24 de fev. de 2007

FSM 2006 e a esperança dos Povos do Sul


Chegamos a mais um Fórum Social Mundial. O VI Fórum Social Mundial tem uma nova metodologia por ser policêntrico, ou seja, descentralizado de um único local de encontro e acontecerá em níveis continentais. O FSM terá três cidades sedes, a saber: Bamako em Mali na África onde o encontro acontecerá de 19 a 23 de janeiro; Caracas na Venezuela representando as Américas onde se reunirão de 24 a 29 de janeiro; e em Karachi no Paquistão que representa o encontro do continente asiático que deve acontecer no mês de março de 2006 devido ao terremoto ocorrido em outubro de 2005.

Mais uma vez, os povos do sul se reunirão com o objetivo de refletir a caminhada e rever as alianças dos pobres em relação aos blocos hegemônicos do mundo que se reúnem todos os anos em Davos no Fórum Econômico Mundial. Neste ano, sentimos falta das expectativas de Porto Alegre. Mas, Porto Alegre está viva na descentralização realizada para outras cidades sedes. O espírito é o mesmo, a esperança é a mesma. Além disso, será um momento importante de se avaliar as novas estratégias de ação movidas pela nova conjuntura política que se cria no mundo.

No continente mais excluído do mundo, a África, os povos do sul estarão reunidos em Bamako, no Mali sub-divididos em 10 eixos temáticos assim constituídos: 1. Guerra, segurança e paz; 2. Liberalismo mundializado: apartheid em escala mundial e empobrecimento; 3. Marginalização do continente e dos povos, migrações, direitos econômicos, sociais e culturais; 4. Agressão contra as sociedade campesinas; 5. Aliança entre o patriarcado e o neoliberalismo e marginalização das lutas das mulheres; 6. Cultura, mídia e comunicação: crítica e reconstrução, violências simbólicas e exclusões; 7. Destruição dos ecossistemas, diversidade biológica e controle dos recursos; 8. Ordem Internacional: Nações Unidas, instituições internacionais, direito internacional e reconstrução da frente do sul; 9. Comércio internacional, dívida e políticas econômicas e sociais; 10. Alternativas que permitirão avanços democráticos, o progresso social e o respeito da soberania dos povos e do direito internacional.

O encontro de Bamako permitirá a discussão desses eixos de forma transversal o que nos indica um grande avanço na metodologia dos Fóruns, além de uma maior participação de delegações de países com poucas condições financeiras para subsidiar recursos se tal encontro acontecesse num único local. No entanto, em Bamako, quatro eixos nos chamam muito a atenção: o eixo 2 nos traz a discussão acerca do “apartheid” não mais em escala continental ou sul-africana, mas em escala mundial tendo como efeito o empobrecimento generalizado por todo o mundo devido à exclusão dos povos do sul na aplicação eficaz de políticas econômicas e sociais para o desenvolvimento sustentável. O eixo 4 representa a economia do continente africano baseada na agricultura de subsistência e que também enfrenta as tentações do Agro-Negócio e do Hidro-Negócio. Seus efeitos são devastadores porque impõe uma agressão silenciosa e silenciada às sociedades campesinas que encontram dificuldades em se manter na terra devido as pressões do capital especulativo das indústrias agro-pecuárias. O eixo 5 revela a aliança entre a concepção de patriarcalismo com a ideologia neoliberal, pois ambas possuem um objetivo em comum, ou seja, marginalizar a luta das minorias, em especial, a luta das mulheres. E, por fim, o eixo 10 que tratará das alternativas democráticas frente ao avanço do neoliberalismo como vírus que contamina a todas as nações. Todos esses eixos poderão estar provocando novas reações, novos debates e novas esperanças nas militâncias africanas que permitirá novas conquistas e novas alternativas, principalmente, em se tratando de nações que se encontram no desafio de superação da miséria e da fome.

Devido aos terremotos, o encontro de Karachi no Paquistão acontecerá em março de 2006, mas já estão definidos os eixos temáticos. A Ásia entra neste cenário do FSM com três grandes antagonismos: a crise entre Israel e Palestina, a crise geral do Oriente Médio e das invasões imperialistas dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque e com uma economia desigual e sem limites entre países vizinhos como é o caso da Arábia Saudita com Bangladesch ou entre Coréia do Sul e Índia. Além disso, o caso do Irã com a retomada das experiências com bombas nucleares preocupa o mundo e, principalmente, os Estados Unidos que são os únicos que querem continuar a fazer tais experiências exatamente por se sentirem o Grande Império.

Também com 10 eixos temáticos que estão assim sub-divididos de forma transversal, a saber: 1. Imperialismo, militarização e conflitos armados na região e movimentos pela paz; 2. Direitos aos recursos naturais, controle da população e privatização e disputas fronteiriças; 3. Desenvolvimento do comércio e globalização; 4. Justiça social, Direitos Humanos e Governo; 5. Estado e Religião, pluralismo e fundamentalismo; 6. Nação, nacionalidades e identidades étnicas e culturais; 7. Estratégias de desenvolvimento, pobreza, desemprego e deslocamento; 8. Movimentos populares e estratégias alternativas; 9. Mulheres, patriarcalismo e mudança social; 10. Meio ambiente, ecologia e sustento.

Numa região de conflitos, o eixo 1 talvez possa gerar expectativa no cenário mundial já que teremos uma maior representatividade de delegações assim como na África e na América. O encontro de Karachi tem um significado especial por duas razões: Primeiro, por estar sendo realizado no Paquistão que sofreu recentemente com a perda de milhões de vida devido ao terremoto que abalou metade do país. Segundo, por estar situado numa região de conflito armado e não podemos esquecer que o Paquistão foi um dos braços dos Estados Unidos na ocupação do Afeganistão e do Iraque.

Três eixos me chamam a atenção até porque são eixos importantes para se entender o contexto do continente asiático mergulhado pelos conflitos armados, pela forte presença religiosa e pelo agravamento do meio ambiente que causou desastres com o Tsunami em 2004 e o Terremoto do Paquistão em 2005. O eixo 1 que refletirá a questão do imperialismo estadunidense, econômico e também o chamado imperialismo ocidental. Além disso, a questão da militarização e dos grupos armados que possuem duas características fundamentais: querem uma mudança política e uma autonomia na soberania das nações (principalmente, as nações muçulmanas) e agem enquanto grupo armado em nome de Alá por serem todos islâmicos. Este cenário nos dá uma visualização complexa do contexto existente no Oriente Médio. Mas, também no mesmo eixo se tratarão dos avanços dos movimentos pela paz, pois mesmo entre os islâmicos, judeus e cristãos existem os que procuram a defesa da paz enquanto saída urgente e necessária para combater o próprio Império que utiliza o mesmo terrorismo dos grupos armados como Taleban e outros.

O eixo 5 é uma complementação do eixo 1. Ele nos dá o entendimento do cenário político da região que consegue misturar Estado e Religião numa mesma esfera como é o caso do Irã que está desafiando os Estados Unidos e o Ocidente com as pesquisas e experiências com o Urânio. A questão se trata de entender o cenário baseado em Estados Islâmicos (fundamentalistas) e em Estados Religiosos Islâmicos (pluralistas). A Arábia Saudita é um Estado religioso, centro da religião islâmica (a se ver a cidade de Meca), mas respeita a diversidade religiosa. Ao contrário do Irã. Na verdade, são grupos islâmicos diferentes como se vê todos os dias nos noticiários entre Xiitas e Sunitas no Iraque. São islâmicos, discípulos de Maomé (Profeta), mas com visões diferenciadas acerca da política, da economia e da própria religião. Existem estas divisões no cristianismo e também no judaísmo. No próprio catolicismo, temos a Opus Dei (A Obra de Deus – em especial para os detentores do capital e a elite) e a Teologia da Libertação (a opção preferencial pelos pobres) que são cristãos católicos com uma visão praticamente oposta em relação ao Evangelho, a Igreja e a Doutrina. A questão é que os muçulmanos se matam entre si e, até que se saiba, ainda não se viu nada parecido no cristianismo. E, por fim, o último eixo que se trata do Meio Ambiente, o eixo 10, uma nova preocupação que ronda o universo dos asiáticos devido aos últimos desastres naturais. Mas, também este eixo tem uma profunda ligação com o eixo 1, pois as nações estão preocupadas com o ecossistema e querem fazer com que todos os países cumpram o Protocolo de Kyoto, principalmente, os Estados Unidos, o Grande Império que se negou a assina-lo.

O encontro do FSM das Américas se dará na capital venezuelana, Caracas. É um local propício, pois nestes últimos dois anos, a Venezuela se tornou por meio de seu Presidente Hugo Chávez uma pedra nos caminhos dos Estados Unidos. Mas, outros fatores nos fazem refletir acerca desse encontro, tais como: as políticas econômicas conservadoras de Lula no Brasil e Kirchner na Argentina; as denúncias contra o Partido dos Trabalhadores no Brasil e o desafio de Lula para superar a crise política; os avanços da esquerda na América do Sul, em especial, na Bolívia com o líder cocaleiro indígena Evo Morales eleito Presidente, o Peru com um descendente indígena, Toledo, na Presidência e, principalmente, o grande opositor do Império, Hugo Chávez na Venezuela. No Uruguai com Tabaré Vasquez, as esquerdas conseguiram eleger pela primeira vez um governo com ideais socialistas, resta saber se não cairá na tentação de comer a maçã do neoliberalismo. E, por fim, no Chile é eleita a primeira mulher à Presidência, Michelle Bachelet representante da Democracia Cristã e do Socialismo. O Chile se tornou um país de centro-esquerda assumido com Ricardo Lagos e agora sua candidata Michelle continuará, ao que tudo indica, na mesma direção.

Como podemos notar, esperanças e expectativas não faltam na América Latina. A Alca continua ameaçando, mas se começa a esboçar um fortalecimento do Mercosul com a entrada da Venezuela na Cúpula. Resta saber se o Mercosul atingirá toda a América Latina, até mesmo o México, com sua política de defensionismo de G. W. Busch. O FSM no encontro de Caracas irá proporcionar amplos debates sub-divididos em 06 eixos transversais, a saber: 1. Poder, política e lutas pela emancipação social; 2. Estratégias imperiais e resistências dos povos; 3. Recursos e direitos pela vida: alternativas ao modelo civilizatório depredador; 4. Diversidades, identidades e cosmovisões; 5. Trabalho, exploração e reprodução da vida; 6. Comunicação, educação e cultura.

Em Caracas o debate tem como pano de fundo o novo cenário político que está se formando. O eixo 1 e 2 estão amplamente correlacionados. É evidente que as estratégias imperiais é fazer com que a Alca seja aceita por todos atendendo aos interesses da economia norte-americana de Busch. No entanto, este sonho de Busch está cada vez mais longe devido ao novo cenário político que desponta. Talvez, a Colômbia seja um dos únicos países da América do Sul a ser fiel e dependente da política armamentista de Busch. Na América Latina, ainda temos o México como vilão dos pobres países da América Central. Mas um bloco aparece neste cenário que poderá fortalecer as experiências alternativas dos movimentos sociais e das redes sociais. Destacam-se: Venezuela, Peru, Bolívia e Uruguai, Argentina e Brasil correm por fora, pois não sabem os futuros políticos que adotarão e o Chile, mesmo com uma política econômica conservadora e socialmente assistencialista, desponta com um grande aliado dessa nova força e fortalece o eixo progressista da América Latina.

É preciso destacar o que une as três cidades sedes. Parece-me que a temática do imperialismo e tônica das reflexões. O imperialismo não se trata somente dos Estados Unidos como Grande Império e grande líder do G8, mas de todos os países desenvolvidos que não respeitam as soberanias nacionais e tentam implantar políticas internacionais à força para os países em processo de desenvolvimento. O modelo neoliberal se encontra desgastado e já se inicia seu processo de superação. Aos poucos, estamos convictos de que alternativas aparecerão como já estão ocorrendo.

Assim, o FSM tem mais uma vez a missão de resistência ao modelo hegemônico no cenário mundial. O deus mercado está incerto. É preciso aproveitar o momento de instabilidade e aplicar o golpe fatal e fazer emergir novas formas de participação e de políticas que possam restabelecer o respeito com as minorias.

No Brasil, a política se encontra desgastada pelo processo de mortificação constante ao Partido dos Trabalhadores e ao Governo de Lula. As forças reacionárias já se organizam por meio do PSDB e do PFL. O FSM de Caracas terá um grande papel ao se refletir sobre a problemática política brasileira. O futuro de Lula, na qual o povo brasileiro tinha tanta esperança, está totalmente incerto. Seu governo está desacreditado pelas alianças realizadas. Há quem diga que não se governa sem alianças. Outros dizem que é possível manter um bloco coeso e alternativo. De fato, Lula que era símbolo do maior partido político da América Latina, assumiu determinadas alianças com setores antagônicos da sociedade brasileira que ainda encontram na política a velha prática do coronelismo, do clientelismo e do caciquismo. Resta saber se os erros continuarão no futuro, pois caso cesse poderá nascer uma nova forma de fazer política, que respeite as decisões de segmentos da sociedade organizados, por exemplo, por meio do FSM, uma esperança para os povos do sul.


Claudemiro Godoy do Nascimento

23 de fev. de 2007

Violência Silenciosa


Eric Weil observa com muita propriedade, em sua "Filosofia Política", que a principal característica do Estado moderno é o monopólio da violência. Outrora, senhores feudais maltratavam seus servos, assim como chefes militares condenavam subalternos à pena capital. Agora, só o Estado detém este direito. Só ele pode legalmente suprimir a liberdade de um cidadão, cassar-lhe os direitos, vasculhar as suas contas, grampear o seu telefone, bani-lo e, em muitas nações, decretar a sua morte. Há países em que nem mesmo os pais têm o direito de castigar fisicamente os filhos, sob pena de estes buscarem proteção da lei e se afastarem do convívio familiar.

O que os filósofos políticos não abordam é esta violência silenciosa, porém não menos cruel, da progressiva condenação de uma pessoa à exclusão social. Essa é uma característica intrínseca ao sistema capitalista, que enriquece uns poucos à custa da pobreza de muitos. Basta examinar a questão fundiária no Brasil, onde há muita terra para poucos e pouca terra para muitos.

A violência silenciosa do Estado não é legal, mas se legitima pela "fatalidade" das atuais estruturas sociais e dos paradigmas da economia de mercado. Assim, avalia-se o crescimento de uma nação pelo aumento do PIB - mero exercício de econometria - e não pela qualidade de vida da população.

Por força de medidas macroestruturais, como ajustes fiscais, superávit primário, balanço de pagamentos, milhões de seres humanos progressivamente são privados de acesso à renda, ao trabalho, à terra, aos bens essenciais à sobrevivência. Empobrecidos, vêem-se obrigados a morar em acampamentos rurais ou favelas urbanas, sem direito à saúde, à educação e à informação. E uma parcela desses excluídos, afetada por distúrbios mentais ou pelo absenteísmo, acaba na rua, sobrevivendo da mendicância.

A violência que ora nos escandaliza e desafia - a dos massacres de moradores de rua por quem faz do preconceito uma arma letal - é precedida e favorecida pela violência silenciosa do poder público, que não se empenha o suficiente para promover políticas emergenciais que ponham fim à população de rua, e políticas estruturantes que erradiquem a miséria.

Como me disse o jornalista Chico Pinheiro, "o sangue do Cordeiro foi derramado nas ruas de São Paulo". E também de outros Estados. Mas ele não lava os nossos pecados; ao contrário, denuncia-os. Pois como somos capazes de conviver tão insensivelmente com pessoas - imagem e semelhança de Deus - excluídas, não apenas da vida social, mas também de um teto ou de uma terra onde possam se abrigar?

Condenadas às ruas, esses seres humanos se misturam com sucatas, insetos e lixo, degradados em sua dignidade. Muitos, como algumas das vítimas de São Paulo, não são apenas sem-teto. Chegam ao extremo de ser sem-nome. Porque não mereceram a sorte da loteria biológica: nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não estávamos no lugar daquelas vítimas foi por mero acaso. O justo seria todos nascerem com direito à plena cidadania, sem o risco de terem as suas vidas abreviadas pela miséria e pela violência. Mas para isso é preciso um Estado que renuncie à violência silenciosa e faça desta opção uma prioridade, ainda que desagrade aos donos do dinheiro e do poder.


Frei Betto, frade dominicano. Escritor.

22 de fev. de 2007

A herança branca da escravidão negra


Em todo o Brasil discute-se a validade da política de quotas para minorias raciais nas universidades e outras instâncias da vida social. No mundo, organizações civis e mesmo Estados, constituídos por herdeiros de antigos escravos, exigem-se indenização pelo sofrimento de seus avós. Esta compensação não lhes trará de volta a vida dos que derramaram seu sangue no jugo da escravidão, mas, ao menos lhes possibilitará reorganizar a vida de suas famílias e seus países, até hoje prejudicados pelas conseqüências deste crime terrível. É urgente tomar consciência da atualidade deste problema. Por isso, a ONU considera o 23 de agosto, "dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e sua abolição".


A ONU fala de "lembrança do tráfico e da escravidão" como se fossem crimes do passado, mas, infelizmente, continua acontecendo em todo o mundo o tráfico escravagista. Um relatório da Câmara dos Deputados assegura: o tráfico mundial de pessoas, que inclui, em sua maioria, crianças e adolescentes, movimenta 12 milhões de dólares, o equivalente a R$ 36,468 milhões por ano. Além disso, em muitos países dos cinco continentes, 180 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham, e o fazem nas piores das condições. Uma organização humanitária inglesa põe militantes na fronteira do Sudão para comprar adolescentes, trazidos em caminhões para serem vendidos como escravos, em países vizinhos. Compra-os para libertá-los, mas, ao comprá-los, acaba legitimando o tráfico humano. No Brasil, a escravidão no campo, nas carvoarias de vários estados e em fábricas semi-clandestinas da periferia de São Paulo, continua forte e implacável.

No século XIX, a luta contra a escravidão durou 80 anos. O Brasil foi o último país do hemisfério a abolir este crime. Em alguns aspectos, aquela luta contra a escravidão nos recorda a atual dificuldade de implantar uma reforma agrária justa e ampla no país. Naquele tempo, muitos proprietários de terra estavam convencidos de que abolir a escravidão seria destruir o país e criar anarquia. Se não tivesse outro caminho, os proprietários de escravos deveriam ser indenizados pelo Estado em um processo "lento, gradual e seguro". De fato, não o foram, mas o Estado nada fez para integrar os antigos escravos na vida nacional. Os abolicionistas falavam em uma reforma agrária que integrasse a população negra como cidadãos deste país. Na realidade, quase 800 mil negros foram abandonados na mais terrível miséria. Não tinham terra, casa, emprego, previdência social ou de saúde. Nada. A sobrevivência em tais condições foi quase mais heróica do que a resistência na escravidão.

No Brasil atual, a forma mais comum de escravidão continua ligada à Terra e ao fato de que esta se encontra concentrada nas mãos de uma minoria que se acha com o direito de lucrar o que pode com a exploração do trabalho de homens que não têm como se defender ou escapar.

Em Brasília, funciona a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Reúne, além de membros do Poder Executivo e do Judiciário, integrantes de entidades representativas e organizações nacionais e internacionais da sociedade civil. Na semana passada (2a feira, 16), Nilmário Miranda, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), apresentou ao presidente Lula um relatório sobre os primeiros 18 meses do plano federal voltado para a erradicação do trabalho escravo. Só podemos ficar contentes com o fato de que, em 18 meses, 99 operações coordenadas pelo Ministério fiscalizaram 387 propriedades rurais. Foram libertados 6.465 trabalhadores e foram lavrados 3.633 autos de infração. A soma dos direitos trabalhistas pagos chegou a R$ 8,7 milhões.

Apesar dessas conquistas, há pontos que revelam a dificuldade que o Ministério enfrenta para aprovar uma lei que acabe com a impunidade de quem pratica a escravidão no campo. Parlamentares ruralistas ou ligados ao agro-negócio criam obstáculos para aprovar o projeto que prevê expropriação para fins de reforma agrária de fazendas nas quais os lavradores são escravizados. Também não aprovam a resolução que impede liberação de crédito de bancos públicos e mesmo privados a quem pratica escravidão. Como não se consegue aprovar a emenda que remete esse tipo de crime para a alçada da Polícia Federal e para o Tribunal Superior, parece que a exploração de mão de obra escrava não soa como absurdo para quem vive do agro-negócio. Há anos, um deputado, vice-presidente da Câmara, é acusado de trabalho escravo no Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão e até aqui não foi julgado nem afastado de suas funções legislativas.

Ao saber desses problemas, a gente constata o óbvio: se, de fato, for cumprida, a lei pode impedir que um proprietário escravize um lavrador ou o trate desumanamente. Mas, nenhuma lei pode obrigar um senhor a amar o seu empregado, um branco a estimar um negro ou indígena, alguém da elite a valorizar a cultura própria de um analfabeto. Só a espiritualidade, ou seja, a energia amorosa decorrente da fé pode propor e desenvolver esta atitude mais profunda de integração cultural e humana. Por isso, é fundamental ligar fé e vida, falar de Deus de modo que, ou se compreende que está se falando da energia amorosa divina que se manifesta no interior de cada um de nós ou Deus não existe.

Nunca pense em Deus como algo que existe acima dos humanos, um espírito oposto à matéria. Tradições religiosas, como o cristianismo, ensinaram que Deus é transcendente ao universo, como Pai e criador de todos. Isso é uma parábola. Deus é mistério e ninguém pode defini-lo. O que sabemos é que está no regaço da terra, na voz inquietante do vento, na alegria dos pássaros que voam. Manifesta-se na união sexual de duas pessoas que se amam, como também na amizade e na beleza das obras de arte.

Paul Tillich, um dos maiores teólogos evangélicos do século XX, dizia: "O nome da profundidade e do que está no mais íntimo de todo ser é Deus. Esta profundidade é o próprio sentido da palavra Deus. Se vocês virem o que há de mais importante e profundo na cultura e na vida de alguém ou de um povo, vocês estão tocando no mistério da presença de Deus"[1].

Por isso, recordar a memória do tráfico e da escravidão, como também saber que este crime continua a ser praticado no mundo atual e, às vezes, não longe de nós, nos interpela a uma ação solidária para acabar com isso. A crueldade deste crime nos atinge a todos. Enquanto existir no mundo pessoas escravizadas, nós temos algo a ver com isso. E poderíamos aplicar a isso o que, há dois séculos, dizia Pascal: "Jesus Cristo continua na cruz, sofrendo sua paixão".


[1] - PAUL TILLICH, The Schaking of Fundations, p. 63, citado por DIEUDONNÉ DUFRASNE, Célébrer les événements salutaires d’autrefois ou d’aujourd’hui?, in Paroisse et Liturgie 1969/ 3, p. 221.


* Irmão Marcelo Barros, Monge beneditino

21 de fev. de 2007

Tempos de Pós-Neoliberalismo ou Acomodação Social?


Muitos autores, entre eles Emir Sader, estão anunciando uma nova fase na humanidade: o pós-neoliberalismo. Este anúncio se deve aos novos acontecimentos que estão acontecendo no mundo, principalmente, com a formação de novos espaços políticos e econômicos que avançam em direções contrárias ao pragmatismo do FMI e do Banco Mundial.

Sabemos que os últimos anos da década passada, final do séc. XX, as nações entraram no surto que se alastra por todo o planeta ainda hoje, denominado de mundialização, globalização ou se quisermos politizar a questão, neoliberalização das relações nacionais e internacionais. Tal concepção tornou-se hegemônica dos anos 90 até nossos dias buscando incentivar a economia e seu crescimento por meio da reativação do capitalismo. Nestas condições faz-se necessário compreender o neoliberalismo como instrumento político que busca redefinir o papel da sociedade e das relações entre sociedade civil e sociedade política.

O capitalismo produziu o neoliberalismo como movimento ideológico em escala mundial. Isto fica bem claro nas palavras de Perry Anderson: “Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua margem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional”.

A partir de uma concepção weberiana, pode-se chamar o neoliberalismo de “novo credo” que busca pregar e dogmatizar ideologicamente a verdade de um Estado Mínimo obviamente sem afirmar tal absurdo com tanta veemência. As características principais do novo credo são, portanto, a desestatização e suas conseqüências drásticas, entre elas, a mais dura é a perda da soberania nacional.

O neoliberalismo é um fenômeno distinto do velho liberalismo clássico do séc. XIX. Nasce com o intuito de combater o Estado Intervencionista ou de Bem-Estar Social. F. Hayek (um dos maiores teóricos do novo credo) já afirmava que o Estado de Bem-Estar destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência. Seu pensamento se baseia na possibilidade de crescimento e aceleração da economia por meio da valorização sem precendentes da desigualdade social. Valorizar a desigualdade significa legitimar a fome, a miséria, a doença, o desemprego estrutural, o analfabetismo, enfim, significa na concepção de Hayek legitimar e perpetuar tais desigualdades para que a sociedade possa perceber o crescimento da economia.

Dois momentos históricos são marcos para que possamos compreender o crescimento e o avanço do neoliberalismo como fenômeno global. O primeiro refere-se ao fato de Margareth Thatcher ter se tornado a primeira ministra da Inglaterra em 1979. O segundo refere-se ao fato de que Ronald Reagan, em 1980, ter se tornado Presidente dos Estados Unidos contrariando todas as expectativas das críticas. Neste sentido, pode-se afirmar que a Europa e a América do Norte com o capitalismo avançado viram no neoliberalismo e em sua ideologia o possível triunfo do mercado.

O neoliberalismo inglês determinou regras mercadológicas que foram importantes para que fosse efetivada sem riscos de se perder em si mesma. Isto significou algumas posturas como o crescimento da emissão monetária, altas taxas de juros, impostos sobre rendimentos altos, abolição dos fluxos financeiros, implementação de uma legislação anti-sindical, o corte de gastos sociais e as privatizações. Em contrapartida, o neoliberalismo norte-americano se preocupou com o comunismo na hoje ex-União Soviética.

Aqueles governos que pretendiam não seguir os caminhos dos Estados Unidos e da Inglaterra tiveram que se reorientar devido às pressões do mercado internacional que se tornou o grande regulador das políticas públicas pensadas e definidas pelos Estados Nacionais. Esta reorientação está voltada a uma política ortodoxa o que representa a busca incansável de um determinismo político de cunho classista que defende unicamente os interesses das classes dominantes já que a mesma se encontra em vários setores da sociedade.

A América Latina, com seu autoritarismo político e a concentração do poder nas mãos do executivo, teve a primeira experiência neoliberal no Chile com a ditadura do General Pinochet na década de 70. Depois veio a Bolívia em 1985 e nos anos 90, as políticas neoliberais foram adotadas por Menem na Argentina, Pérez na Venezuela e Fujimori no Peru. No Brasil, deu-se início nos governos de Collor de Mello e de Itamar Franco, mas se efetivou concretamente com o governo de Fernando Henrique Cardoso. Todos os governos de centro-direita. Será que com a nova composição política de centro-esquerda na América Latina, Chile com Bachelet, Argentina com Kirchner, Brasil com Lula, Venezuela com Chavez, Bolívia com Morales, Uruguai com Vasquez e Peru com Toledo serão um sinal de um possível pós-neoliberalismo?

No Brasil, o neoliberalismo possui sua essência na velha e clássica concepção de liberalismo existente que se difere do liberalismo europeu. O liberalismo brasileiro assim como nos países da América Latina traz em sim simbolismos de um autoritarismo ditatorial. Francisco de Oliveira trabalha com a idéia de divisor de águas entre o velho liberalismo ditatorial e o surgimento do neoliberalismo que se dá com a efetivação do Plano Real no Governo Itamar Franco em 1994 que tinha como Ministro da Fazenda o então senador Fernando Henrique Cardoso que viria a ser por oito longos anos Presidente da República. Na verdade, a efetivação do Plano Real alavancou a candidatura de FHC que venceu o candidato da oposição Luis Inácio Lula da Silva em 1994 e em 1998. O Plano Real fez com que a economia se recuperasse em contrapartida fez com que o social piorasse. Para Francisco Oliveira o Brasil implementou o programa neoliberal desde 1993 e pretendeu realizar a “destruição da esperança e a destruição das organizações sindicais, populares e de movimentos sociais que tiveram a capacidade de dar uma resposta à ideologia neoliberal”.

Assim aconteceu nestes últimos anos com a depreciação moral por parte de veículos do Governo e da Mídia com as organizações da sociedade civil como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a elite era preciso fortalecer a organização da Força Sindical ligada ideologicamente às classes dominantes e a organização dos grandes proprietários de terra ligadas à Banca Ruralista no Congresso Nacional e à União Democrática Ruralista (UDR). Um fato curioso é que o neoliberalismo encontra sua legitimação via regime democrático, em Estados constituídos democraticamente. Por quê? Por que se usa de categorias como democracia e cidadania para se construir um mundo onde se cresce a desigualdade social e se amplia os bolsões de pobreza?

Podemos então dizer: o mundo se curvou ao neoliberalismo? É possível dizer que sim. Então como podemos pensar uma sociedade pós-neoliberal? A única soberania nacional que ainda resiste é Cuba que corre por todos os lados para sair do embargo econômico ditado pelos Estados Unidos há mais de uma década. Os países do leste europeu sucumbiram diante de fracassadas guerras civis e incorpora-se ao rol dos países pós-socialistas, hoje intitulados de sociais democratas com o pensamento único. A China, com um regime marxista ortodoxo abriu suas fronteiras para o mercado internacional, pois compreendeu que era necessário participar da fatia do bolo senão poderiam estar isolados diante da nova onda modista que assume o pensamento universal. Enfim, praticamente todos os países como Estados Nacionais se curvaram sim diante do neoliberalismo o que não implica afirmar que não houve e não há resistências por parte das minorias, das ONGs, dos movimentos populares e sociais em relação ao paradigma adotado.

As experiências dos países que adotaram o neoliberalismo perceberam que ele poderia ser a nova hegemonia ideológica do mundo e das consciências (mesmo que estes não viessem a ter noção do que seja neoliberalismo) pelo viés da economia monetária. Até mesmo os maiores inimigos da concepção neoliberal, os sociais democratas, romperam as fronteiras e assimilaram o discurso assumindo tal política em seus governos. Neste sentido, outros fatores podem ser questionados nesta nova dimensão, os conceitos de esquerda e direita. Aqueles que antes eram considerados de esquerda assumem o poder, com mandatos populares, com a missão de efetivar o sonho de construir uma sociedade mais justa e solidária e deixam o discurso esquerdista de lado, pois são ou obrigados a assumir as regulações impostas pelas agências internacionais ou a assumem como proposta de governo tais práticas. A própria direita se vê perdida. Não sabe também qual é o seu papel. Não possuem a experiência de oposição e sentem saudades do poder que agora está em mão de opositores políticos e não mais opositores ideológicos.

Deter a inflação é a base do discurso neoliberal que com a deflação possibilita-se uma maior geração dos lucros para os que possuem o monopólio especulativo do mercado. Juntamente com a detenção da inflação outras práticas são estimuladas como a derrota do movimento sindical, a contenção de salários e o aumento das taxas de desemprego para que se possa efetivas políticas públicas paliativas que cria o que denomino de cultura da acomodação social por parte dos pobres e miseráveis que são atendidos por programas que não possuem nenhuma transformação na qualidade de vida, na busca pela dignidade e na ampliação da cidadania destas milhões de pessoas. Por cultura da acomodação social entendem-se determinadas ações governamentais que estão a serviço do mercado a fim de efetivar políticas públicas de cunho assistencialista, paternalistas e paliativas gerando, portanto, reações nos atores que recebem tais medidas implantadas pelo Estado Mínimo. Tais reações podem ser identificadas como atitudes e valores que vão sendo construídas de forma a negar a participação sócio-política, a cidadania e dimensão da luta por justiça social o que se caracteriza por meio de certa apatia coletiva o que não deixa de ser a criação de uma nova cultura à qual denomino de acomodação social. As pessoas que se encontram em situação de miserabilidade não possuem anseios e sonhos de transformação social. Se na sociedade do séc. XIX até os anos 80, os pobres possuíram uma força histórica, hoje, estão condicionados a permanecer inertes nesta nova conjuntura neoliberal.

A única intenção é a de silenciar, calar e amordaçar a voz destes neo-oprimidos do séc. XXI que se acomodam com programa x e projetos y. Para o neoliberalismo as taxas de desemprego existente na sociedade de um determinado Estado se tornaram um “mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente” afirmam Pablo Gentili e Emir Sader.

A obtenção do êxito neoliberal se evidencia por meio da deflação, dos lucros, dos empregos para poucos e da contenção com gastos públicos, principalmente, salários. O êxito possui uma finalidade que é a de reanimar o capitalismo avançado mundialmente. As finalidades do programa neoliberais não foram alcançadas, pois não houve alteração na taxa de crescimento econômico. Os países que adotaram a cartilha lutam a cada ano para crescer economicamente seus países o que não vem acontecendo, pois grandes partes das rendas per capita são desviadas para o pagamento das absurdas parcelas de juros das dívidas externas. O fato de não haver crescimento econômico se deve ao próprio programa que é mais propício à especulação do que à produção. Assim, pode-se concluir que, muito se especulou e pouco se produziu. Outro fator importante deve-se ao Estado de Bem-Estar Social que, mesmo sendo atacado pelas políticas neoliberais, não teve sua importância reduzida no cenário conjuntural. O Estado de Bem-Estar Social aumenta os gastos sociais devido à taxa de desemprego e aumenta a cada dia a taxa de previdenciários. Isto ficou bem evidente no Brasil que buscou realizar uma Reforma Previdenciária ainda incerta em 2003 o que não impede que haja um continuísmo das velhas práticas bem conhecidas pela história da humanidade.

Mesmo com tais paradoxos da ideologia neoliberal, as políticas implantadas continuam fortes e sendo adotadas, em alguns casos recriados e em outros reinventados pelos governos que já não sabemos se de direita ou esquerda, seja na Europa ou na própria América. Com a queda do ideal socialista na ex-União Soviética o neoliberalismo se fortalece ainda mais se tornando visão unilateral de alguns a única via, o único caminho dinâmico.

O neoliberalismo é uma doutrina hegemônica que alcançou êxito política e ideologicamente falando. Fracassou economicamente, alcançando êxito socialmente ao realizar os programas de incentivos à desigualdade. No Brasil, tais programas podem ser percebidos pelos Programas: Bolsa-Escola, Salário-Escola, Renda Cidadã, Moradia Popular, PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), Comunidade Solidária, Universidade Solidária e tantos outros. Hoje, o Governo Federal cumprindo as agendas internacionais vem unificando os programas federais um único Programa Universal a todos os estados da Federação.

O que seria o pós-neoliberalismo? Não podemos vislumbrar o que seria, pois o fato da conjuntura política na América Latina ou na Ásia estarem voltadas para um pseudo-socialismo democrático não nos permite afirmar a superação da ideologia neoliberal. Ela se encontra em pleno êxito, pois os bancos crescem, as especulações se tornam cada dia mais promissor para o mercado e os governos sofrem com as imposições unilaterais das agências. Talvez então o pós-neoliberalismo seja uma expressão de efetivação, pois com certeza, já superamos a fase de implantação do neoliberalismo e o que vivemos é sua efetivação. Resta-nos saber quando iremos superar a cultura da acomodação que cresce a cada dia devido aos programas (que não são políticas públicas) neoliberais adotados pelos nossos governos “pseudos-democráticos e populistas”.

Claudemiro Godoy do Nascimento

20 de fev. de 2007

Deus grita com os excluídos


Mais uma vez no Brasil, o dia da independência não será marcado só por desfiles militares ou de Colégios. Em mais de duas mil cidades e distritos brasileiros, o povo irá às praças e ruas para viver o 10o Grito dos Excluídos. Esta iniciativa apoiada pelas pastorais sociais da CNBB e por diversos organismos da sociedade civil ocorre desde 1995. Atualmente, acontece em 22 países latino-americanos e, cada vez mais, se constitui como ampla manifestação popular para denunciar as situações que provocam a exclusão social e apontar possíveis alternativas e propostas de saída para o Brasil e o continente. No Brasil, este 10o Grito dos Excluídos terá como bandeira a partir da qual se reflete e se propõe caminhos um tema muito sugestivo: "Mudanças pra valer, o povo faz acontecer".


Apesar de reunir de forma ordeira e pacífica milhares de pessoas nas praças e ruas das cidades brasileiras e ser um fato novo que dá voz e vez aos excluídos da sociedade, os órgãos de comunicação ainda se interessam pouco em divulgar o evento. Entretanto, mesmo sem apoio da imprensa, há exatamente um mês, 400 chefes indígenas, representantes de 20 países das três Américas, reuniram-se em Quito, no Equador, na 1a Cúpula dos Povos Indígenas das Américas. Conforme Djénane Kareh Taget, jornalista do jornal parisiense Le Monde, este foi um dos acontecimentos sociais mais marcantes e de conseqüências importantes para as Américas.

O cardeal Martini, ex-arcebispo de Milão, dizia que uma das piores enfermidades do nosso tempo é a indiferença social e a apatia política que tornam as pessoas menos cidadãs e a sociedade menos democrática. É, então, quase um milagre que, em tantas cidades, os pobres e excluídos consigam se organizar e expressar sua insatisfação e suas justas exigências para a transformação da sociedade. Há dez anos, no México, os governantes ainda achavam que as manifestações dos indígenas de Chiapas não tinham importância e não mereciam atenção. Hoje, lidam com um fenômeno que mudou a história do país. O Grito dos Excluídos não pretende organizar nenhum levante social. Quer unir pacificamente todos os gritos presos em milhões de gargantas e mostrar à sociedade dos ditos incluídos que os empobrecidos e explorados, até hoje, sem vez e sem voz, estão se organizando em um movimento unificado e consciente: o Grito dos Excluídos, como espaço ecumênico das mais diversas lutas sociais e movimentos populares.

Há pouco menos de dois anos, a maioria dos brasileiros votou em um novo governo que prometia fazer todos os esforços para vencer a exclusão social através de uma justa reforma agrária, a promoção de um salário digno para os trabalhadores e a criação de milhões de novos empregos. Apesar de que há poucos dias, o presidente Lula comunicou aos brasileiros novas conquistas econômicas e melhoria nas taxas de emprego, a prioridade do governo parece continuar sendo a relação com os banqueiros internacionais e a manutenção da mesma política econômica que o PT condenou durante tantos anos. Até agora, o governo prossegue com uma ação de mão dupla. De um lado, segue a política que aprofunda a exclusão social e as injustiças e, do outro, reserva algumas sobras dos juros da gigantesca dívida externa para políticas sociais de emergência.

Diante disso, cada vez, mais numerosos setores da sociedade percebem que não basta eleger representantes honestos e dignos para o governo e para o parlamento. Por mais que sejam importantes termos partidos políticos coerentes e votarmos em programas ou propostas e não apenas em candidatos avulsos, dificilmente destes que ocupam o poder e dele se beneficiam virão mudanças estruturais para a sociedade. É doloroso constatar que, mesmo pessoas das mais conscientes e iluminadas cedem à tentação de agarrar-se ao poder, custe o que custar, como se isso automaticamente beneficiasse o povo. Sem deslegitimar a representação política institucional, nem pretender caminhos paralelos, os movimentos sociais se convencem sempre mais de que mudanças verdadeiramente profundas só se realizarão a partir de ampla mobilização social e conscientização da sociedade civil. Por isso, é fundamental reforçar o 10º Grito dos Excluídos porque, "mudanças pra valer, só o povo faz acontecer".

Tanto no Brasil, como em toda a América Latina, os níveis de desenvolvimento humano se deterioram e a realidade social não melhora porque a minoria que detêm o poder e a riqueza não quer por nada perder seus privilégios nem aceita partilhar seus lucros, obtidos com a exploração de seus irmãos. Dom Hélder Câmara sempre dizia seu espanto ao pensar que a maioria desta elite se diz cristã e foi formada em nossas Igrejas. Os países nos quais a cada dia se funda uma Igreja nova e, quotidianamente, aparecem novos grupos religiosos são os mais injustos e menos preocupados com a solidariedade.

Contra espiritualismos intimistas e religiosidade sem conseqüências na vida concreta, os profetas da Bíblia e o próprio Jesus usaram palavras duras e radicais. Por isso, foram perseguidos e mortos. A Bíblia diz que Deus é amor. Só quem vive o amor-solidariedade pode encontrá-lo. O simples fato de existir pessoas vítimas de injustiças sociais impossibilita a Igreja viver a fé do modo como Deus mandou. Organizar a sociedade como se fosse normal ter pessoas passando fome e vivendo uma vida sub-humana ofende de tal forma a Deus que, conforme os profetas bíblicos, fazer qualquer culto é zombar de Deus e orar se torna inútil. Cada pessoa empobrecida ou carente se constitui como um grito de que Deus está ausente ou indiferente. Se não assumimos para valer a causa do que sofre, testemunhamos que Deus não existe ou é insensível como, no mais profundo de nossas opções, nós mesmos estaríamos nos revelando. Devemos participar do grito dos excluídos, não porque temos certeza de que a causa deles vencerá ou porque eles sejam mais fortes ou numerosos e sim porque sua causa é justa. Optamos pela justiça e pela solidariedade porque devemos ser justos, mas também porque se não fizermos isso, nos distanciamos de Deus. Para quem crê, o grito dos excluídos é também o grito impotente e amoroso de Deus. Deus geme quando o excluído grita. No dia 07 de setembro, ressoará para todo o Brasil a palavra de Jesus: "Quem acolhe aos pequeninos em meu nome é a mim que acolhe. Quem os rejeita, rejeita a mim e ao Pai que me enviou".


* Irmão Marcelo Barros, Monge beneditino.
Escrito em 2004.

19 de fev. de 2007

Eucaristia: comunhão ou ato de exclusão?



Caro irmão João Paulo II,

No dia 17 de abril, 5ª feira santa, o senhor divulgou a sua 14ª carta encíclica: Ecclesia de Eucharistia.
Em primeiro lugar, quero agradecer o seu testemunho de fé e de amor ao ministério. É bom saber como senhor interpreta a fé e a missão da Igreja. É baseado neste mesmo amor que gostaria de levantar algumas questões e conversar com o senhor sobre pontos de sua carta que têm provocado sofrimentos e dificuldades tanto para pessoas que se sentiram excluídas da eucaristia como para grupos ecumênicos que trabalham sobre este assunto há décadas. Sinto que, ao lhe escrever sobre isso, represento muitos cristãos que desejam servir à Igreja e viver o amor à eucaristia da melhor forma possível, mas para isso precisamos compreender alguns pressupostos básicos. Sei que não é usual um simples monge escrever ao papa. Não me comparo com religiosos como Bernardo de Claraval e Catarina de Sena que escreviam a papas. Menos ainda comparo o senhor com os papas da Idade Média. Entretanto, o Concílio Vaticano II exortava os leigos (por que não os monges?) a “manifestar aos pastores suas inquietações e desejos com aquela liberdade e confiança que convém aos filhos de Deus e irmãos em Cristo. (...) Segundo o seu conhecimento, sua competência e habilidade, têm o direito e, por vezes, até o dever de exprimir sua opinião sobre as coisas que se relacionam com o bem da Igreja” (Lumen Gentium 37).
Neste mesmo espírito, escrevo-lhe esta carta chamando-o familiarmente de “senhor” e lhe expondo algumas dúvidas que sua encíclica suscitou em mim e em muitos pastores, teólogos e leigos da nossa própria Igreja e em muitos cristãos de outras Igrejas.

1 – A Igreja vive da Eucaristia

O senhor escreve: “A Eucaristia é o próprio núcleo do mistério da Igreja” (n. 1) e cita o Concílio Vaticano II ao insistir: “A eucaristia é a fonte e o cume de toda vida cristã” (LG 11).
A Igreja vive em eucaristia permanente no sentido de que toda sua experiência de vida tem sua fonte na eucaristia e nela culmina. Há uma relação íntima entre eucaristia e a vida cotidiana, em todos os aspectos, sociais, econômicos, políticos e culturais. A eucaristia é fonte: provoca todos estes aspectos da vida da Igreja e os supõe para poder ser cume deles.
A eucaristia é fonte e cume da vida eclesial, enquanto sinal. Será que, muitas vezes, não confundimos o sinal com a realidade? Não podemos dizer que a eucaristia é o núcleo do mistério da Igreja como quem afirma que o principal do amor entre duas pessoas é o carinho corporal. Ele é a expressão máxima entre duas pessoas que se amam, mas ninguém pode viver um casamento em função do sexo. Comer é fundamental para viver. As refeições são momentos centrais do dia. Mas, não vivemos para comer. O núcleo do mistério da Igreja é a solidariedade, ágape, expressa na eucaristia. Não podemos valorizar a fonte e o cume, esquecendo o caminho, isto é, o que concretamente a eucaristia produz e o que ela supõe, exatamente para ser fonte e cume de toda a vida da Igreja. Então, não seria mais correto dizer que a Igreja vive do amor solidário, testemunho do Reino de Deus, e isso se expressa como sinal na eucaristia?
Se é assim, por que, ao falar da eucaristia, dedicamos tão pouco espaço à sua relação com a vida social e às exigências da solidariedade entre nós? Não foi isso que Paulo fez ao abordar a questão da eucaristia na carta aos coríntios? Para ele, participar de modo correto ou receber indignamente a Ceia do Senhor dependia de como os cristãos de Corinto tratavam os pobres que quando chegavam à ceia não encontravam mais o que comer (Cf. 1 Cor 11, 26 ss). A sua encíclica dedica um número (o 20) à relação entre a eucaristia e “a responsabilidade pela terra presente”. Diz que, no 4º Evangelho, o relato do lava-pés “ilustra o profundo significado do sacramento”. Lembra que Paulo chama de “indigna” a comunhão de uma comunidade que participe da Ceia em contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (Cf. 1 Cor 11). Entretanto, só toca nesta relação entre eucaristia e justiça no final do capítulo 1, como se fosse conseqüência da eucaristia e não o seu pressuposto fundamental. O que isso denota como visão de Igreja e da fé?
Os cristãos primitivos chamavam a eucaristia de “repartição do pão” e certamente isso não é por acaso. É importante lembrarmos isso aqui no Brasil neste momento em que o governo federal propõe o Fome Zero.

2 – A Missa, memorial do único sacrifício

Na carta, o senhor cita várias vezes o Concílio Vaticano II e alguns documentos do magistério recente, mas a doutrina expressa em sua encíclica é anterior ao Concílio de Trento. Paul de Clerck, professor de Liturgia do Instituto de Teologia de Paris, diz que esta encíclica se baseia na teologia eucarística do século XIII. Ora, esta foi feita para responder a problemas daquela época. O senhor a julga atual e a propõe para a Igreja toda (n. 9).
Sem dúvida, o senhor está ao par de todo o trabalho teológico, nos últimos séculos, elaborado sobre a eucaristia, com todo um cuidado de falar a linguagem da humanidade de hoje. Em nenhum momento da encíclica, o senhor leva em consideração esta pesquisa e reflexão. Ao contrário, até na linguagem, recua em relação ao Vaticano II. Em nenhum momento, fala nem rapidamente na Palavra de Deus, elemento, desde os tempos apostólicos, essencial à eucaristia. Não valoriza a Liturgia da Palavra e fala do “santo sacrifício da Missa” e não na Ceia do Senhor; chama os ministros de sacerdotes e não de presbíteros.
O senhor insiste que a eucaristia é “sacrifício em sentido próprio e não apenas simbólico ou figurativo”. Sem dúvida, usa esta expressão não para dizer que o Pai quis a morte do Filho ou para dizer que Jesus morreu para pagar a dívida da humanidade ao Pai, como era a teologia medieval (Santo Anselmo). Parece usar o termo sacrifício no sentido de “entrega da vida ao Pai”, doação total de si mesmo. E neste sentido, nós todos cremos.
Hoje, nenhuma Igreja nega que a Ceia do Senhor tem intima relação com a Cruz de Jesus. É memorial da morte de Jesus que foi relida pelas Igrejas primitivas como “sacrifício”. O termo “sacrifício” não foi usado explicitamente para a eucaristia por nenhum documento do Novo Testamento. Hoje, esta linguagem provoca dificuldade entre muitos cristãos. Por que impor a todos uma interpretação da fé como se fosse a própria fé, quando esta forma de falar não diz nada a muitos católicos e nos divide de irmãos de outras Igrejas? Não seria mais de acordo com a fé na eucaristia, seguir o conselho do papa João XXIII e afirmar a fé de modo que una os irmãos e não nos divida?
Como falar de Deus Amor que se agrada com o sacrifício e a morte do Filho para reconciliar-se com a humanidade? Para testemunhar que Deus é Paz e dom de vida, devemos substituir esta categoria do sacrifício por um equivalente que valorize a doação de Jesus aos seus, sua fidelidade ao projeto do Pai, a entrega de sua vida a Deus e como na cruz ele nos revelou uma nova face de Deus. Celebrar a Ceia é testemunhar um Deus Amor que dá a sua vida por todos os homens e mulheres, perdoa a todos e não exclui ninguém.
Conforme Paulo, não celebramos dignamente a Ceia do Senhor se mantemos privilégios e exclusões, como a das mulheres nos serviços ministeriais e dos leigos considerados “menos capazes para exercer o ministério”. O sacrifício de Jesus foi o da entrega de sua vida “pela unidade de todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52). Este sacrifício, ensina Santo Agostinho, acaba com todos os sacrifícios. A partir dele, não é mais necessário nenhum outro sacrifício.
Com muita felicidade, o senhor escreve em sua carta: “Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » inclui, para quem participa na Eucaristia o compromisso de transformar a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda eucarística » (n. 20). E cita S. Agostinho, em uma de suas homilias na noite da Páscoa: “O apóstolo diz: « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27). Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis » (...) « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade » (n. 40).

3 – Celebração eucarística e celibato

O senhor insiste em que a eucaristia é essencial e depende do sacerdote ordenado. Repete que as comunidades não podem celebrá-la sem o padre e que os cultos dominicais sem padre não substituem a eucaristia.
Os pais da Igreja ensinavam que quem faz a eucaristia é a comunidade. No Brasil, são milhares de comunidades católicas que, cada domingo, não têm padre e fazem o culto da Palavra. Por que será que todas estas comunidades não têm padre e por que algumas só recebem visita de um padre algumas vezes por ano? Não seria pelo fato do senhor não aceitar abrir mão do celibato obrigatório e ordenar como presbíteros homens casados, dignos e preparados para o ministério. E também não reconhecer a validade do ministério de padres que casaram e, com alegria, aceitariam exercer o ministério. Como monge, opto pelo celibato e, apesar de minha fragilidade pessoal, o tomo como caminho de vida. Por experiência, sei que o celibato pode ser graça de Deus na vida e no caminho espiritual. Mas, em pleno século XXI, não deveria ser deixado mais livre para os presbíteros? Sem falar que, no Ocidente, a Igreja Católica é a única das Igrejas históricas que não aceita ordenar mulheres. Por que? Nesta encíclica, o senhor ensina que a eucaristia é o mais importante dom de Deus à Igreja. O que, então, é mais importante: a eucaristia dominical assegurada por bons presbíteros ainda que casados ou manter como lei obrigatória o costume latino do celibato obrigatório?

4 – Ceia de inclusão e de amor

A encíclica liga a eucaristia à pessoa de Jesus para afirmar o seu “sacrifício” mas faz poucas referências à sua vida concreta. Não lembra como ele comeu com pecadores e com gente de má vida. E todos os autores que meditam sobre a Eucaristia insistem que não se compreende a natureza da eucaristia se não se levam a sério as refeições que Jesus tomou com sua comunidade de discípulos/as e amigos/as, ao longo da sua vida pública. “Nas refeições, Jesus se revela e revela um rosto de Deus. “Il y a là bien la revélation dirècte de Jésus dans sa simple verité...” (Jacques Guillet[1]).
Nos anos 80, a Conferência dos Bispos da Alemanha publicou um “Catecismo para Adultos” no qual ensina: “As refeições que Jesus partilha com os discípulos durante toda sua vida anunciam e antecipam a refeição do fim dos tempos (...). Ao mesmo tempo, significam que as pessoas que se consideravam perdidas, vêem-se acolhidas na comunidade. (...) As refeições de Jesus eram sinais da salvação que ele inaugurava, sinais da nova comunhão com Deus e de uma nova fraternidade entre os seres humanos”[2].
Nestas refeições cotidianas, Jesus anunciou uma nova fraternidade entre os seres humanos e significou o Reino abrindo a participação em sua mesa a todos, pobres, pecadores e gente marginalizada. Se, como dizem os bispos alemães e tantos teólogos, estas refeições são modelos para a eucaristia, então que sentido tem a disciplina eclesiástica tornar a eucaristia uma mesa fechada e excludente?
Nos séculos antigos, em Igrejas locais, verdadeiramente comunitárias e plenamente Igrejas, com um regime organizado de catecumenato e penitência, estas normas com relação às exigências para os fiéis se aproximarem da Eucaristia tinham sentido. Eram justas. O espírito não era excluir ninguém e sim preparar as pessoas pela penitência quaresmal para uma participação verdadeira e profunda. Hoje, dizer que uma pessoa divorciada não pode comungar simplesmente a exclui da Ceia do Senhor, em muitos casos, para sempre. Ao menos que se pretenda cometer a injustiça de mandá-la despachar o novo cônjuge, às vezes até com filhos e filhas.
Na sua encíclica, o senhor lembra que só pode aproximar-se da Eucaristia quem estiver “livre” de pecado grave. Mas, o que é pecado grave? Sei que estou entrando em assunto delicado e faço isso com todo o respeito ao senhor, mas por exemplo, em suas viagens pelo mundo, freqüentemente o senhor deu a comunhão a presidentes da República, casados em segundas ou terceiras núpcias, como era o caso do Collor no Brasil e do Menen na Argentina. Por que um presidente da República pode e um cristão comum não pode? Estranho isso menos do que ver pela televisão que, em plena ditadura chilena, o senhor celebrou a eucaristia no palácio presidencial e deu a comunhão ao General Pinochet que, apesar do sangue derramado dos oponentes, é casado na Igreja e é contra o divórcio. Que Deus torne a Igreja semelhante a Jesus que comeu com gente de má vida e disse: “eu vim para os pecadores e não para os justos”.
O senhor repete o que diz a declaração Dominus Jesus: reconhece como “Igrejas” as ortodoxas e chama as Igrejas evangélicas de “comunidades eclesiais”. E proíbe que católicos comunguem em celebrações eucarísticas destas igrejas “para não dar aval a ambigüidades sobre algumas verdades da fé” (n. 44). Como conciliar esta concepção de Igreja com a eclesiologia do Concilio Vaticano II? Como continuar o caminho ecumênico depois disso? Será que os tantos acordos ecumênicos já feitos entre algumas Igrejas não valem mais? Por que não foram lembrados? O que é mais importante a clareza intelectual ou a caridade e o testemunho do amor? Será que “a clareza sobre algumas verdades da fé” é mais importante do que a acolhida mútua e a unidade real vivida por cristãos que pensam diferente mas celebram com respeito e carinho o memorial do Senhor, neste mundo dividido e no qual as religiões representam forças de oposição e não de unidade?
Como argumento contrário à intercomunhão o senhor diz que a eucaristia só tem sentido quando expressa a unidade já vivida. No campo do ecumenismo, o senhor insiste na exigência de unidade já realizada, mas não exige a mesma coisa ao falar da justiça e do compromisso com a vida no plano social. Além disso, se como ensina o Vaticano II, cada Igreja local não é apenas um pedaço da Igreja e sim uma Igreja em sentido pleno, este argumento de uma unidade já realizada não poderia ser conferido neste plano das Igrejas locais? Se um determinado grupo, como, por exemplo, a comunidade de Taizé, a de Grandchamps e tantos grupos teológicos que trabalham há décadas e têm uma fé absolutamente em comum na eucaristia, por que proibi-los de comungar?
Deixo ao senhor estas perguntas e fico orando por nossa Igreja para que seja como afirmaram, um dia, os bispos da América Latina: “uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a).


Irmão Marcelo Barros, osb

[1] J. GUILLET, Jésus dans la foi des premiers disciples, Desclée de Brouwer, 1995, p.
[2] - CONFÉRENCE ÉPISCOPALE ALLEMANDE, La Foi de l’Église, Cathéchisme pour les Adultes, Paris, Ed. du Cerf, 1987, p. 334.

18 de fev. de 2007

O Natal de Jesus da Silva



A cada ano o mundo todo celebra o Natal. De festa pagã do Império Romano à festa cristã que simboliza o nascimento do Filho de Deus, Jesus de Nazaré, que segundo a tradição nasceu numa manjedoura em Belém.

Assim, todos os anos a cultura ocidental festeja este momento de Ação de Graças. De tanto incentivar os festejos, até mesmo a cultura oriental aceitou vive-la também.

Jesus também sonha em celebrar este momento apesar de sentir que as coisas estão difíceis para seu lado. Ontem, a polícia o expulsou do banco da praça em que dormia no Centro de São Paulo. A expulsão se deu visto que onde ele estava são pontos de comércio e nesta época de Natal, as ruas e lojas ficam cobertas de clientes a procura de ofertas imperdíveis. Mas, isso já era normal para Jesus da Silva, um jovem mineiro que nasceu num prostíbulo de estrada, ponto de caminhoneiros, na região do Vale do Jequitinhonha. Desde cedo, sua mãe veio com ele à São Paulo tentar a sorte, mas ela morreu de overdose de cocaína quando Jesus tinha apenas 6 anos de idade. Por coincidência do destino ou da história, sua mãe se chamava Maria das Graças da Silva, mais conhecida como Gracinha. Morreu jovem com apenas 23 anos. Jesus ficou na rua, nos albergues e em centros de acolhimento ao “menor abandonado”, mas não gostava. Sempre se identificou com a rua e com os seus.

Jesus nunca foi à escola. Não sabe ler e escrever. Conhece somente as histórias do povo da rua e seus midrashes (contos e histórias populares) de um mundo suburbano e subumano. Nunca foi a um posto de saúde, exceto uma única vez que um dono de bar lhe quebrou o braço por estar pedindo esmola na frente de seu estabelecimento. A polícia o levou para engessar seu braço no Hospital. Quanto ao agressor foi aplaudido pela polícia que o incentivou a continuar atuando dessa forma, “metendo a mão” como falam no popular.

Jesus da Silva carrega consigo sua certidão de nascimento que sua mãe entregou antes de morrer com as drogas, já que era viciada. Talvez, por isso, Jesus nunca tenha cedido lugar às drogas em sua vida. Somente “cola de sapato” que utilizava como recurso para superar a fome quando esta lhe apertava o corpo e a alma. Também, nunca roubou coisas grandes como bolsas das madames ou celulares, pois não via necessidade disso. Às vezes, por causa da fome furtava um pão, um doce, um salgadinho de alguém e quase sempre era pego e apanhava. Ele sabia que não era pecado, pois uma vez ouviu um homem franzino com roupa de padre falar na Catedral da Sé que se o roubo for para matar a fome não era pecado, tratava-se de Dom Hélder Câmara. Mesmo sem saber o que era pecado confiou naquele homem de aparência franzina, mas com uma voz que o deixou em paz e feliz.

Todos os seus o conhecem. Os seus são moradores de rua como ele. Viram o menino Jesus crescer e se tornar um homem. Ele sempre ouviu falar do Natal, dessas festas, mas nunca entendeu muito bem o seu significado. Para ele, Jesus era seu nome, nada mais que isso. Papai Noel era um velhinho que aparecia nesta época do ano para das presentes às crianças ricas, pois ele mesmo jamais recebeu um presente sequer. Com 11 anos, tentou pedir um presente na frente de uma loja na Rua Direita, mas retiraram-lhe dali, daí o surgimento dessa intuição de que Papai Noel é para os que não são como ele.

O tempo passou. Hoje Jesus está com 33 anos e ainda morador de rua. Nunca foi para a FEBEM e nem preso. O seu mundo é a rua. O seu lar é a calçada e os becos de um submundo da dor. Para ele, apenas destino. Uns têm o direito de ter casa, estudo, trabalho e família. Outros, como ele, têm o direito de respirar e pedir aos outros, assim pensa Jesus da Silva. Sua concepção de cidadania parte do pressuposto da normatização dos destinos, ou seja, é natural sua condição de vida, pois Deus e a sociedade assim o quis.

Mais um Natal chegou. Papai Noel, presépios, compras e muitas compras. Com o advento do deus mercado, nesta sociedade de consumo, as origens da Festa cristã estão sendo substituídas para a Festa Lucral, tempo do Kairós do Mercado Total e da Livre Concorrência, pois tudo vale na lógica do lucro e do capital. Então, de pagã à cristã e de cristã a lucral.

Jesus, o Silva, mais uma vez passará o Natal entre os seus, procurando as migalhas que caem da mesa farta dos ricos. E, Jesus, o Nazareno ficará mais uma vez preso ao presépio ou sacrário dentro de uma Igreja ou em praças como um símbolo ultrapassado do Verbo de Deus que se encarnou entre nós, pois Jesus nasce entre, com e como os pobres de todos os tempos da história. O que importa hoje para a sociedade é o Papai Noel. As próprias crianças conhecem muito mais Papai Noel, produto da Coca-Cola, do que Jesus de Nazaré que nasceu em Belém da Judéia.

Ceia? Jesus da Silva nem sabe o que é isso. Sua ceia será o lixo a procura de um alimento que com sorte deverá encontrar. Com certeza não será peito de frango ou de peru. Nesta noite dormirá com os seus junto a um viaduto onde se esquentarão do frio da cidade. Frio do esquecimento e da naturalidade de condição que lhes foi imposta pela mesma sociedade hipócrita que hoje celebra o Natal em nome do nascimento de Jesus de Nazaré e se curva ao deus mercado e à Papai Noel.

Jesus da Silva fará a fração dos alimentos que encontrou no lixo com outros moradores de rua, alguns já meio altos da pinga que não é difícil de conseguir neste mundo. Na manjedoura do viaduto partilharão os restos de comida encontradas nos lixos depois de tanta procura. Na fração desse alimento Jesus da Silva se encontra com seu amigo Jesus de Nazaré. Mesmo sem saber ambos comerão a Ceia, pois Jesus e Jesus, o Silva e o Nazareno serão a mesma pessoa. Mais um Natal se passará, a exclusão continuará e só teremos uma certeza, a de que “a Palavra se fez homem e habitou entre nós!” (Jo 1, 14). Enquanto isso... No mundo lucral...


Claudemiro Godoy do Nascimento

Escrito em Dezembro de 2005