18 de jun. de 2007

Reforma agrária, justiça social e soberania popular

Claudemiro Godoy do Nascimento *

Adital - O que podemos esperar do 5º Congresso Nacional do MST? Talvez seja esta a pergunta que muitos e muitas estarão se fazendo durantes estes dias no qual acontece em Brasília o Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O encontro que foi aberto oficialmente no dia 11 de junho irá possivelmente romper com a política agrária do governo Lula que descambou para o ridículo. A principal tarefa do MST é continuar fazendo com que a sociedade brasileira não perca o sonho e a utopia de que é possível outro mundo, outra sociedade, outra soberania, outra política e, principalmente outra reforma agrária. Somente o MST pode clamar por tais demandas já que simboliza o que há de mais genuíno nos movimentos sociais do Brasil. Uma cidade de lona será construída em Brasília durante o Congresso Nacional que receberá cerca de 18 mil delegados dos Projetos de Assentamentos e de Acampamentos espalhados pelo Brasil.
As místicas realizadas nos encontros do MST representam quase sempre a memória da luta dos trabalhadores contra os latifundiários e a resistência contra as violências implementadas pelo Estado e pelos grupos oligárquicos do meio rural que hoje são representados pelo laço matrimonial entre o Agronegócio e o Latifúndio, que não se realiza ainda devido as ações coletivas realizadas pelos trabalhadores rurais que resistem em suas lutas sociais. Na mística, realizada sempre no início das manhãs ou no retorno do almoço, ou ainda, nas vésperas que antecedem o findar do sol que nos ilumina, é quando o povo trabalhador se une ao clamor do Deus da Vida. Lembrar os mártires, os companheiros da caminhada, mulheres, homens, jovens e crianças, significa lembrar que Deus caminha com seu povo na busca da justiça. Lembrar as organizações que apóiam a luta significa pensar que Deus suscita companheiros e companheiras dos lugares donde menos esperamos, mas que estão ali, unidos e fortes na marcha em defesa da dignidade humana, entre elas, a Comissão Pastoral da Terra que foi uma espécie de irmã mais velha do MST.
Além disso, o Congresso do MST refletirá e abordará durante estes dias a conjuntura política brasileira e internacional e os avanços e refluxos do MST durante estes 23 anos de história. A saudação aos participantes do encontro foi feito por representantes de organizações que apóiam incondicionalmente as ações e lutas do MST e pelo movimento Marina Santos abriu oficialmente o 5º Congresso Nacional. O curioso foi a falta de um representante do governo Lula na abertura do Congresso o que representa um indício de que as relações estão estremecidas.
Houve uma reflexão sobre a conjuntura internacional e o grupo de mística apresentou a luta dos trabalhadores dos cinco continentes com uma águia norte-americana voando sobre suas cabeças o que representa que os povos do Sul ainda não conseguiram sair da dependência estadunidense. O principal nome dessa análise conjuntural foi François Houtart, professor da Universidade Católica de Louvain na Bélgica, que assumiu a defesa dos movimentos sociais em todo o mundo. Para ele, vivemos numa crise do neoliberalismo e o declínio do imperialismo norte-americano, mas ainda hegemônico e talvez os movimentos sociais precisem ficar atentos. Uma coisa é queda do império, outra é a queda do capitalismo. O capitalismo procura novas fronteiras, entre elas, a transformação da agricultura camponesa em espaços de mais-valia no campo com o chamado Agronegócio e Hidronegócio. E reafirma veemente o Professor François Houtart: "os movimentos sociais devem se fortalecer, lutar contra as guerras e contra a lógica do capitalismo. O modelo capitalista de desenvolvimento destrói a natureza e condena à morte milhares de pessoas. O capitalismo não tem uma espiritualidade que pense e objetive justiça social. A Teologia da Libertação tem que reviver em nossos movimentos" (Fonte: CPT).
No século XX, o grande inimigo foi o capitalismo, isso serviu para que os movimentos sociais e populares passassem da resistência à ofensiva. Resta agora construir novas redes de solidariedade entre os movimentos para que se fortaleçam num objetivo comum e encerra dizendo: "Os movimentos populares tem que ter a consciência que se trata de uma luta de classes mundial contra o capitalismo. São lutas comuns que precisam reforçar o protagonismo dos movimentos" (Fonte: CPT).
Além da luta pela terra, o MST é convocado a construir justiça social e soberania popular. Significa que os paradigmas almejados pelo movimento social se diferem da lógica do governo Lula que anuncia como seu carro chefe, aquilo que conduzirá seu segundo mandato, o PAC. A busca incondicionada por crescimento econômico se difere da busca incondicionada por justiça social realizada pelo MST e outros movimentos sociais que se unem ao mesmo clamor. O PAC representa a adesão ao capitalismo e suas conseqüências que poderão contribuir ainda mais para aumentar a desigualdade social, por outro lado, poderá também contribuir para o desastre ambiental que se inicia em nosso planeta.
O PAC de Lula representa apoio ao Agronegócio e a Transnacionais que continuarão sua investida contra os trabalhadores rurais a todo e qualquer custo, pois se busca somente a mais-valia, o lucro em nome da espoliação de milhões de famílias. Além disso, o PAC representa o Hidronegócio que neste dia inicia, de forma autoritária, a tão falada Transposição do Rio São Francisco. O mercado falou mais alto do que as vozes dos trabalhadores rurais ribeirinhos. Como explicar tais atitudes de um governo que nasceu a partir da luta dos trabalhadores no Brasil?
Não é a proposta dessa reflexão, mas, superficialmente penso que a questão se encontra no modelo de trabalhador que temos no Brasil. Há dois modelos: o trabalhador operário, sindicalizado, urbano e que não teme realizar acordos (pois já realizam acordos com seus patrões) e, agora, a realizam na política também; e, existe o trabalhador camponês representado pelo MST e também por outros movimentos sociais do campo que não possuem a mesma lógica do operariado, não possuem sindicatos, mas coletivos e assembléias populares, são camponeses mesmo tendo uma concepção do urbano e o principal, não realizam acordos com os latifundiários e fazendeiros, portanto, também na política não realizam acordos que poderá distorcer o sentido da luta.
O que quero dizer, resumidamente, pois se necessita de uma análise histórica mais completa, é que o mundo de Lula não é, definitivamente, o mundo do MST. A lógica que permeia o mundo de Lula é a lógica de uma concepção operária de luta sindical que demanda por reivindicações que possibilita acordos com os patrões. Já a lógica do MST e dos trabalhadores rurais é a lógica de uma concepção camponesa de luta social que demanda por reinvidicações que não possibilita jamais qualquer acordão com os latifundiários e fazendeiros. Daí a incompatibilidade de Lula compreender a importância da agricultura familiar camponesa em substituição a uma lógica compensatória de agricultura familiar politicista.
Para o MST, soberania popular significa uma soberania a partir dos desejos e anseios do povo e não de governos e, muito menos, do mercado. Uma das bandeiras do MST para que consigamos soberania popular está na educação. Aqui também as lógicas são contrárias entre o PDE de Lula e o desejo de uma educação popular que surja a partir dos interesses e anseios de cada comunidade. Universalizar o ensino significou para o MST uma amordaça colocada na boca das comunidades espalhadas pelo Brasil e que hoje não possuem autonomia alguma para construírem o seu projeto político pedagógico, com sua matriz curricular, com seu jeito próprio de pensar e de fazer a educação e as ações pedagógicas. O PDE não passa de mais um plano que se destina a aumentar o fosso entre educação crítica e educação mecanizada para o mundo do trabalho.
Dessa forma, podemos perceber que o MST não pode deixar de calar-se na sociedade brasileira. É o único movimento social que pode, de fato, estremecer as armaduras do capitalismo implantado nas lógicas de um governo que se diz defensor dos trabalhadores, mas que faz acordos políticos com latifundiários, fazendeiros, banqueiros e com empresários que são contrários às demandas sociais já que pensam tão somente em suas posses e propriedades privadas.
É exatamente por isso que o MST pode contribuir para que não percamos os sonhos, as esperanças, as utopias de que é possível realizar uma transformação histórica na sociedade brasileira acostumada a ver escândalos políticos de corrupção e considerar uma ação normal. O MST simboliza exatamente esse sonho que não pode acabar. Muitos dirão: Eles querem a Revolução Proletária. Diria que não, pois os papéis hegemônicos se inverteriam caso se quisesse realizar Revolução Proletária. O que se quer é justiça social para todos e até mesmo para os fazendeiros e latifundiários que devem aprender com o MST a partilhar o pão.

* Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação pela Unicamp. Doutorando em Educação pela UnB. Pesquisador do Centro Transdisciplinar de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural - CETEC/UnB

Envio para libertar a Terra (1)

Marcelo Barros *

Adital - Para mim (2) é uma alegria imensa estar aqui neste 5º Congresso do MST. Sinto-me quase como se estivesse voltando para reencontrar os companheiros que me acolheram em minha ida a Ronda Alta, em 1980, quando, junto com outros companheiros fui detido pelos homens do famoso Coronel Curió... A diferença é que naqueles contatos primeiros, estávamos arriscando a vida e ainda com um projeto iniciante. Agora, vemos um movimento consolidado e vitorioso, mesmo se com desafios sempre novos. E é justamente sobre desafios e perspectivas de agora para frente que eu quero conversar com vocês aqui. Sou monge e a gente tem certos vícios de profissão que não tem jeito, por mais que se critique, acaba sempre retomando. E hoje este condicionamento de religioso me faz querer fazer desta conversa aqui com vocês um envio.... Uma espécie de pedir a bênção à Mãe Terra, à Pachamama, para um imenso desafio que nós temos pela frente neste Brasil do agronegócio e do etanol. E quando a gente fala de missão, tem de ter claro qual a missão, por que (as motivações) e como podemos cumpri-la. E estes são os três passos que quero agora percorrer com vocês.
1. Libertar a Terra do destino de mercadoria
Nós somos, todos, filhos e filhas da Terra. Eu me lembro na Bolívia de ver, no mês de agosto, quando a terra descansa no tempo da entressafra, lavradores dizerem: Neste tempo agora, ninguém deve arar nem plantar nada, porque a Pachamama está naqueles dias que a gente deve respeitar. E de repente, chega uma empresa capitalista e devasta tudo, desrespeitando os tempos e os ritos. Não podemos deixar de sofrer ao ver nossa mãe agredida, explorada, estuprada por este modelo de organizar o mundo.
Há muita gente por aí que ao ver nosso congresso ou se escutassem minhas palavras, nos julgariam sem lógica. Atrasados. Contra o progresso. Por que eles têm outra lógica, uma lógica que nós julgamos perversa. A lógica deles é o mercado. O mercado sempre existiu no mundo e, em si, é uma coisa boa de relação humana e intercâmbio.... Eu adoro ver estas feiras de troca-troca que tem em alguns lugares do Brasil. No Equador, tem uma imensa.... Não se usa dinheiro. Troca-se um casaco de frio por uma flauta indígena, um livro por um CD e assim por diante... O mercado nacional e internacional é uma instituição de intercâmbio e sociabilidade humana, como a escola, uma Igreja e mesmo um governo. Em sociedades antigas, o mercado era subordinado às instituições sociais. A família, a Igreja, o governo.... Ninguém vendia uma coisa a um irmão ou a um parente para ter lucro... A Igreja fazia dias de feriado que todo mundo obedecia e fechava o mercado naqueles dias. Os governos garantiam preços justos para os pobres. O mercado era controlado. A sociedade capitalista emancipou o mercado e, ao contrário, colocou a sociedade sob o domínio do mercado. Aí o mercado impõe suas leis, por exemplo, o individualismo. Cada um por si e Deus por ninguém. O que importa é o interesse individual. Isso é da lógica do mercado capitalista. Não pode ser diferente. A única coisa que o mercado entende é de mercadoria. Se não há mercadoria, não há mercado. Mercadorias são bens ou serviços produzidos para serem vendidos a qualquer pessoa por um preço definido pela oferta e procura. O conceito de mercadoria é chave, porque a tendência do mercado é tratar todos os bens e serviços como se fossem mercadorias. Mercadoria é o fruto de uma produção humana. O trabalho humano não é mercadoria. A Terra não é mercadoria. A Água não é mercadoria. A própria vida não é mercadoria. Mas, a lógica de funcionamento do mercado é fazer de tudo mercadoria. E aí os valores da sociedade de mercado são a livre iniciativa, a competição, a capacidade de empreender, etc. Por isso, nós não podemos condenar apenas o capitalismo selvagem e ser contra os excessos do mercado. Não. Temos de ser contra este tipo de mercado, ou este tipo de sociedade que gira em redor do mercado.... (3). Por causa dele, segundo os estudiosos, todas as noites, ao menos um terço da humanidade vai para cama com fome.
Precisamos libertar a Terra, libertar a humanidade e libertar a nós mesmos desta escravidão (4). Há cinco séculos, dominava o colonialismo. Havia a escravidão negra, indígena e outras. Agora existem o que chamam de políticas de desenvolvimento. São formas de controle tão efetivos e sistêmicos quanto as políticas escravagistas de antes. Antigamente um exército estrangeiro vinha, invadia e ocupava a terra dos pobres. Agora, fazem isso com tratores e com soja ou, agora o governo brasileiro quer fazer com cana de açúcar para o etanol. A finalidade é pagar a divida externa brasileira e o resultado é mais exclusão social e mais destruição da natureza. É a invasão do Capitalismo no campo. Como resistir e como vencer esta invasão dominadora?
Minha amiga e assessora de comunicação, a jornalista Thânia Coimbra (de Goiânia) perguntou a um companheiro da luta pela terra como resistir a isso e ele respondeu que são necessárias quatro motivações ou condições e quatro elementos pelos quais devemos lutar (5).
As motivações são as seguintes:
1) - Ser dono do seu tempo, ser livre para fazer suas escolhas, ter liberdade de ir e vir.2) - Testemunhar o fruto do próprio trabalho: que alegria a pessoa colher o que planta e ter o gosto de ver beleza naquilo que faz: Para o lavrador, existe alegria maior do que ver o campo florido, o fruto maduro e a mesa com fartura?3) - Valorizar a qualidade de Vida que se tem quando se vive no campo. Um ritmo de tempo mais tranqüilo, a gente conhece os vizinhos e se faz amizade. A comida é de boa qualidade. São coisas simples que nos dão força de resistir.
Ele ainda acrescentou uma quarta coisa que pode ser muito importante: o acesso à tecnologia, muitas vezes simples, mas que facilita e permite resultados melhores.
Quanto aos quatro fatores que criam uma verdadeira muralha de resistência ao capital:
1º - manejo eficiente e preservação adequada2º - uma economia baseada no bem-estar e bem-viver e não apenas no lucro3º -auto-suficiência de mão de obra4º -senso de comunidade
Qualquer quebra em um desses pontos fragiliza a resistência ao capital e passa, pelo contrário, a exigi-lo. Porque se o manejo é inadequado os recursos escasseiam e a safra não é boa. Se ele for seduzido pelo lucro, ele assimila a lógica do capital; se começa a contratar mão-de-obra passará fatalmente a explorá-la em algum momento. Diferente dos mutirões e da troca de ajuda entre vizinhos, claro. Se ele não se insere na comunidade ele não resiste.
Neste contexto, é bom insistir que temos de lutar contra duas idéias falsas: 1ª - a crença de que quanto mais melhor. O mais nem sempre é melhor. Nem sempre o crescimento ajuda. Por exemplo, no organismo humano, o câncer são células que se multiplicam desordenadamente. Neste caso, quanto mais, pior... Na sociedade também, o crescimento pelo crescimento não tem ajudado a humanidade e a vida. 2º - É preciso romper com a suposição de que o único meio de acabar com a pobreza é o econômico, quando é justamente ele que gera a pobreza.
2. Re-encantar a Terra com nossa vida.
O nosso grande mestre Celso Furtado ensinava que a idéia de desenvolvimento desvia as atenções da gente da tarefa básica que é identificar as necessidades fundamentais da coletividade. Um conhecido pensador indiano, Amartya Sen, diz que só existe verdadeiro desenvolvimento quando os benefícios do crescimento servem para ampliar as capacidades humanas, entendidas como o conjunto das coisas que as pessoas podem ser ou fazer na vida.
Precisamos estabelecer novas relações sociais de produção. É preciso superar o mercado na sua forma atual, como instituição reguladora das relações sociais de produção. Instituições como a "economia solidária" ou a "cooperativa" podem substituir bem o mercado na regulação da produção. Elas tratam como mercadoria apenas aquilo que é fruto do trabalho, e não os demais meios de produção. O importante é que se articulem em rede nacional e até internacional para ser realmente eficientes. Se ficar só uma cooperativazinha local, isolada, a gente sabe que não consegue sobreviver e realizar sua missão.
Quanto à economia, o que parece desvantagem nos termos atuais, pode ser visto como vantagem no momento da crise ecológica. O transporte de mercadorias tem um custo ecológico que só se justifica para bens de primeira necessidade que não possam mesmo ser produzidos localmente. Não vai dar mais para transportar camisas de malha ou guarda chuvas da China para o Brasil. Num sistema de "economia solidária" não se pode pensar em economizar no valor do dinheiro se isso implicar uma deseconomia ecológica. A coisa tem que ir por aí: unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo padrão de consumo material (em relação aos parâmetros atuais nos países ricos).
À primeira vista, falar em baixar o padrão de consumo pode assustar, mas só os ricos terão este problema. E os pobres que não têm, mas sonham em ter automóvel e todos os equipamentos de luxo que se importam ou são feitos com prejuízo da natureza.
Isso significará uma vida sem graça? De jeito nenhum! Temos que pensar aqui no fantástico desenvolvimento das forças produtivas que não são somente materiais e a partir de um modo de produção cooperativo e solidário. Isso significa, em primeiro lugar, o fim da apropriação privada dos avanços científicos e tecnológicos. Todo avanço intelectual deve ser socializado, tornando-se um bem coletivo. Assim como o lucro não é a meta das unidades de economia solidária, também não deve ser a meta dos pesquisadores e intelectuais: a recompensa de quem descobre e inova pode ser o prestígio, o "status" e outras formas sociais de honrarias. O resultado é que vamos poder viver daquilo que produziremos com o mínimo desgaste ecológico. Vamos compensar o nível menor ou mais baixo de consumo material por um alto nível de consumo imaterial: acesso à cultura, à arte, lazer. Isso significa melhor qualidade de vida. Teremos, então, uma verdadeira comunhão entre a humanidade, a Terra e toda a natureza. Para os pobres, isso só será ganho. Não será fácil, porque será necessário quebrar os sonhos ilusórios que mantém a esperança dos pobres na sociedade de mercado (sonho de um dia viver como rico) para que eles nutram outros sonhos: uma vida material simples complementada por uma rica e variada vida cultural. Se vocês pensarem bem, verão que quem pode ajudar a humanidade a viver isso serão os empobrecidos do mundo, seremos nós que estamos aqui reunidos e todos os companheiros de caminhada que queiram se juntar conosco. 3 - O envio que vocês recebem hoje
Talvez alguém ainda se pergunte se estas transformações são possíveis. Não somente são possíveis, como já começaram a se realizar. O acontecimento mais importante destes últimos 20 anos na América Latina foi a ressurgência dos povos indígenas e as conquistas importantes que eles conseguiram viver em vários paises do continente. Depois de cinco séculos de tanto sofrimento, eles se organizam e assumem a consciência de cidadania e de soberania. É a partir dos movimentos camponeses e indígenas que elegeram um índio presidente da Bolívia e conseguiram a vitória no Equador, sem falar na Venezuela. Mas eles não só elegem presidentes. Também derrubam. Derrubaram três na Bolívia e três no Equador. Um amigo passou na Bolívia e perguntou a uma velha índia que vendia artesanatos na rua.
- Como vai Evo Morales? Ela respondeu:- Vai bem. Mas, se não for, nós o tiramos....
Esta força indígena é nova. E abre novas questões para a História. Na véspera de assumir a presidência da República, Evo Morales recebeu uma consagração indígena em Tihuanaco. E ali ele falou o seguinte aos índios: "Se nós sobrevivemos a cinco séculos de decreto de extermínio, é porque somos portadores de valores necessários para toda a humanidade".
Um primeiro envio deste congresso pode ser o de acertarmos um diálogo mais profundo e permanente com organizações indígenas para organizar melhor a luta comum pela Terra e pela soberania nacional e comunitária, mas para um projeto além disso: para escutarmos os índios e aprendermos com sua sabedoria e seus valores.
Quais são estes valores? Este estilo diferente que devemos dar à nossa luta pela Reforma Agrária e por um país livre e mais justo?
O objetivo é garantir a todo mundo a possibilidade de ter uma vida longa e saudável. (Um texto bíblico - Isaías 65 - diz que será considerado uma tragédia morrer com menos de cem anos). É fazer com que todas as pessoas possam ter um nível de vida simples, mas digna. É viver a relação amorosa com a Terra e com os espíritos que regem a Terra. Vamos aprender isso com as comunidades indígenas. Vamos retomar o gosto de viver em comunidade e de acordo com a cultura local. Revolucionar a relação entre homem e mulher, entre os companheiros e entre nós, os animais e a natureza.
Para viver isso, vamos assumir uma nova atitude diante da vida. Leonardo Boff tem trabalhado muito bem as virtudes para o século 21: hospitalidade, respeito, tolerância, convivialidade... (6) Elas podem ser resumidas na atitude da compaixão, no sentido de "sentir com" e portanto no profundo respeito a todas as vidas, tanto humanas, como a vida animais. Nós nos desumanizamos ao tratar outros seres vivos como coisas e não como nossos semelhantes, companheiros de vida no Planeta.
Enfim, temos que caminhar por dois lados: uma atitude pessoal de amor à vida, que se for verdadeira deve se refletir na compaixão, e uma militância política, que supere o mercado como forma de regulação da produção e crie uma forma mais humana de relação entre os seres humanos e entre estes e a natureza.
É importante que os companheiros do MST, seus dirigentes e seus militantes, nós todos, assumamos a luta pela Reforma Agrária, justiça social e soberania nacional de um modo novo, a partir de novas relações entre nós e com a Terra. É preciso ser testemunha de um amor que fecunda o universo, de uma energia de compaixão que está em nós e age por nós. É isso que se chama "espiritualidade da Terra". E aí viveremos desde já uma economia de reciprocidade e partilha.
Vocês sabem que em Israel, a terra da Bíblia, a terra de Jesus tem dois mares. O Mar da Galiléia é fértil. Tem muita água e muito peixe. O outro se chama Mar Morto. É a maior depressão que existe no planeta Terra e a água é tão salgada que nele não existe vida. Não tem peixe. Não tem algas. Não tem nada. Uma antiga lenda judaica perguntava por que os dois mares são tão diferentes. E os rabinos respondiam: o Mar da Galiléia recebe os rios e riachos que descem das montanhas de Golam com a neve descongelada e deixa suas águas saírem para o rio Jordão. É um mar que recebe e dá. O Mar Morto é morto porque recebe as águas do rio Jordão, mas retém, prende. Dali não sai nada. Os rabinos explicavam que ele não sabe receber, porque receber é estabelecer uma relação com a natureza e com o universo. Com gente também é assim. Se a pessoa quer só receber, mas não repartimos, nos separamos da Vida verdadeiramente Vida (7).
Quem aceita o desafio de viver isso cotidianamente, fique de pé. Em um momento de silêncio, retome o compromisso fundamental pelo qual está nesta caminhada. Verifique se está começando por si mesmo estas novas relações de justiça e de solidariedade amorosa com os outros e com a Terra. Deixe vir à sua pele, toda a amorosidade da qual você é capaz e olhe os seus companheiros e companheiras em redor de você desta forma, Olhe assim o mundo que nos cerca e com esta energia amorosa saudemos a Mãe Terra. (toquemos na Terra). Agora, nos sintamos mergulhados, imersos em uma grande tenda que é este mistério de compaixão presente no universo. Os antigos judeus chamavam este mistério de Shekináh, uma presença feminina e materna que é a Terra, que é o Espírito Divino e é a utopia, a esperança de uma Terra repartida e justa que todos temos.
Proponho a todos que se abracem, abraçando o vizinho/a vizinha dos dois lados, perto de você.
(Dança judaica: Shekina)Obrigado e um beijão para todos.
Notas:
(1) Palestra no encerramento do 5º Congresso Nacional do MST, Brasília, 15 de junho de 2007.(2) Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor dos movimentos populares e da Pastoral da Terra na América Latina. Tem 30 livros publicados e acompanha como amigo e assessor o MST desde o seu nascimento. (3) Para este número, recebi assessoria do nosso amigo e companheiro, professor Pedro Ribeiro de Oliveira, assessor dos movimentos populares e das Cebs. (4) Nesta parte do texto, sigo orientações e sugestões do amigo e companheiro, professor Pedro Lapa, diretor comercial do Banco do Nordeste, importante aliado do MST em vários projetos sociais em todo o Brasil. (5) A jornalista Thânia Coimbra me passou estes dados por email. (6) Cf. LEONARDO BOFF, Virtudes para um novo tempo, 3 volumes, Vozes... (7) Cf. NILTON BONDER, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 20.

* Monge beneditino e autor de 26 livros. mosteirodegoias@cultura.com.br