23 de mai. de 2007

Que modelo de catolicismo Bento XVI promove?

"É notório que no Brasil persistem dois tipos de catolicismo: o devocional e o do compromisso ético", diz Leonardo Boff. Afirmando que Bento XVI reforça o modelo devocional, Boff enfatiza que o Papa "melancolicamente repete a cantilena: não aos contraceptivos, não ao divórcio, não aos homossexuais, não à modernidade, sim à família tradicional, sim a uma rígida moral sexual, sim à disciplina. Tantos "não" tornam a sua mensagem antipática, como se não houvesse temas mais urgentes (...) que têm a ver com a discussão sobre a missão da Igreja em si, senão com o futuro da Terra e da humanidade e com examinar em que medida a missão do catolicismo pode ajudar a assegurar o porvir, sem a qual nada se sustenta.

Olhando a partir da perspectiva do entusiasmo popular, podemos dizer que a visita do Papa ao Brasil foi um grande sucesso. Ainda que não possua a irradiação carismática de seu antecessor, a figura de Bento XVI, naturalmente contida, aqui se mostrou desinibida em contato com o
entusiasmo dos fiéis.

A figura do Papa é um símbolo poderoso que evoca arquetipos ancestrais do grande pai, do sábio e do pastor que dispõe de poderes sobrenaturais. Arquetipos desta magnitude chegam à profundidade das pessoas e mobilizam fortes sentimentos.

Mas, que modelo de catolicismo o Papa promove? É notório que no Brasil persistem dois tipos de catolicismo: o devocional e o do compromisso ético. O primeiro tem um cunho popular centrado na devoção dos santos, na oração e nas peregrinações, e hoje, em sua forma moderna, na
dramatização midiática com forte conteúdo emocional.

O catolicismo do compromisso ético se inspira na ação católica e nas pastorais sociais e culmina com a teologia da libertação. Este modelo requer mediações socioanalíticas porque está interessado, a partir de sua perspectiva espiritual, na transformação social.

Qual deles é o mais apropriado para uma nação que deve revisar sua antihistória, herdada do colonialismo, do etnocídio indígena, do escravismo e da moderna dependência dos centros metropolitanos?

A resposta depende do nível de consciência alcançado pelos católicos. Creio que o catolicismo devocional não tem potencialidade de transformação social, por estar voltado sobre si mesmo; ao passo que o outro articula constantemente fé, justiça e evangelho com compromisso de libertação.

Vistas a partir deste enfoque, as intervenções do Papa foram em crescendo até fazer-se explícitas no encontro com os bispos em Aparecida. No começo, procurou manter-se equidistante entre os dois modelos, mas terminou reforçando o devocional, já que as aberturas ao social foram mais esboçadas que afirmadas.

Há em Bento XVI um tom fundamentalista quando fala da centralidade de Cristo até nos assuntos sociais que, seguramente, dificultará o diálogo interreligioso; é uma teologia sem o Espírito, pois tudo se reduz a Cristo, o que na teologia se denomina de cristomonismo - a "ditadura" de Cristo na Igreja -, como se o Espírito também não estivesse presente, a Ele que vemos na história e nos processos sociais suscitando verdade, justiça e amor.

O que o Papa disse sobre a primeira evangelização no Brasil, como um encontro de culturas e não uma imposição e alienação não se sustenta historicamente. A colonização e a evangelização foram parte de um mesmo projeto, que significou um dos maiores genocídios da história. Não esqueçamos o testemunho do texto sacro maia, o Chilam Balam: "Entre nós se introduziu a tristeza, se introduziu o cristianismo, o princípio de nossa tristeza e de nossa escravidão; vieram matar nossa flor, a castrar o sol".

Condenar como "utopia e retrocesso" a vontade de resgatar tais religiões, com sua sabedoria ancestral, equivale a um insulto aos indígenas e um desalento aos esforços de tantos missionários que apoiam estas iniciativas.

É teologicamente frágil a tese de que Deus é explicitamente imprescindível para construir uma sociedade justa. Os Estados Pontifícios desmentem esta tese. A Espanha de Franco e a Portugal de Salazar louvavam publicamente Deus e não deixavam de torturar e condenar a morte. O que faz falta é um consenso ético e uma abertura à transcendência, deixando aberta a definição do conteúdo, como acontece com os Estados modernos. Estas insuficiências teóricas fazem com que o discurso papal deslize para o moralismo e o espiritualismo.

E melancolicamente repete a cantilena: não aos contraceptivos, não ao divórcio, não aos homossexuais, não à modernidade, sim à família tradicional, sim a uma rígida moral sexual, sim à disciplina. Tantos "não" tornam a sua mensagem antipática, como se não houvesse temas mais
urgentes.

Estes discursos expressam uma "razão indolente", categoria analítica criada pelo pensador português Boaventura de Sousa Santos. Indolente é a razão que não capta os desafios relevantes do presente e que não aproveita as boas experiências do passado.

Há silêncios significativos nos discursos do Papa: apenas uma única vez se referiu às comunidades eclesiais de base, uma vez à opção pelos pobres, uma vez à libertação, nunca à teologia de libertação e às pastorais sociais, nunca ao gravíssimo problema do aquecimento global. Ao contrário, retrocede aos anos 50 do século passado com o discurso tradicional e ambíguo da caridade e da assistência aos pobres. Esses silêncios são uma forma de negar e ocultar.

A razão indolente, própria de grandes instituições como a Igreja, é um modo de razão míope que se concentra no próximo e descuida do distante, ou de uma razão prejudicial que não busca caminhos novos e sempre volta aos antigos (mais catequese, mais celibato, mais obediência, mais adesão ao magistério), ou de uma razão arrogante, quando insiste na Igreja como a única verdadeira, ou de uma razão antiutópica, por não suscitar um horizonte de esperança e por acreditar que o futuro é a mera prolongação do presente.

O Papa não adverte os novos temas centrais, que têm a ver com a discussão sobre a missão da Igreja em si, mas com o futuro da Terra e da humanidade e com examinar em que medida a missão do catolicismo pode ajudar a assegurar o porvir, sem a qual nada se sustenta.

O catolicismo brasileiro e latino-americano, para estar à altura dos tempos atuais, exige a coragem que tiveram os primeiros cristãos: abandonaram o solo cultural judaico de Jesus e se inseriram no solo pagão helenista. Dessa inserção nasceu o cristianismo atual, que é uma
expressão do Novo Testamento, não do Antigo.

Necessitamos agora de um catolicismo de rosto indio-negro-latino-americano que não esteja contra o romano, mas em comunhão com ele.

Leonardo Boff

22 de mai. de 2007

Carta ao povo cristão da América Latina e do Caribe

Caras irmãs e irmãos do povo de Deus

Por ocasião da V Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha, nós, participantes do Seminário Latino-americano de Teologia, organizado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, queremos comunicar a nossa reflexão em torno do tema central: “Discípulos/as e missionários/as de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham vida”. Somos 250 pessoas, vindas de vários estados do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, Equador, México, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Guatemala, El Salvador, Haiti, Nicarágua, Canadá, França e Itália, além dos participantes de inúmeras salas virtuais.

Dentre os muitos pontos aprofundados, queremos destacar alguns aspectos que julgamos importantes para a caminhada da Igreja latino-americana e caribenha.

Sentimo-nos interpelados pelas diversas formas de agressão à vida humana, a todas as formas de vida e à Terra, nossa mãe: o aprofundamento da pobreza e da desigualdade social; o clima de violência que atinge particularmente a população mais jovem, as mulheres e as crianças; a destruição dos povos e da cultura negra e indígena.

A humanidade experimenta uma crise generalizada, que atinge a família, a Igreja, as relações sociais e econômicas, a organização política e o conjunto de valores construídos a longo do tempo. Trata-se de uma crise sistêmica e paradigmática, que rompe o equilíbrio nas relações entre os seres humanos e destes com toda a Criação.

Na fidelidade ao seguimento de Cristo, aos seu profetismo e pedagogia, não podemos calar diante dos gritos e clamores dos povos latino-americanos e caribenhos, causados por esse processo histórico de exploração.

Nada disso é natural ou acontece por acaso. O neoliberalismo agravou o endividamento externo e interno e multiplicou a dura experiência da miséria e da exclusão social. Além disso, aprofundou o grau de dependência dos nossos povos na forma de um neocolonialismo que se expressa especialmente em relações de livre comércio profundamente desiguais e geradoras de exploração em todos os níveis.

Porém, não podemos deixar de apontar os sinais dos tempos que tornam visível para os dias de hoje a Ressurreição de Jesus: o aumento da consciência ecológica; as experiências de democracia participativa e expressões de soberania popular; a criatividade nas experiências de economia solidária e comércio justo; a multiplicação e o fortalecimento de muitos movimentos sociais. Expressão importante desse movimento de resistência e ressurreição de nossos povos tem sido a realização dos sucessivos fóruns sociais regionais e mundiais.

A Igreja, enquanto participante da historia, também passa por situação de profunda crise: diminuição significativa do número de fiéis; dicotomia entre fé e vida; ausência de renovação da linguagem e símbolos religiosos; permanência de uma estrutura piramidal rígida, que leva ao não reconhecimento da missão e do sacerdócio comum de todo o povo de Deus; a não valorização do laicato, e de modo especial das mulheres, como sujeito eclesial e sua participação nos espaços de decisão.

Diante de tudo isso, sentimo-nos desafiados a:

· reconhecer o protagonismo dos empobrecidos no processo de evangelização e na construção de uma nova sociedade, baseada na justiça e solidariedade;

· assumir com firmeza a opção pelos pobres, afirmando-a como irreversível e irrenunciável, como um imperativo do seguimento de Jesus e de fidelidade ao Deus da Justiça;

· construir novas relações com equidade de gênero;

· reconhecer a presença de Deus nas culturas, nos povos, nas religiões, vivenciar processos de inculturaçao e fomentar espaços de diálogo intercultural e inter-religioso;

· criar estruturas adequadas para o trabalho de evangelização no mundo urbano;

· reconhecer a riqueza da diversidade e a pluralidade, cultivando a alteridade;

· promover uma nova cultura do trabalho a partir da crise da sociedade do emprego;

· estimular a presença de bispos e presbíteros diretamente nas experiências libertadoras em suas paróquias e dioceses.

Assim, convidamos a todos os irmãos e irmãs a assumir conosco esses compromissos:

· aprofundar a experiência de vida cristã inspirada em Jesus de Nazaré;

· construir uma igreja que seja rede de comunidades que sejam expressões vivas do povo de Deus; que reafirma as estruturas próprias das igrejas latino-americanas e caribenhas, historicamente fundadas no tripé: CEBs, pastorais e conferências episcopais; que dialoga com as realidades do tempo de hoje; que fermenta as ações humanas que vão construindo uma sociedade nova – um outro mundo já possível, em que possamos experimentar a globalização da solidariedade -, tecendo parcerias com movimentos sociais;

· aprofundar a teologia da libertação como inspiração que nasce da rica experiência eclesial e da profunda religiosidade dos povos latino-americanos, e que alimenta a fé, renova sua esperança e que torna mais libertadora a prática do amor;

· assumir uma ética da vida em âmbito pessoal e social;

· promover espaços de evangelização que possibilitem aos jovens uma adesão livre e amadurecida ao Evangelho de Jesus;

· manter-se livre na relação com as estruturas necessárias para a evangelização, sabendo que devem ser reformadas permanentemente;

· fomentar a promoção de um fórum social cristão, com o objetivo de refletir sobre a transição de época e os diversos cenários eclesiais face aos desafios político-sociais;

· incentivar uma maior integração das pastorais com os movimentos, enquanto crescimento da consciência social e libertadora da igreja latino-americana e caribenha como caminhada de todo o povo de Deus;

· aprofundar a reflexão sobre o uso das novas tecnologias a favor da vida, bem como a reflexão crítica acessível e prática das conseqüências do sistema de globalização capitalista.

Pindamonhangaba, São Paulo, 20 de maio de 2007.