus Cristo.

Testemunhas fiéis dessa ação de amor preferencial aos pobres são os mártires que tombaram na luta contra a injustiça. São os filhos amados da Igreja que oferecem o óbolo de suas vidas: Santo Dias da Silva, Adelaide Molinari, Cleusa Nascimento, Dorothy Stang, Josimo Moraes Tavares, Ezequiel Ramin, Rodolpho Lunkenbein, João Bosco Penido Burnier, Oscar Romero, Enrique Angelelli, Antonio Pereira Neto, Francisco de Pancas, Purinha de Linhares, Paulo Vinhas de Vitória, Verino Sossai de Nova Venécia e Gabriel Felix Roger Maire. Leigas, religiosas e sacerdotes que sofrem perseguição ao viver na carne o amor aos aflitos. Há hoje quem censure bispos como d. Luciano Mendes de Almeida, d. Ivo Lorscheiter, d. Adriano Hypolito, d. Pedro Casaldáliga e o próprio cardeal Paulo Evaristo Arns por misturarem o vinho forte da sabedoria de Deus com a água do compromisso social. Eis a resposta de Santo Tomás: "Para o teólogo que faz bem seu trabalho, o vinho não é enfraquecido com a água, é antes a água que se transforma em vinho". Ou parafraseando Blaise Pascal: "Todas as teologias não valem um gesto autêntico de solidariedade com os pequeninos".
Fernando Altemeyer Júnior
Professor e Ouvidor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(Publicado em:O Estado de S.Paulo - Seção: Especial - 09/05/07)

Teologia da conciliação?

Entrevista com João Batista Libânio
Na sexta-feira, Bento XVI foi duro com os bispos brasileiros em encontrona Catedral de São Paulo. Cobrou engajamento - não o político, mas o evangelizador. Com o povo nas ruas, contudo, foi sorridente e descontraído. Um papa bem diferente do cardeal doutrinário que pordécadas deu ordens no Vaticano. "Ele se humanizou no Brasil", arrisca o teólogo João Batista Libânio, como quem identifica um certo sotaque afetivo dos alemães da Baviera, terra natal do papa. "Ele, que sempreescreveu sobre o amor, experimenta por aqui aquilo sobre o qual fala emtermos teóricos."
Padre Libânio, jesuíta de Belo Horizonte, é um dos principais representantes da Teologia da Libertação no Brasil. E decidiu não ir aosantuário de Aparecida, para a V Conferência Episcopal da América Latinae Caribe (Celam), aberta hoje por Bento XVI. Não foi Libânio, nem o ex-franciscano Leonardo Boff, nem o peruano Gustavo Gutierrez, da ordem de São Domingos - trinca de peso da teologia que combina fé e política em opção preferencial pelos pobres, como ficou combinado na Celam de Medellín, Colômbia, em 1968. Uma ausência combinada? "Questão desensibilidade", despista Libânio.
Nesta entrevista a Pedro Doria e publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 13-05-2007, o jesuíta reconhece que religiosos identificados com a Teologia da Libertação têm procurado evitar confrontos com o papanesses dias. Seria arriscado e contraproducente. Chega a admitir que aquela igreja militante dos anos 60 não existe mais e que os carismáticos, sob certo aspecto, fazem trazem alguma alegria ao rebanho católico. "Só lutar, lutar, assim ninguém agüenta". E, aos que temem o pulso de ferro do velho Ratzinger, um palpite de Libânio, autor de mais de 90 livros sobre religião e igreja: pode haver mais avanços teológicos na era de Bento XVI do que na de João Paulo II. Porque o polonês mandava calar. Já o alemão aprecia um bom argumento.
Eis a entrevista.
Qual o impacto produzido pelo Brasil em Bento XVI?
Bento XVI é alemão do sul, bávaro, eles são mais afetivos que os prussianos, embora retraídos. Em seu país, é cafona demonstrar afetividade, mas no Brasil, não. Em São Paulo, ele ficou aparecendo toda hora na sacada, interrompendo seus estudos. Sorriu. Sentiu-se à vontade para demonstrar afeto, o que gera uma reação das pessoas ao seu redor e cria um ciclo. Quanto mais se expande, maior o retorno. O papa foi humanizado, no Brasil. Ele tem escrito muito sobre o amor. Há dentro dele um desejo muito grande de provar que o amor purifica. E aqui, pela primeira vez, ele demonstrou fisicamente aquilo sobre o qual escreveu teoricamente.
Que o balanço faz dessa visita?
Ele veio cobrar dos cristãos uma postura mais missionária. Bento XVI tem uma visão muito crítica, em certos pontos correta, da modernidade. Há uma crise de valores que afeta o conceito de vida, de relações humanas, de respeito à realidade segundo o projeto de Deus. Ele pede que os cristãos se levantem contra valores anti-cristãos. A sociedade está hedonista, materialista, consumista, trata a vida com muito desprezo.
E o que o senhor espera da conferência em Aparecida?
Ela fará a convocação para que os católicos sejam menos tímidos, afinal, convenhamos: é bonita a maneira como os evangélicos não têm vergonha dedeclarar sua religião. O sucesso do encontro se dará pela capacidade de exprimir este conceito numa frase forte. Quando falamos da Celam deMedellín, em 1968, lembramos da "opção preferencial pelos pobres". Ninguém lê os documentos produzidos. Mas as frases fortes ficam.
O papa quer católicos mais ativos?
Sim, a partir da fé e dos valores cristãos. Não apenas a partir de uma ideologia, de um partido, de compromissos meramente éticos. O papa acha que sem uma contribuição explícita da fé cristã, até a percepção ética teria dificuldade de se contrapor aos valores dominantes. O segundo ponto importante é que Bento XVI não pretende contrapor-se ao crescimento dos evangélicos. Ele espera que a resposta a esse fenômeno venha de dentro da Igreja, uma Igreja mais fiel, mais coerente. Como bom acadêmico alemão, ele não está preocupado em conquistar fiéis, que é o método dos evangélicos. Ele pretende atraí-los com uma Igreja que tenha uma vida interna atraente, fiel aos preceitos, à doutrina. O terceiro viés é ressaltar que o lado social, o cuidado com os pobres e com os marginalizados, também importante. O que Bento XVI talvez tenha é dificuldade de enxergar pelo prisma da Teologia da Libertação.
Por quê?
Bento XVI propõe primeiro trabalhar os valores, cuidar para que o indivíduo tenha uma sólida formação religiosa e, com esta bagagem, aproximar-se da realidade. Pela Teologia da Libertação, primeiro vou compreender a realidade. Vou recorrer aos meios sociológicos, psicológicos, políticos e, conhecendo bem a realidade, procuro saber que perguntas ela faz à minha fé. Bento XVI busca aplicar sua fé à realidade. Nós, da Teologia da Libertação, preferimos primeiro auscultar a realidade, compreender a pobreza, as suas causas. Nunca diríamos, como diz o papa, que Cristo é a solução para a violência. Antes tentamos veras causas da violência: a miséria, as drogas. Sem levantar as causas sócio-político-econômicas, achamos difícil dizer uma palavra de fé. Para o papa, esta palavra de fé já é tão clara que sequer é preciso fazer umaanálise para apresentar uma solução aos problemas reais.
Cresce a preocupação com o aborto na hierarquia da Igreja católica, especialmente após o processo de legalização de Portugal e no México. O quanto o tema é prioritário na agenda da igreja brasileira?
Pode ser que ele se imponha agora, mas não era prioritário. Para o conjunto da Igreja do Brasil, a prioridade ainda é a situação de injustiça pela qual tantas pessoas morrem. Situação que inclusive leva a muitos abortos, motivados pela extrema pobreza. Não é aborto sofisticado, é aborto provocado pela miséria, sob condições as piores possíveis. A pobreza e a miséria são problemas muito mais graves. Não adianta ir no efeito se não toco a causa. Não adianta ter uma escola secundária na qual as adolescentes recebem informação inadequada sobre sexo. Aí engravidam, fazem abortos. Mas, e antes disso? Isolar o problema do aborto em meio a tantas causas que levam a ele não é uma maneira objetiva de enxergar a realidade.
O senhor diria que, para ter apoio do Vaticano nas questões sociais e ambientais, a CNBB vai incorporar o discurso do papa no campo moral?
Um analista político pode fazer este tipo de leitura, mas a política interna da Igreja caminha de outra forma. Para o nosso episcopado, o pensar do papa é palavra final. O católico mais crítico até tem liberdade de questionar, mas para o católico médio e sobretudo para o bispo, que promete obediência especial, é preciso seguir o papa, independe de qualquer estratégia de aproximação com Roma. Pouquíssimos bispos se dão liberdades perante posições do Vaticano. Quando o fazem, jamais é em público. Lembro que na Celam de Puebla, em 1979, a opção seria pelos pobres. O papa falou que deveria ser a juventude, e lá entrou: "opção preferencial pelos jovens". É a estrutura interna da Igreja Católica. Quanto mais a Igreja se confronta com as outras igrejas cristãs, mais ela se distingue justamente pela existência do papa. Agora, a Igreja da América Latina não vai modificar a preocupação social.
Com base em que o senhor faz tal afirmação?
Aqui, a Igreja tem tradição de engajamento. É verdade que agora, influenciada pelos evangélicos, existe também esta Igreja mais carismática. Por um lado é bom, dá alegria para a vida, alivia sofrimentos. Só luta, luta, ninguém agüenta. Existe um cansaço mundial com aquele militantismo da década de 1960. A cultura pós-moderna trouxe desenvolvimento tecnológico, recursos econômicos, as pessoas viajam mais, têm mais bens, há mais música, os jovens estão mais bonitos, com brincos, com gel, há mais alegria... Isso afeta a cultura. Só não podemos esquecer o compromisso com a Justiça. A Igreja latino-americana vai continuar lutando, mas o mundo é outro.
Quer dizer: as restrições do papa no que diz respeito à Teologia daLibertação não existirão na prática?
Podem surgir embates. Se os deputados começarem a falar de descriminalização do aborto, a Igreja vai se levantar. Aborto é uma questão delicada e difícil de tratar com a grande massa sem correr o risco da simplificação. Dou um exemplo. Se eu me questiono a respeito, direi que sou contra fazer aborto. Mas outra coisa é o Estado abrir o debate, já que abortos inseguros existem em quantidade, e aí nós nos perguntarmos qual seria o mal menor? Preferimos que aconteça no fundo dos quintais ou em hospitais? Devemos discutir as duas perguntas separadamente. O aborto é uma questão ética, não da Igreja. A Igreja entra conforme possa contribuir para a discussão ética. Veja que o papa fala de respeito à vida, que é uma maneira muito sutil de entrar na questão. João Paulo II era mais enfático. Bento XVI busca as sutilezas.
Quanto à obediência plena ao papa: os bispos não ganharam independência a partir do Concílio do Vaticano II? Houve retrocesso?
O problema se coloca no Concílio do Vaticano I, de 1870, com Pio IX, quando é definido o primado do papa. É quando ele ganha poder sobre as dioceses do mundo inteiro e há um reforço do poder central. O VaticanoII procurou diminuir um pouco este centralismo, apelando para a colegialidade, implementada através dos sínodos que acontecem de tempos em tempos em Roma. Mas trata-se de um órgão apenas consultivo. O papa faz o que quer.
Ao que parece, os nomes mais ligados à Teologia da Libertação estarão ausentes na Celam. Por quê?
Não houve proibição. Acontece que nossa presença pode provocar reações e não teremos espaço para contribuir. É uma questão de sensibilidade. Serei mineiro: é melhor que não nos exponhamos. Não é o momento.
O Vaticano quer calar as tensões internas da Igreja na América Latina?
Acho que este papa não vai na linha do calar autoritário, não. Se ele pretender calar, vai fazê-lo usando a razão. A lógica. Ele argumenta com razão e fé. Quer mostrar que nosso movimento se equivocou em algumas coisas, a própria história o mostrou, então Bento XVI não precisa calar ninguém. Estamos distantes da época dos anos 1980. Ele está se virando para dizer, "se você escreve isso, não vou calar você, mas as suas razões não são boas".
Ao criticar a modernidade, o papa recusa o mundo como é para fixar-se numa volta ao passado?
Ele tenta dizer é que a modernidade tem elementos do cristianismo: direitos humanos, direitos da mulher, isso vem de Jesus. O papa é extremamente moderno, não é TFP. Ele luta é contra a modernidade que nega sua origem cristã.
Mas, ele recusará mudanças?
Este pontificado ainda é muito novo para que levantemos tal conjectura. João Paulo II intuiu que vivíamos um período de intensa transformação. Então, fez gestos de abertura em encontros ecumênicos e inter-religiosos. Mas não permitiu uma transformação interna da Igreja, pois temia o dilaceramento. Foi até severo. Teve momentos de audácia, como o de pedir perdão pela maneira como foi evangelizada a América Latina, pela Inquisição etc. Quebrou aquela pureza batismal de que aIgreja não errava. Sendo assim, quem vai negar a possibilidade de pedirmos perdão amanhã por erros de hoje?
O pontífice quis um encontro à parte com D. Paulo Evaristo Arns, que defendeu o ex-frei Leonardo Boff em Roma, nos anos 80. Há algum significado nisto?
Foi um gesto de benevolência. Há uma tradição em Roma que o papa sempre visita cardeais quando estão debilitados. E D. Paulo é um homem de grande mérito para a Igreja. Eu interpretaria nesta direção.
Que marcas o senhor acha que esta visita deixará em Bento XVI?
Ele elogia muito a vitalidade da Igreja da América Latina. E deve sentir um contraste muito grande com a igreja do país dele, que está morrendo. Por mais erros que tenhamos cometido, Bento XVI não pode considerar nossa Igreja perdida. É uma Igreja viva. Uma acusação que se fazia àTeologia da Libertação era a de que teria sido uma das causas da evasão de fiéis. Mas, se observarmos as estatísticas, a Igreja que mais perdeu fiéis foi a do Rio de Janeiro, liderada por um conservador do porte de D. Eugênio Sales.
A Igreja ainda se incomoda com a laicização dos Estados?
Já se incomodou mais. Hoje muitos consideram até uma bênção, porque aIgreja ficou mais livre. Existem até bispos que acham que ela deveria abrir mão até do Vaticano. Conta-se que, certa vez, d. Hélder Câmara perguntou a Paulo VI se poderia oferecer-lhe dois conselhos. Primeiro: que o papa deixasse o Vaticano e fosse morar na sacristia de uma igrejinha, deixando toda aquela riqueza para a Unesco. Segundo: que reunisse todos os núncios, agradecesse pelos serviços prestados e os dispensasse todos. O papa achou graça, riu, mas não fez nada, evidentemente. Mas seria como voltar à Igreja de Pedro e Paulo, que nada tinha.