5 de mai. de 2007

CARTA DA XIX ASSEMBLÉIA DA CPT

Sabemos que toda a criação geme e está com dores de parto até agora.” (Romanos 8, 22)

Estamos em meio a uma profunda crise civilizatória. O modelo civilizatório ocidental capitalista, alicerçado na exploração de seres humanos por outros seres humanos e na intensa exploração da natureza por uma restrita elite mundial que se sustenta e se reproduz em sistemáticas guerras de ocupação e intervenção, na idolatria do consumo, é o responsável pelo aquecimento global e pela miséria no mundo.
O Brasil, hoje como sempre, continua assumindo um papel periférico de colônia entregando suas riquezas e vidas aos interesses do capital. O governo de FHC privatizou as empresas estatais de serviços e infra-estrutura. O governo Lula – escondendo-se atrás de concessões e parcerias - está entregando a natureza e o território brasileiro.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem como objetivo principal potencializar a infra-estrutura a serviço do agro-hidro-negócio, do agrocombustível, da exportação das reservas minerais, florestais, hídricas e territoriais, sem levar em conta os protagonismos, as demandas e as lutas que nascem do campo e da cidade e que exigem a participação popular, a socialização do poder e a distribuição da riqueza.

A prova disso é que o governo considera como entraves os interesses e resistências de populações tradicionais e as ações dos movimentos sociais e do ministério público em defesa do ambiente e da vida. Do mesmo modo pouco faz para assegurar os direitos territoriais de quilombolas, indígenas e posseiros, não implementa e não amplia as metas de reforma agrária, não combate a grilagem, não atualiza os índices de produtividade da terra, não se esforça para que seja aprovada a emenda constitucional que permite o confisco das terras onde se dá trabalho escravo.

De modo especial, nesta XIX Assembléia, nos organizamos para o estudo detalhado da Lei de Concessão de Florestas Públicas, mais um instrumento que se integra ao PAC. Concluímos que esta Lei é inútil, cínica e iníqua. Inútil porque o Brasil já possui um conjunto de leis - que nunca foram levadas a sério – que combatem a grilagem e o desmatamento, regulamentam o manejo florestal e garantem os direitos territoriais das populações tradicionais. Cínica porque manipula os discursos e as práticas da defesa do meio-ambiente e dos interesses nacionais, enquanto se multiplicam as ameaças à legislação ambiental, e o governo não oferece condições ao Incra e ao Ibama e demais órgãos de fiscalização e loteia cargos públicos a ONGs interessadas na certificação florestal a serviço do mercado. Iníqua porque a única e verdadeira novidade desta lei, a concessão, é uma autêntica privatização do uso das florestas públicas atendendo interesses de grupos nacionais e internacionais motivados pelo lucro e pelo esgotamento da madeira em muitos países e nas propriedades particulares. Iníqua, também, por desobrigar o mercado madeireiro a obedecer a legislação ambiental e fundiária existente no país, contradizendo o dispositivo constitucional que considera as florestas patrimônio público inalienável. Isto, que diz respeito à Amazônia, à Mata Atlântica, à Serra do Mar, à Zona Costeira e ao Pantanal, também, deve ser aplicado ao Cerrado, à Caatinga e aos demais biomas.

Diz a Constituição no artigo 225:
Todos têm direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Porque em esperança fomos salvos. Mas, se esperamos o que não vemos, com firmeza o esperamos”. (Romanos 8, 24 e 25)

Os movimentos sociais, mesmo num momento de conflito e de contradição, continuam mantendo sua esperança militante num projeto de Brasil que garanta a soberania e segurança territorial, ambiental, energética e alimentar de modo que o trabalho, a economia e as políticas públicas priorizem a vida do povo brasileiro, em especial dos mais pobres, de modo estrutural e não compensatório.

Esta esperança se concretiza neste tempo em inúmeras ações e articulações de mulheres camponesas, juventude rural, sem-terras, pequenos agricultores, atingidos por barragens, quilombolas e indígenas, extrativistas e ribeirinhos que não se entregam à lógica do agro-hidro mercado avançando com experiências e propostas de agroecologia, produção e consumo socializados e defesa da natureza e dos modos de vida camponês. Estas experiências e propostas não são expressões isoladas, mas se movimentam na direção de alianças com os movimentos sociais da cidade e das forças vivas da sociedade. Nesta esperança compartilhamos, aprendemos e fortalecemos as experiências latino-americanas de poder popular como expressão de um caminho cultivado por nossos povos em solidariedade.

Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nada nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Romanos 8, 38 e 39)

Fiel ao Deus dos pobres, aos pobres de Deus e à Terra de Deus para todos e todas, a CPT se afirma como espaço eclesial e se une, nas palavras de dom Pedro Casaldáliga, com brio e esperança à opção da Teologia da Libertação. Sabemos, pelo nosso povo, que a luta pela Terra e pela Água é um serviço urgente ao Reino de Deus e uma resposta agradecida e corajosa ao testemunho de homens e mulheres, mártires da Nossa América.

O meu povo viverá muitos anos como as árvores e se deliciará com o fruto do trabalho de suas mãos.” (Isaías 65, 22)

Goiânia, 27 de abril de 2007

Espiritualidade da libertação para o século XXI

Como pensar, em comunhão e liberdade de espírito, a espiritualidade da libertação para o século XXI? Como continuar dando passos concretos no seguimento a Jesus em tempos de retorno do moralismo e do tradicionalismo fundamentalista que ronda as atitudes e práticas religiosas? São questões que devemos como cristãos e cristãs buscar compreender.

Antes de tudo, precisamos entender que toda espiritualidade têm como sentido último a libertação das pessoas. A espiritualidade é uma adesão pessoal a um projeto de vida a ser vivido em comum por um grupo, ou seja, no coletivo. Os cristãos possuem sua espiritualidade. Os muçulmanos a sua. Os budistas a sua. Na tradição cristã existem muitas formas de espiritualidade nas diversas denominações. Os católicos, os anglicanos, os luteranos, os ortodoxos, enfim, cada uma vive a sua espiritualidade. E, ainda, no interior de cada denominação religiosa existem grupos que vivem diferentemente o projeto. Assim, espiritualidade é o jeito que vivemos o Evangelho. É a maneira encontrada por um determinado grupo em viver o projeto no qual acreditamos. Portanto, se toda espiritualidade é por excelência libertadora, toda espiritualidade cristã também deve ser.

Para nossa tradição cristã, espiritualidade é seguir a Jesus, em nossa história, hoje, nas alegrias e tristezas que a humanidade nos oferece. E devemos assumi-la como sendo nossa espiritualidade. Seguir a Jesus significa assumir suas causas, adotar suas atitudes, viver segundo o Espírito. Assim, percebemos que fazer a experiência da espiritualidade não é algo simplesmente “transcendental”, “metafísico”, distante das realidades humanas. A espiritualidade nos interpela a assumir o projeto de libertação proposto por Jesus. E, como seguidores, devemos encontrar a estrada para nela caminhar.

Nas primeiras comunidades cristãs, a espiritualidade cristã estava sendo vivida sob a égide da perseguição do Império Romano e da perseguição de grupos extremistas do judaísmo. Hoje, deve-se viver a espiritualidade cristã da libertação sob a égide do culto ao deus mercado impulsionado pelo avanço do Império Neoliberal. Império que ronda o planeta como única via e que amplia seu território de fixação da doutrina e estimula a escravidão das consciências, principalmente, das massas que são chamadas a se tornarem consumidoras desse mercado total.

Pensar a espiritualidade fora e distante das realidades humanas significa torna-la em ritualismo ou em falta de sinceridade com o projeto de Jesus, ou seja, torna-se um espiritualismo desencarnado, sem compromisso com a caminhada de Jesus que devia ser a nossa caminhada, em busca do Reino Definitivo, onde todos e todas “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Alguém poderia perguntar: Como saber qual deva ser nossa espiritualidade? Primeiro, abrir-se ao clamor dos pobres e de todo o povo que clama por libertação; e, também, ao vento do Espírito que sopra e age onde quer.

Evidentemente que de uns tempos para cá cresceu o clamor e a sede por espiritualidade nas comunidades cristãs e não-cristãs. As pessoas querem viver a experiência do sagrado. Querem beber do poço a água viva da esperança, das lutas e da busca pelo Deus da Vida. As pessoas cada vez mais se sentem atraídas pelo mistério e querem se encontrar ou se reencontrar neste Mistério. Por isso, o crescimento universal das religiões e de comunidades alternativas. Todos querendo beber da água que o mundo pós-moderno não lhes oferece. Mas até que ponto isto é espiritualidade? Até que ponto esta busca pelo sagrado não gera mais individualismo e acaba ampliando as idéias do mercado neoliberal? Até que ponto as pessoas querem mesmo assumir um compromisso com o projeto a ser seguido? A libertação é a conseqüência do compromisso assumido.

Dessa forma, espiritualidade pode ser definida como sendo as motivações, os ideais, as utopias, a paixão e a mística pela qual se vive e se luta. Espiritualidade é aquilo que nos contagia na caminhada. Os espiritualismos estão repletos de doutrinas, ritos, dogmas sem nenhuma paixão, ideais e vida. Falta-lhes o essencial da experiência com o sagrado. A espiritualidade possui a liberdade de espírito. Os espiritualismos, ao contrário, fazem com que as pessoas vejam o mundo de forma mecânica. Para os cristãos e cristãs de ontem e de hoje o importante é agir conforme o espírito do Reino tendo como eixo norteador a espiritualidade do seguimento a Jesus. Outros espíritos se afirmam na história, tais como: o espírito do romanismo, o espírito do capitalismo, o espírito da lógica de mercado neoliberal, o espírito do liberalismo, entre outros. Resta-nos servir ao espírito do Evangelho, pois “não se pode servir a dois senhores”.

A espiritualidade é patrimônio de toda a humanidade, de todos os povos da terra. Toda e qualquer pessoa é animada por uma espiritualidade que a contagia na caminhada. Alguns são contagiados pelos valores do Evangelho, outros pela sedução do mercado neoliberal, outros pela valorização da cultura perdida. Assim, espiritualidade não se refere somente às religiões. Ela é algo do próprio ser humano que é um ser fundamentalmente espiritual. Mas, toda espiritualidade é também algo religioso. Existem espiritualidades religiosas e não-religiosas. Para nós, cristãos e cristãs, a espiritualidade é, acima de tudo, religiosa. É nela que se faz a experiência com o Deus da Vida. No entanto, não basta a religiosidade. É preciso e necessário que a religião esteja profundamente arraigada pela espiritualidade, ou seja, é preciso que haja autenticidade no seguimento ao projeto de Deus, ao Reino. Fácil seria se espiritualidade fosse entendida somente como sendo práticas ritualistas ou compromisso mecânico de ir à missa ou participar de algum evento religioso. Não, espiritualidade é algo mais comprometedor que nos engaja na luta pela vida, pelo Reino.

Nossa fé é cristã e a partir dela nós descobrimos Deus presente no cosmo, na vida e na história da humanidade. Na fé cristã Deus vem morar com a gente. Deus é amor gratuito sem cobranças vazias. Portanto, nossa espiritualidade é religiosa porque o Deus vivo é revelado por meio de Jesus, seu Filho. E é cristã porque somos convidados a seguir o projeto do Reino no seguimento a Jesus. O Deus de Jesus é o nosso Deus. A causa de Jesus é a nossa causa. Já dizia Paulo: “Nosso viver é o Cristo” (Fl 1,21). Jesus é nosso “pathos” – paixão, e seu Espírito a nossa espiritualidade.

Podemos viver a espiritualidade em dois sentidos, a saber: de forma personalizada, consciente e livre que abranja todas as dimensões do ser do Homem (alma e corpo, pensamento e vontade, sexo e fantasia, palavra e ação, interioridade e comunicação, contemplação e luta, gratuidade e compromisso), pois cada pessoa a vive de forma única; e, vive-la de forma encarnada na história, hoje e aqui, em nossa América Latina e em nossas comunidades com suas dores e alegrias. Viver as duas dimensões da espiritualidade nos abre caminhos para se viver concretamente o que aqui chamamos de Espiritualidade da Libertação.

A espiritualidade não pode reprimir a realização pessoal e o vôo do Espírito. Isto seria ir contra ao Evangelho da Liberdade anunciado por Jesus. O perigo dos espiritualismos é cairmos numa formação espiritual dispersiva, mutilada, dicotômica, unilateral e mecanicista. A vida do ser humano é importante neste processo e ela pode ser entendida como problemática (mistério), como desafio (uma missão), um espaço (graça) e assumir este espaço requer atitudes, mediações com a finalidade de se atingir a opção fundamental na vida.

Espiritualidade é vida. Vida não se ensina, mas se experimenta. Logo, todos e todas são chamados a experimentar o Espírito de Jesus por meio do seguimento ao seu projeto. Assumir o seguimento significa viver uma espiritualidade. Viver a espiritualidade do seguimento a Jesus hoje significa assumir as dores e angústias, alegrias e festas do povo ao qual pertencemos. Se estivermos na América Latina, no Brasil, em Goiás, numa comunidade eclesial específica significa assumir o seguimento a Jesus aí, nesta realidade de vida. Assim, teremos a vivência concreta de uma espiritualidade religiosa, cristã, latino-americana e libertadora. Espiritualidade do “Povo Novo” para o bispo profeta Pedro Casaldáliga que possui as seguintes características: lucidez crítica, a contemplação na caminhada, a liberdade dos pobres, a solidariedade fraterna, a cruz e a conflitividade, a insurreição evangélica ou a Revolução da Boa-Nova e, por fim, a teimosa esperança pascal.

Características do Povo Novo que se apresenta a nós, hoje e aqui, em nossa América Latina mundializada para todos os povos da Terra. Tais características não sobrevivem sem o fortalecimento da Espiritualidade da Libertação interpelada por uma profundidade pessoal, pelo reinocentrismo, por uma espiritualidade do essencial e universal cristão, pela localização na realidade histórica dos pobres, pela crítica, pela práxis e pela integridade sem dicotomias e sem reducionismos.

Assim, pode-se definir a Espiritualidade da Libertação como cristológica, situada historicamente no social e nas comunidades cristãs, na cruz da profecia e do conflito, na gratuidade e na exigência do Evangelho, na contemplação libertadora e no anúncio incondicional do Reino e na denúncia do anti-Reino; espiritualidade da libertação que se enraíza nas culturas oprimidas de nossa história, herdeira do sangue de muitos e muitas que tombaram doando a vida e o sangue do martírio, profeticamente alternativa ao sistema de morte, na co-responsabilidade eclesial e, por fim, com profundo espírito ecumênico e macro-ecumênico.

Vivemos em todos os países do mundo um momento de mundialização do espírito neoliberal, do poder das trevas. É o anti-Reino crescendo e se ampliando. Como cristãos e cristãs, deveríamos viver a espiritualidade da libertação e anunciar o Kairós do Reino, Reino de Deus anunciado por Jesus. Não basta cumprir os preceitos religiosos e práticas devocionais para construir o Reino. É preciso um compromisso de fidelidade maior com o Evangelho e com a construção do projeto de Jesus. Ser discípulo e discípula de Jesus não significa dizer “Eu te amo Jesus” ou “Jesus é Dez”. Ser discípulo e discípula significa dar a vida pelos que não possuem vida. Como Igreja (comunidade de fiéis) deveríamos ser interpelados pelo testemunho do Evangelho e da Tradição e, para nós aqui da América Latina, testemunho dos mártires da caminhada e, com isso, assumir a postura do engajamento nessa luta sem perder a mística da contemplação.

A mundialização na qual vivemos se impõe como neoliberal, de mercado total, idolátrica, escatológica – pois anuncia o “fim da história”, consumista, privatizadora, narcisista e sem alternativas possíveis. Nega-se com isso a radicalidade do Evangelho, o compromisso com o “kairós do Reino”, com a utopia. Nesta lógica substitui a ética pelo estético, se ignora os pobres renegados a programas assistencialistas e compensatórios. Vivemos neste Kairós neoliberal “a noite escura dos pobres” e podemos cair em três grandes tentações, a saber: “a tentação de renunciar a memória e a história; a tentação de renunciar a cruz e a militância; a tentação de renunciar a esperança e a utopia” como diz Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia.

Precisamos urgentemente de uma outra mundialização, numa outra modernidade ou pós-modernidade. Nas Igrejas cristãs precisamos de novas primaveras como aquela protagonizada pelo Concílio Ecumênico do Vaticano II. Corre-se o risco de tornarmos nossas comunidades e igrejas cristãs numa avalanche de fundamentalismos e exotismos, num festival catolicista ou cristianista. Sendo que é hora, é tempo de profeticamente denunciar este anti-Reino neoliberal do “deus mercado” e anunciar também profeticamente o Reino de Deus, da justiça e da paz. Se as Igrejas cristãs perderem este rumo, perder-se-á o sentido do Evangelho e do próprio seguimento a Jesus. Não podemos retroceder à fase da cristandade que ronda o universo das mentes religiosas de nossa atual história o que determina colocar no esquecimento as conquistas na espiritualidade, nas liturgias, na teologia, na vida religiosa inserida na vida popular, nas pastorais sociais, na diversidade dos ministérios, no profetismo dos cristãos leigos e dos pastores e pastoras, da mulher que deve ser respeitada em seu ministério (nisso, Anglicanos e Luteranos estão muito mais avançados do que os Católicos), no ecumenismo e no diálogo inter-religioso ou macro-ecumenismo, nas Igrejas comprometidas na luta pelos direitos humanos, pela cidadania, pela ecologia, pela terra, pela saúde, pela criança e adolescente, pela juventude, pela moradia digna, pela educação, pela comunicação, pelo trabalho, pela paz, pelos povos indígenas, enfim, pela vida. Por isso, necessitamos de Igrejas cristãs mais evangélicas, simples, missionárias, comprometidas com o povo. Igrejas cristãs pascais, serviçais, livres dos acordos com as elites, desinteressadas, fiéis ao mandato de Jesus. Precisamos trocar nosso coração de pedra por um coração pascal. É chegado o momento.

Claudemiro Godoy do Nascimento

Seguir a Jesus: Opção e Profecia

Continua sendo um grande desafio tentar caminhar nas estradas de Jesus em nossos tempos. Constantemente, nas orações eucarísticas da Igreja Católica, o povo repete confiante nas missas: “Caminhamos na estrada de Jesus!”. Esta afirmação queima. Exige compromisso de fé. Exige rompimento com tudo aquilo que não faça parte do projeto de Jesus. De nada adianta fazer tal afirmação no rito da Eucaristia se, de fato, não sabemos qual é o caminho e a estrada de Jesus.

Seguir a Jesus hoje significa acreditar na opção de Jesus pela humanidade toda, em especial, os pobres. Portanto, as opções de Jesus devem ser as nossas opções também hoje, em nossa história, em nosso cotidiano. As atitudes e a práxis de Jesus devem ser a nossa hoje. Por isso, há o perigo de se pronunciar algo, simplesmente porque está no rito ou na celebração, uma espécie de mecanização de linguagem ou decoração sem fé do ritual eucarístico. Viver a espiritualidade cristã significa estar atento ao Cristo que se identifica com os sem voz e sem vez.

É comum ouvir pessoas dizerem que possuem uma grande fé em Jesus e pouco se escuta ou se vê na realidade pessoas terem a fé de Jesus. Como já dizia a música do Padre Zezinho: Viver como Jesus viveu historicamente situado, entre os leprosos, os paralíticos, os cegos, os coxos, órfãos e as viúvas, as prostitutas. Como é difícil ver cristãos e cristãs neste meio social em nossos tempos. As igrejas estão lotadas, as catedrais estão cheias de pessoas em busca da febre do momento: “Sentir-se em paz, com Deus”. Mas como viver em paz e com Deus sendo que há crianças chorando de fome e de frio nas ruas? Como se sentir em paz e na harmonia – como sentir-se zen – sendo que muitos e muitas não têm uma casa onde encostar a cabeça e vivem perambulando pelas ruas, debaixo dos viadutos e nas rodovias? Como se sentir em paz vendo poucos ganharem bilhões de dólares em segundos ou minutos e bilhões de seres humanos viverem com menos de 1 dólar por dia? Como viver em paz e com Deus vendo a situação de miséria e favelização dos assentamentos rurais e da falta de uma reforma agrária com desenvolvimento sustentável, formativa e que gere renda para os trabalhadores rurais? Como viver em paz dentro da segurança das igrejas e dos templos vendo a destruição da casa comum, o planeta Terra? Como viver em paz num mundo onde reina o ódio e o desamor? Como viver em paz vendo políticas do Império neoliberal sendo implantadas determinando o crescimento do Estado Mínimo? Como viver em paz vendo milhões de pais e mães de família no subemprego, na economia informal ou no real desemprego? Como viver em paz vendo nossas culturas sendo destruídas pela cultura única, pelo pensamento único, pela lógica do mercado que chegam aos mais remotos lugares deste planeta? Definitivamente, não dá para ter paz. É impossível para qualquer cristão pensar somente no seu umbigo e no seu ser individual. Caso isso ocorra, significa que não existe seguimento a Jesus, ao projeto. Não se pode confundir o seguimento a Jesus com o seguimento a religião. As religiões, entre elas, o cristianismo e suas várias denominações são mediações para caminhar no projeto de Deus para toda humanidade e não exclusivamente para meu ser individual.

Parece estarmos vivendo em tempos onde o nome de Jesus é literalmente comercializado. Cada um vendendo o seu peixe, o seu Jesus, e muitos clientes a procura da água para matar a sede. Parece estar havendo um esquecimento do Jesus histórico, aquele mesmo que deixou a mulher lavar seus pés com o cabelo, o mesmo que foi condenado pelos fariseus, o mesmo que andava entre os marginalizados de sua época. Deus, na história da humanidade, suscitou homens e mulheres que lembraram-nos o caminho do Reino. Parece que vivemos tempos de seca, de falta desses homens e mulheres. Sinto que os cristãos e cristãs de hoje vivam nas aparências religiosas com um Cristo sem Reino e sem projeto, sem cruz, sem as bem-aventuranças, sem a partilha do pão, sem o perdão, um Cristo sem opção e sem Evangelho, um Cristo sem profecia. Parece haver um esquecimento do Jesus que se identifica com o rosto dos excluídos como bem nos alerta Mateus 25.

O cristianismo e os cristãos e cristãs não podem deixar no esquecimento que a fé cristã consiste em viver a memória perigosa de Jesus e a profecia histórica que foi a sua própria vida. Memória perigosa do sacramento da eucaristia, subversivo por natureza, terno e fraterno que deveria interpelar homens e mulheres a construir um novo ethos para a humanidade, pois o ethos neoliberal, capitalista, de mercado total possui um projeto contrário ao projeto de Jesus. Bem lembrava Jesus: Não se pode servir a dois senhores. De fato, não se pode seguir o Evangelho e a Jesus sendo capitalista e fazendo parte do Império neoliberal. Por isso, pode-se chegar à conclusão de que o seguimento a Jesus se dá em comunhão e não individualmente. Assim, ninguém salva ninguém, ninguém se salva sozinho, nós nos salvamos em comunhão.

Jesus continua fazendo a encarnação na humanidade, em cada cultura, em cada povo, em cada momento histórico onde um irmão, um menor, um marginalizado esteja sobrevivendo. Como já disse nosso irmão bispo-profeta Dom Pedro Casaldaliga: “Há muito Cristo roto por aí, muito Jesus pela metade, muito meu Jesus reducionista”.

Jesus continua ousando perguntar aos apóstolos de hoje, aos discípulos de hoje a mesma pergunta feita aos doze companheiros da caminhada: E vocês, quem dizem que eu sou? (Mc 8, 27-33). As respostas serão muitas. Algumas com doutrinações e sistemas filosóficos e teológicos pré-determinados. Outras com declarações de fé repetidas mecanicamente pela decoração de palavras. Poucos dirão que Jesus é o pobre, o fraco, o órfão, a viúva, a menina prostituída, o trombadinha ladrão, o sem terra em marcha, o índio transculturado, o sem-teto, o morador de rua, o idoso discriminado, o jovem sem sonhos e sem causas etc. Este é o Jesus encarnado, vivo em nosso meio e que passamos pela rua e fingimos que não vemos. Porque fomos literalmente catequizados para compreender e acreditar na presença viva de Jesus somente na transubstanciação do pão, a eucaristia. E continua sendo negado saber que Jesus se faz presente no rosto daqueles e daquelas que se encontram nas senzalas da vida.

Segundo Dom Pedro Casaldaliga o “Deus de Jesus é o Deus do Reino, e a opção de Jesus é o Reino de Deus”. Este deve ser o nosso Deus e a nossa opção fundamental como cristãos. Este é o nosso paradigma. No Evangelho de João 6, 67 há um alerta para aqueles e aquelas que queiram desistir do caminho, ou seja, deixar de lado a opção de Jesus, “lightizar” a Boa-Nova de Jesus. O objetivo central da opção que se faz pela estrada de Jesus é o Reino de Deus. As Igrejas são mediações para se alcançar este objetivo, mas podem ser também descaminhos do Reino. A espiritualidade cristã nos ajuda no caminho e é possível vive-la de muitas formas e jeitos. Aproximar de Deus só pode ser possível se conseguirmos no caminho aproximarmo-nos do irmão sofredor que é a causa máxima de Jesus. Por isso, nestes tempos, corre-se o sério perigo de apequenar o projeto de Deus, de seqüestrar Deus como objeto individual dos nossos desejos mais mesquinhos, de proibir a ação de Deus por meio de homens e mulheres que lutam em defesa da vida.

Como praticar Deus em nossas vidas? Como corrigir Deus em nossas vidas? Como deixar Deus ser Deus em nossas vidas, em nossas comunidades cristãs? São questões sérias que nos apontam para um caminho da conversão pessoal e comunitária. No livro Espiritualidade da Libertação, nossos irmãos José Maria Vígil e Dom Pedro Casaldaliga questionam nossa fé nesse Deus:

A pergunta pelo Deus cristão é a pergunta mais radical que a própria Igreja pode se fazer. Trata-se de saber se o Deus que adoramos é realmente o Deus de Jesus ou um ídolo mascarado. E esta pergunta abrange também a análise da função que a fé cristã desempenha na sociedade e na história. Porque, podendo parecer um Deus cristão no âmbito reduzido da referência bíblica ou do mundo pessoal, pode estar, de fato, exercendo funções sociais, de legitimação de práticas e estruturas, inteiramente contrárias ao plano de Deus, ao Reino pregado por Jesus (p. 101).

Temos uma só certeza nisso tudo: Nosso Deus é o Deus da Vida. Podemos realizar todas as práticas religiosas obrigatórias ou não, clamar pelo nome de Jesus, chorar, emocionalizar-se, exercer ministérios na hierarquia de qualquer igreja cristã, manipular a imagem de Deus a nosso bel-prazer e realizar o anti-Reino como se fosse o Reino. De nada adianta se não acreditarmos nesse Deus da Vida, que ama e se doa por uma sociedade mais justa, fraterna e realmente humana. Corremos o sério risco de platonizar o Deus dos cristãos e com isso negar a essência do cristianismo: amar o Homem todo e todo Homem. Se o Deus de Jesus é o Deus do Reino, outros deuses são ídolos. Ídolos não são imagens somente, mas sistemas que massacram o ser humano, tornando-o em um não-humano, desumano ou desumanizado. A idolatria pode estar dentro das próprias igrejas ao adorarem mais o dinheiro, o capital, o sistema neoliberal, o projeto político de uns poucos da elite que teimam em retornar à hegemonia do poder, enfim, idolatria é tudo aquilo que se caracteriza como anti-Reino de Deus. Usam o nome de Deus para se promover econômica ou politicamente, para promover guerras, para fazer acordos políticos ou para se ganhar eleições.

É momento propício para que os ídolos sejam desmascarados. Para isso, é necessária a força profética, tão em falta na nossa história. A profecia exige militância, discernimento e fidelidade ao projeto de Jesus e seu Reino. O Reino de Deus anunciado por Jesus deve ser o nosso anúncio hoje. Já dizia Paulo VI na Evangelii Nuntiandi (n.08) “Só o Reino é absoluto. Todo o resto é relativo”. Então que o Reino de Deus possa vir realmente por meio do engajamento e do compromisso de cada um e de cada uma, homem e mulher, que queira ver a justiça, a concórdia, a ternura, a fraternidade e o amor acontecer.

Lembro-me da música que não se canta mais em nossas comunidades: Eu quero ver, eu quero ver acontecer... um sonho bom, sonho de muitos acontecer. Este sonho ainda existe, castrado pelas instituições, acorrentado pelos espiritualismos e fundamentalismos, mas vivo e que ousa de tempos em tempos se libertar fazendo renascer a esperança, a militância e a promoção do Reino de Deus em nossas comunidades cristãs tão mecanizadas hoje pelo espírito do senso comum, da alienação, do emocionalismo e por um moralismo anti-libertador. Isso requer de nós hoje um exame de consciência: Que tipo de seguimento a Jesus fazemos? Que opção temos e queremos? É a opção de Jesus realmente? Estamos sendo realmente profetas que anunciam a Boa-Nova e denunciam, à luz do Reino, os interesses, as traições ao Evangelho e ao Reino, as infidelidades, as idolatrias?

Claudemiro Godoy do Nascimento

O seguimento a Jesus hoje

Recebi a palavra de Javé que me dizia: “Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conhecia; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei, para fazer de você profeta das nações”. Mas eu respondi: “Ah, Senhor Javé, eu não sei falar, porque sou jovem”. Mas disse Javé: “(...) Hoje eu estabeleço você sobre as nações e reinos, para arrancar e arrasar, para demolir e destruir, para construir e plantar”. (Jr 1, 4-6a.10).

Em nossa sociedade muitos e muitas procuram seguir alguém ou algo. Seguir é uma dimensão humana que mostra o quanto necessitamos de paradigmas que se tornaram na pós-modernidade uma forma de adesão ao grupo social, ao pensamento hegemônico em vigor ou a modismos e tribos sociais desde “punks” a “jovens espiritualistas”, do movimento hip-hop a grupos de esquerda ligados a movimentos revolucionários, de apolíticos a fanáticos de um neonazismo e muitos outros. Todos se encontram nessa sociedade plural na qual vivemos e tentamos conviver. A vivência é inevitável, já a convivialidade se torna conflituosa numa sociedade com tantos grupos, ideologias e tribos de pensamentos e ações que são opostas e diferentes. Por outro lado, apesar de tantas diferenças somos tentados por um novo momento na história que tenta implantar o pensamento único, principalmente, na cultura e na economia. Um pensamento único com diferentes grupos, esta é a nova geografia mundial.

Quando alguém diz que segue a si mesmo quer mostrar (ou pelo menos tenta) que não se encontra ligado a nenhuma forma de doutrina, seita, religião, ideologia ou posição. Muitos filósofos no decorrer da história afirmaram que somos condicionados pela história, pela sociedade na qual vivemos e pela cultura donde nascemos. Neste ambiente construímo-nos enquanto seres humanos e como Pessoa Humana com valores, moral, códigos e signos.

Por isso, seguir é uma atitude humana. Pode-se seguir uma religião como o budismo ou islamismo. Outros seguem doutrinas agnósticas ou ideologias filosóficas. O que nos identifica é o seguimento. A forma de estar seguindo um projeto compreende o ato em si do seguimento. O que se torna diferente é o conteúdo do seguimento. O seguimento, mesmo sendo uma atitude humana, possui sua essência na transcendência. Só se torna seguidor aquele que transcendeu, logo, seguir é uma experiência espiritual.

E hoje, como cristãos e cristãs, como seguir a Jesus? A nossa espiritualidade se define como o seguimento a Jesus e ao Projeto do Pai. Seguir é ter uma espiritualidade. Para os cristãos e cristãs, é nossa espiritualidade. Seguir a Jesus hoje continua desafiando a milhões de pessoas que acreditam no plano da fé em seu projeto. Mas, seguir a Jesus supera o simples ato de fé. Seguir a Jesus significa assumirmos sua causa, suas atitudes, vivendo segundo o Espírito.

Seguir a Jesus hoje significa estarmos conscientes da História que nos cerca e dos desafios que nos atingem em nossas realidades. Antes, no tempo de Jesus, o seguimento se dava sob a realidade do Império Romano; hoje, seguir a Jesus significa estar sob a realidade do Império neoliberal. Viver o seguimento num contexto do neoliberalismo e globalização nesta América Latina e no Brasil, ainda na marginalização social.

O Império neoliberal está conseguindo alastrar e demarcar seu território. Hoje, o neoliberalismo se encontra em setores estratégicos da sociedade como política, cultura, economia e nas religiões. Até mesmo as religiões se curvam ao deus do império. Alguns buscam ser caminho alternativo ao projeto neoliberal, mas já podemos vislumbrar sementes do império penetrados no cristianismo e no islamismo. Por isso, seguir a Jesus hoje se torna um grande desafio para todos nós. Corre-se o perigo de cairmos na tentação do poder, do deus dinheiro, do orgulho, do individualismo, da competição e do consumismo desenfreado. Muitos escolhem a religião como suplemento de suas necessidades subjetivas. Necessitam da religião como suporte ao deus do império neoliberal. Estes, esqueceram-se do seguimento fiel a Jesus de Nazaré. Deixaram para trás a Utopia do Reino e o Evangelho (Boa Nova) que nos ensina uma espiritualidade no seguimento ao projeto de Jesus baseado no serviço, no amor, na “communitas fidelium” (comunidade de fiéis), no testemunho, na paz, na justiça e num novo céu e nova terra. Corre-se o sério risco das religiões tornarem-se redutos de “eus” (primeira pessoa do singular) e se engavetar o “nós” (primeira pessoa do plural). O eu está no nós. O princípio do seguimento a Jesus é a comunidade cristã que caminha unida. Na comunidade cristã o eu está contido no nós e o nós é o princípio da mensagem do Evangelho que destina-se a todos e todas.

Como descobrir nossa espiritualidade no seguimento a Jesus hoje? Para responder a esta indagação devemos estar abertos na sinceridade de coração ao clamor do povo e ao vento do Espírito. É a partir dessa dimensão que todo cristão e cristã encontrar-se-á enquanto discípulo e discípula do projeto de Jesus. Este projeto nos interpela, nos queima e nos chama a rompermos com as barreiras de nosso tempo e voltarmos ao verdadeiro sentido da nossa espiritualidade, espiritualidade no seguimento ao Reino de Deus anunciado por Jesus.

Claudemiro Godoy do Nascimento

Retratação do Prof. Felipe Aquino

Senhores Bispos,

Desejo mais uma vez pedir desculpas e perdão pelas palavras infelizes e ofensivas que usei em minha carta, particular e pessoal, dirigida a D. Pedro Casaldáliga, em relação aos Bispos nela citados. Esta carta não foi divulgada por mim em nenhum veículo de comunicação, mas infelizmente foi por alguém amplamente divulgada na Internet e causou dor e revolta.
Asseguro que não foi minha intenção ofender os senhores Bispos citados, e nem mesmo teve outra intenção, ou provocar agitação no seio da Igreja; quis apenas – por zelo e amor à Santa Igreja de Deus - protestar junto a D.Pedro por sua Carta Aberta que considerei ofensiva `a Santa Sé e ao Papa.
Em relação aos senhores Bispos citados quis apenas manifestar a minha discordância com o apoio que eles sempre deram, como outros, à teologia da libertação. Infelizmente no calor do momento, minhas palavras extrapolaram minhas reais intenções, pelo que peço mais uma vez desculpas pela dor causada em muitos. Asseguro que tal fato não se repetirá.
Lamentando o ocorrido peço-Vos o perdão e a Bênção!

Prof. Felipe Aquino

1 de mai. de 2007

O papa e a Teologia da Libertação

Frei Betto

João Paulo II ficará na história como o papa contemporâneo da Teologia da Libertação, que ele jamais condenou, malgrado as suspeitas da Cúria Romana e a repressão a Leonardo Boff.

Surgida na América Latina há cerca de 25 anos, sobretudo através das obras de Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff, o que caracteriza a Teologia da Libertação não é a sua análise crítica da sociedade capitalista. É o seu método de refletir a fé dos pobres e a partir dos pobres, considerados sujeito histórico e referência evangélica por excelência.

Supor o Vaticano que a Teologia da Libertação é mero modismo político de teólogos de esquerda é, no mínimo, ignorar o que é fazer teologia a partir de uma situação de opressão, na qual a pobreza predomina como fenômeno coletivo, como ocorre no Brasil e na América Latina. O que significa falar de Deus nessa situação? Ou deve-se mentir que Deus aceita tanta miséria? O papa conheceu na pele as dominações soviética e nazista. Nunca experimentou a miséria coletiva.

A Teologia da Libertação não nasce em estufas eclesiásticas, como universidades ou seminários, mas em comunidades eclesiais de base (CEBs) e nos movimentos pastorais que agrupam fiéis das classes populares. Diante de tantas dificuldades na vida, eles indagam: o que Deus quer? Na busca dos "sinais dos tempos", atam elos entre fé e política, valores evangélicos e desafios da realidade, liturgia e festa, suscitando a metodologia teológica que é recolhida e sistematizada por teólogos.

O que Roma custa a entender é que a Teologia da Libertação poderia estar em crise se as condições sociais que lhe servem de matriz geradora estivessem - felizmente - superadas. Então, ela teria que redimensionar seu discurso, sem sofrer contudo solução de continuidade, na medida em que não identifica libertação com mera resolução dos problemas sociais crônicos. Para ela, o processo libertador implica, sem dualidade, o "pão nosso" e o "Pai nosso". Fosse a Teologia da Libertação uma mera exaltação do socialismo real, possivelmente sim ela estaria em crise, como ocorre à teologia neoliberal européia que, tendo perdido sua referência ao mundo dos pobres, volta a encarar a modernidade pela ótica de Nietzsche, e já não sabe a quem dirigir seu discurso. E tudo indica que, em breve, entrará em crise a teologia que - inspirada em João Paulo II - fez da crítica ao socialismo uma apologia da liberdade nos países capitalistas. Agora, a onda de consumismo, trazendo em seu bojo a reintrodução de disparidades sociais e de permissividade, já começa a assustar aqueles que sempre acreditaram que o Ocidente é cristão…

Se é verdade que o socialismo ruiu no Leste europeu, é preciso não esquecer também que o capitalismo sofre de insuficiência crônica por sua incapacidade de responder às demandas sociais. Ele é, por natureza, desigual, concentrador e excludente. Porém, o papa, que sempre criticou os abusos do capitalismo, não chegou a denunciar as suas causas e natureza perversa.

Carta a CNBB

Vitória da Conquista-Bahia, 26 de abril de 2007.


Á
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB
Att. Todos os Bispos e Comunidades católicas do Brasil
NESTA


Caríssimos Irmãos em Cristo,


A Rede Globo já alguns dias vem apresentando, no Jornal Nacional, um quadro com o título: VOU VER O PAPA, onde algumas pessoas apresentam “suas peripécias” para chegarem em São Paulo, tanto individuais como em caravanas, e assim, de algum modo, poderem ver o Papa, sendo algumas muito mirabolantes para “este sacrifício”. De outro lado vemos a grande manifestação das redes de hotelarias e de turismos vibrarem pelo grande fluxo de movimentação em seus negócios com a vinda do Papa ao Brasil, como, também, o “grande empenho” da Igreja e das autoridades civis para acolher bem o Papa.
Só que eu, católico apostólico romano atuante em movimentos e pastorais da Igreja, gostaria de afirmar para os senhores bispos, como autoridades máximas da Igreja, da qual eu comungo na fé, que não vejo motivo em tanta empolgação para ver o Papa, e, assim, portanto afirmo NÃO IREI VER O PAPA. Poderia muito bem conseguir licença do trabalho, não me sufocar tanto financeiramente por causa da viagem, enfim, poderia possibilitar-me totalmente para chegar a São Paulo na data em que Bento XVI estará no Brasil, só que não “farei este sacrifício” unicamente por causa da própria condução que a Igreja esta dando com a chegada de Bento XVI.
Desculpem a minha franqueza, mais quem esta chegando ao Brasil é simplesmente um Chefe de Estado e não a representação real do Cristo no meio do seu povo. Para tanto, basta vermos o grande aparato que os poderes constituídos (os quais terão mais acesso à autoridade, do que o Povo de Deus) estão se virando para acolher Bento XVI, não só pelo anseio do marketing político (lembrando que em 2008 haverá eleições municipais e como lá estará grande multidão, aqueles que correrão atrás dos eleitores, não deixarão “passar” esta oportunidade, a qual servirá como trampolim eleitoreiro), como, também, no sentido de deixar tudo limpo, belo e encantador para que Bento XVI veja com bons olhos a “vibração e a acolhida do povo brasileiro”, começando, principalmente, por “limpar” das ruas de São Paulo (marcadamente na Praça da Sé, local onde fica o Mosteiro de São Bento, onde Bento XVI ficará mais tempo hospedado) os sem tetos, mendigos e maltrapilhos, ou seja, tudo o que venha a lembrar a miserabilidade do povo brasileiro, bem como as Igrejas, por onde o Papa passará, terão que fazer reluzirem mais fortes ainda os seus “andores de riquezas”, como, também, fazendo com que os organizadores da visita, venham somente a darem permissão para chegarem junto ao Papa somente os que estiverem “vestidos a caráter”, ou que estejam na linha dos preparativos, conforme devidamente orientados... Outro fato a ser destacado, e que motiva mais ainda o meu desejo de não querer ir ver o Papa, é o fato, já devidamente registrado pela mídia (não somente a laica, mas também a religiosa), de, em tese, todo o conteúdo “das falas” de Bento XVI aqui no Brasil, onde será focado muito mais um “lado espiritual” da Igreja hoje no mundo, do que “o lado espiritual” de como ser Igreja hoje no mundo, embasada no cerne do Ser de Jesus. E assim de antemão, pergunto: onde estará, nesta visita (como na realização da V CELAM), o espírito, que deveria nortear a Igreja, de trazer o Cristo Ressuscitado para o meio do seu povo? por que a Igreja, marcadamente a sua oficialidade, deixará passar em branco este evento, para ficar calada (deixando de lado o seu profetismo) em relação aos sofrimentos e as mazelas que os povos da América e do Caribe estão a viverem hoje em dia? por que a Igreja “não se junta”, ao lado do seu Chefe para mostrar e denunciar, para o mundo, como anda a realidade dos pastores que servem, na ação concreta do ser de Cristo, junto ao povo, principalmente quando atentamos para “o calvário de Dom Erwim”, bispo do Xingu (realidade esta que a própria Igreja do Brasil “fecha os olhos”); as realidades dos missionários que trabalham juntos aos sem tetos, índios, sem terras, presos e excluídos, enfim com os parias da sociedade, como, também, o achincalhamento às pessoas de Dom Pedro Casaldaliga e Dom Paulo Evaristo Arns (e por extensão às memórias de Dom Luciano Mendes, Dom Ivo Lorscheider...), manifestada por um baluarte(?) de uma grande força da Igreja, notadamente no campo perigoso da mídia? será que deveremos esperar que surjam novos mártires (assim como Irmã Doroty a mais recente) para que a Igreja volte a ser a voz de Deus para o povo? será que o Papa, concretamente, virá somente para institucionalizar mais ainda a Igreja, fazendo com que Ela fique mais ainda distanciada do enraizar o Cristo no meio do povo? será que, mesmo após a partida do Papa, o trovejar da Igreja será somente os momentos de adoração e a vontade de atingir os 100% (muito mais no intuito de “se vender” uma espiritualidade), para continuar a encher os templos, deixando o Cristo a continuar desfigurado no seio do povo sofrido? será que não poderemos ver, de fato, o Cristo Ressuscitado, vir a se manifestar no seio da própria Igreja, fazendo, suas autoridades, voltarem a descerem dos púlpitos e virem para o meio do povo, assim como o Cristo viveu? será que a santificação do Frei Galvão, poderá fazer com que a Igreja, também, venha a ser santa, principalmente no saber servir ao povo? será que as nossas autoridades eclesiais poderão voltar a conviver, sem o lado romano, como Igreja junto ao povo? será, será, será...???????????
Não irei ver o Papa! Mas, daqui, desde já, mesmo sendo um misero servo desta Igreja, o qual muitas vezes não é ouvido (também qual a autoridade tenho para tanto?), nem entendido, mas, usando um direito democrático e universal(?), de poder se expressar, faço, por meio das autoridades espirituais de nossa Igreja, os bispos, tentar chegar estas minhas reflexões tanto aos mesmos, como, por imaginação e vontade, as “outras excelências” e principalmente ao Papa Bento XVI (quanta presunção!) , somente como pressupostos (vivenciados) para reflexões e bom andamento para esta nossa missão de sermos discípulos e discípulas do Senhor.
Não irei ver o Papa! Mas rezarei para que a sua missão “entre nós” venha a ser muito mais de um Pai Espiritual, do que de um estadista.
Não irei ver o Papa! Mas continuarei sempre em comunhão, mesmo que as vezes destoante, com sua Igreja, a qual foi balizada no Cristo Ressuscitado e assim é a minha crença! Amém!
Saudações fraternas do irmão em Cristo,

HELIO DA SILVA GUSMÃO FILHO
Paróquia das Candeias
Arquidiocese de Vitória da Conquista

Alerta às vésperas da V Conferência de Aparecida

Talvez esteja enganado, mas penso que muita gente já entendeu a verdadeira intenção do professor Felipe Aquino: ser fator de desencadeamento de retomada de consciência.
Com sua carta a Dom Pedro Casaldáliga ele tinha o escopo bem claro: a V Conferência de Aparecida está às portas e eu preciso fazer minha parte. Parabéns professor. Conseguiu.
Confesso que não o conhecia, na verdade, continuo a não conhecê-lo. Mas recebi uma bateria de artigos, e é bom registrar, um melhor que outro, em resposta à sua carta enviada ao Bispo, Emérito e Benemérito, de São Félix do Araguaia. Evidente que a maioria dos artigos traz alguns estrepes mais ou menos pontiagudos. A primeira vista tem-se a impressão de uma celeuma. Porém, todos os artigos, curtos ou longos, são excelentes. Acabava de degustar um artigo e outra já ia entrando na telinha. Alguém deveria fazer uma compilação, vai resultar num volume de muita boa qualidade.
Esta carta do professor Aquino dirigida ao nosso amado pastor, poeta e profeta, Dom Pedro Casaldáliga foi o vetor do alerta.
Confesso que também tive vontade de escrever ao professor. Não o fiz e considero esta atitude uma graça.
Dentre os mortais, pude perceber que o professor não prestou um desserviço à Igreja como escreveu um dos articulistas. Ao contrário, está prestando um serviço de primeira grandeza à Igreja. Sua simples cartinha continua despertando tantas pessoas queridas, cheias de dons, a sair de suas tocas.
Por todos os lados “pipocam” manifestações escritas e faladas de uma beleza ímpar. Confesso que ao ler, reler e treler, como escreveu um teólogo, tive verdadeiros êxtases. Quanta produção de qualidade incomparável continua sendo realizada às vésperas da V Conferência de Aparecida. Os nossos eleitos para a Conferência dispõem de farto e rico conteúdo, antigo e novo, para bem abrir e encerrar o documento final do encontro.
O professor Aquino, sabendo que alguns dos nossos baluartes, de saudosa e santa memória, não estariam mais presentes à Conferência, por serem eméritos ou mesmo por já terem partido para a pátria definitiva, outra coisa não fez senão atiçar nossos teólogos, bispos, padres, leigos(as), consagrados(as) para em nome dos que foram “tirados do campo”, como ele disse, trouxessem à tona a memória deles e, consequentemente, seus testemunhos eloqüentes de amor à Igreja e, de maneira especial, aos pobres, preferidos de Deus. Pena que o professor e quase todos os que escreveram não mencionaram o nome de um importante baluarte da Igreja: o nosso saudoso e santo bispo conhecido como o “DOM”, sim, o Dom Helder, que o Papa João XXIII chamava de “cardenaleto mio” e João Paulo II o chamava de Pai dos Pobres, apesar de ter agido sempre como pai de todos. Sempre tratou todas as pessoas com respeito fraterno e em especial os pobres.
Professor Aquino, quero parabenizá-lo pelo êxito alcançado. Seu alerta está sendo ouvido e respondido à altura.
Não posso pensar de outro modo. Creio que nem Pe. Jonas iria permitir que o senhor pudesse fazer parte do quadro da Canção Nova se não percebesse que o senhor tem respeito pelos grandes e santos pastores desta Igreja. Valeu o alerta.
Parabenizo-o por vários motivos:
-Porque o senhor realmente teve esta inspiração, ou seja, de acordar muita gente para resgatar a memória de nossos santos pastores e profetas. Destarte, “estarão conosco” na 45ª Assembléia Geral da CNBB e dali “partirão”, também, para a V Conferência de Aparecida, para continuarem, em nome do Deus da Vida, a inspirar nossos delegados a não deixarem cair a profecia, como nos pediu Dom Helder; para não nos separarmos da maior riqueza da Igreja, os pobres, como pediu Dom Luciano; para a Igreja continuar sendo missionária, profética, coerente com o Evangelho, a exemplo de Dom Casaldáliga e todos os pastores citados na sua carta e daqueles que não foram citados também.
-Porque com a sua cutucada, creio que a V Conferência será verdadeiramente um novo Pentecostes, com a presença espiritual e inspiradora dos santos pastores grafados pelo senhor e de todos os que já gozam da visão beatífica e os corações e mentes abertos dos nossos delegados que serão fiéis a Jesus Cristo e ao tema que o Papa Bento XVI nos deu: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nele nossos povos tenham vida”. Como o Papa está por dentro da nossa realidade, ele sabe que a maioria dos nossos povos da América Latina e do Caribe são excluídos da vida. Portanto, está de acordo com o próprio Jesus que disse: “Vim para que todos tenham vida”. Todos, disse Jesus, e não somente algumas pessoas privilegiadas; e o Papa diz todos os povos e não somente alguns. Realmente, o tema é muito envolvente porque trata da vida e não apenas de dogmas. Claro que os dogmas são importantes, mas devem estar sempre abertos ao sopro contínuo e amoroso, próprio do Espírito Santo, Eterna novidade...
-Porque, pelo seu alerta, pude perceber e sentir que a Igreja no Brasil tem gente capaz, corajosa, sábia, generosa e santa, apesar de pecadora, assim como o senhor que atirou pedra somente para confirmar que estas árvores foram e continuam sendo frutíferas, e acertadamente um dos Bispos disse no seu artigo: “Professor Aquino, as pedras que o senhor atirou para o alto serão transformadas em estrelas brilhantes”. É poético, é verdadeiro! Realmente, professor, o senhor fez justiça à memória de nossos pastores que estava caindo no esquecimento da nossa Igreja.
Verdadeiramente a leitura de toda a produção dos nossos hábeis e perspicazes articulistas, provocada pelo senhor, me fez exultar. Estou degustando, através dela, o Reino Definitivo por antecipação.
E, por último, porque sei que muito mais se escreverá sobre nossos santos bispos, alguns deles entre nós e outros que já partiram, mencionados e não mencionados pelo senhor, para que a memória e a prática deles se perpetuem entre nós.
Desde já estou feliz em poder ler e buscar viver o caminho percorrido pelos nossos santos pastores no seguimento do Pastor Eterno Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida.
Normalmente não escrevo porque não sou escritor. Não sou teólogo. Sou apenas um bispo matuto que busca reconhecer a presença de Deus na vida e na realidade do nosso povo e daqueles que estão a serviço do povo, especialmente do que não têm vez e voz.
De todos os mencionados, o que mais conheci foi Dom Luciano. Luz de Deus. Ah, que falta sinto dele, meu irmão professor. Você fez tanto bem para a minha alma saudosa e creio para muita gente, fazendo tantas pessoas escreverem sobre ele. Até para dar uma ajuda, para qualquer pessoa, ele pedia licença antes, com toda a humildade que lhe era peculiar.
Não escrevo, mas rezo um pouco. E, todos os dias, peço a intercessão dos que o senhor mencionou e de outros não mencionados, que já estão na casa do Pai e mais do que Pai é Mãe, como disse João Paulo I.
João Paulo II, Dom Helder, Dom Luciano, Dom Ivo, Dom Hipólito, Dom Romero, Ir.Dorothy,Pe. Burnier, Margarida Alves, Chico Mendes...intercedei pela V Conferência de Aparecida , por todo Povo de Deus e especialmente pelos mais sofridos. Amém.

Dom Luiz C. Eccel
Bispo Diocesano de Caçador

Transposição do Rio São Francisco: um crime ambiental e social

Frei Gilvander Moreira[1]

De tortura em tortura, abrem em seu corpo as chagas, com obras e ambição e crucificam o Velho Chico na cruz da Transposição.” Nancy Cardoso
Sobre o projeto de transposição das águas do rio São Francisco há um projeto de fantasia, mentiroso, e outro projeto real. O projeto de fantasia da transposição diz que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas, 300 mil hectares serão irrigados, 1 milhão de empregos serão criados, tudo isso a “solução definitiva para o problema da seca”. Divulgado em cartilhas, rádio e TVs, o projeto criou uma expectativa que praticamente impede o debate sobre os problemas reais do Semi-árido e suas reais soluções.
O Projeto real de transposição, se não for sepultado, atingirá apenas 5% do território semi-árido brasileiro e 0,3 % da população. Apenas 4% da água será destinada à chamada população difusa, 26% serão para uso urbano e industrial e 70% serão para irrigação (carcinicultura – criação de camarão -, floricultura e hortifrutigranjeiros) de produtos para exportação. Serão beneficiadas cidades fora do Semi-árido como Recife e Fortaleza, além de Caruaru (agreste de Pernambuco).
Impactos relevantes: modificação da composição das comunidades biológicas aquáticas nativas nas bacias receptoras; risco de redução da biodiversidade nas bacias receptoras; risco de tensões durante a fase de obra; interferências nas comunidades indígenas; interferências no patrimônio cultural (sítios históricos); risco de introdução de espécies de peixes daninhos; custo da água na bacia receptora: R$ 0,11/m3, no eixo leste, e R$ 0,14/m3 no eixo norte. O custo do transporte da água será dividido com o consumidor urbano (na conta de água). A CHESF estima que a operação e manutenção do sistema custará de 80 a 100 milhões de reais por ano. Serão construídas 7 usinas hidroelétricas com capacidade para produzir 175 MW de forma a manter o sistema funcionando.
Dados oficiais dos próprios Planos de Recursos Hídricos dos Estados beneficiados revelam um quadro atual bastante favorável em termos de disponibilidade de água. O Ceará, por exemplo, tem potencial para atender com segurança até quatro vezes as demandas atuais por água para todos os usos. Não existe déficit hídrico nos Estados beneficiados. Custo da transposição: R$ 4,5 bilhões apenas nos primeiros anos.
O que o Nordeste precisa não é de importação de água, mas de uma reforma hídrica eficiente. Os impactos ambientais e sócio-econômicos da captação da água no rio São Francisco, na própria bacia, estão sendo minorados, conforme previsão no projeto, sem a devida precaução.
Toda a água da bacia já se encontra comprometida. Da vazão disponível, 80% encontravam-se reservados para a produção de energia para todo o Nordeste e, dos 360 m³/s alocáveis para os outros usos, 335 m³/s encontravam-se comprometidos. Paira a questão da inviabilidade das vazões maiores a serem retiradas para o Projeto completo (até 127 m³/s, 65 m³/s em média) a depender da disponibilidade sobrante do reservatório do Sobradinho, o que tem acontecido raramente, entre sete e dez anos. 98% da energia consumida no Nordeste vêm das águas sanfranciscanas.
As águas desviadas vão passar distante da grande maioria da população rural do sertão atingida pela seca, e, em contrapartida, vão irrigar, em condições economicamente desfavoráveis, regiões onde já se encontram os maiores reservatórios. Com a transposição, ao contrário, vai se pagar muito caro pelo uso da água transposta. O custo da água será, no mínimo, cinco vezes maior do que os valores atualmente praticados na Região. Um verdadeiro “presente de grego” para a população dos Estados receptores. Está previsto o subsídio cruzado: 85% da receita do projeto será gerada pelos consumidores de água situados no meio urbano das grandes cidades do Nordeste Setentrional, que na atualidade não precisam desta água e já subsidiam o abastecimento hídrico humano do interior dos municípios. A construção de adutoras, a partir das grandes barragens da região, tem se mostrado como a solução mais viável para o abastecimento das cidades e comunidades rurais nos períodos secos. O abastecimento rural nos anos de chuvas normais deve, preferencialmente, sustentar-se nas soluções locais de baixo custo - açudes, poços, cisternas. Construção de barragens subterrâneas para culturas de vazantes; Modernização das tecnologias de irrigação.
Há milhões de pessoas que vivem na bacia do São Francisco e que dizem, a partir da sabedoria popular, que o rio está morrendo. Por exemplo, dia 01/08/2004, na IX Romaria da Terra e das Águas de Minas Gerais, em Pirapora e Buritizeiro, ouvimos os relatos de pescadores que pescam há 15, 20, 30 ou 35 anos no rio São Francisco. Todos dizem: o rio São Francisco está morrendo. Nos últimos 40 anos, já perdeu cerca de 40% do seu volume de água. Está cada vez mais raso, estreito e assoreado. Uma infinidade de ilhas existentes hoje não existia no passado. O assoreamento é o resultado dos 18 milhões de toneladas de areia e terra que o rio está recebendo todos os anos. O rio está sendo sepultado vivo. As matas ciliares acabaram. Os vazanteiros tiveram que migrar para as favelas, pois as cheias quase não existem mais e, por isso, a pesca e a agricultura nas várzeas estão ficando inviáveis.
O Tribunal de Contas da União diz que o projeto não beneficiará o número de pessoas que se alardeia. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) observou que pelo menos 30% da água se perderia por evaporação. A Cáritas mostrou que a solução para comunidades isoladas está na implantação de 1 milhão cisternas de placa para captação da água da chuva (das quais já há 160 mil), não na transposição, que não chegaria a esses lugares.
Vários especialistas (professor Aldo Rebouças, da USP, professor João Abner Guimarães, da UFRN, professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, Roberto Malvezzi, da CPT, entre muitos) demonstraram a desnecessidade da transposição: o problema no semi-árido é de gestão, não de escassez.
A Agência Nacional de Águas (ANA), entidade estatal criada para a gestão estratégica do uso da água no Brasil, propõe 530 obras para solucionar os problemas de abastecimento hídrico até 2015 em todos os núcleos urbanos acima de 5.000 (cinco mil) habitantes do semi-árido brasileiro. Essas obras beneficiariam as populações mais necessitadas e custariam 3,6 bilhões de reais, portanto, mais baratas, mais abrangentes, mais eficientes que qualquer obra de transposição hídrica.
Por tudo isso, concluímos, seguindo as opiniões mais abalizadas no tocante ao tema exposto, que o projeto falacioso de transposição do Rio São Francisco é um crime não apenas ambiental, mas sobretudo social, já que aventureiro, despropositado e contrário ao interesse público.
Frei Gilvander Luís Moreira, e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br

[1] Mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor de CEBs, CEBI, CPT, MST e SAB. E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br

O homem público Ciro Gomes – grosseria e mentiras marcam sua postura ao defender o insano projeto de Transposição do Rio São Francisco.

Delze dos Santos Laureano[1]

Arrogância, prepotência, destempero, machismo, linguagem chula são algumas das palavras que me ocorrem quando recordo da postura do ex-ministro Ciro Gomes, na tarde do dia 26 de abril de 2007, na Assembléia Legislativa de Minas Gerais.[2]
Estive no auditório a convite de um assessor parlamentar e representando o Núcleo de Estudos de Direito Ambiental da FD/UFMG. Estava encarregada de apresentar informações acerca das questões jurídicas que envolvem a discussão do “Projeto de Integração do Rio São Francisco”, eufemismo do velho e requentado projeto de transposição, cujas decisões das ações judiciais em andamento estão hoje a cargo do Supremo Tribunal Federal.
Naquela data foi que ouvi pela primeira vez, da boca do próprio articulador do projeto faraônico, os argumentos dos que querem nos empurrar goela abaixo uma obra com a qual não concorda a sociedade civil, representada por mais 900 organizações que lutam contra a Transposição. Isso, no meu entendimento, dá-nos conta da falência da democracia representativa no Brasil. Se a sociedade civil não reconhece o projeto como justo, seguro e necessário, por que os nossos representantes eleitos, tidos como homens públicos, insistem no empreendimento mesmo assim? Será que eles têm uma procuração em branco para decidir o nosso e o futuro das novas gerações?
Diz o dito popular que jamais teremos uma segunda oportunidade de causar uma primeira boa impressão. O ex-ministro da Integração Nacional do Governo Lula, e atual deputado federal pelo Estado do Ceará, Ciro Gomes, ficou feio no retrato. Demonstrou que não tem equilíbrio emocional para ocupar um cargo público. Já adentrou no pequeno auditório demonstrando uma enorme irritação a qualquer pergunta que lhe era dirigida pelos repórteres e ao final gritava espalhando ofensas a todas as pessoas presentes. Interrompeu sua fala por diversas vezes para responder a qualquer gesto de manifestação da platéia. Afirmou que os rios brasileiros já estão todos “ferrados”, defendendo-se contra as alegações de que o Rio São Francisco precisa ser revitalizado. Passou a imagem de quem se acha o dono da verdade e, não tendo argumentos, ridiculariza todas as pessoas que desconstroem os seus fundamentos viciados. Ademais não tem paciência para ouvir ninguém.
Senti-me profundamente incomodada quando depois de fazer diversas afirmações falaciosas e mentirosas, o ex-ministro passou a referir-se de forma extremamente desrespeitosa ao bispo Dom Luiz Flávio Cappio. Disse que o bispo meteu-se em assunto do qual não entende nada. Afirmou também que padre não tem que se meter em política e que deve ficar no seu canto rezando. Disse que se Dom Cappio quiser interferir na política que seja eleito. Ridicularizou o bispo com sua veste franciscana. Da platéia falei que não era verdade as afirmações feitas acerca de Dom Luiz Cappio. Também demonstrei que não concordava com a forma desrespeitosa como ele se referia ao bispo. No meu modo de ver, dada a ausência de Dom Cappio no debate e considerando que o fato de ser um religioso não retira do bispo a legitimidade para atuar politicamente como cidadão. Aliás o que está faltando no Brasil é cidadania, pois sem cidadania não há democracia e sem democracia não há Estado de Direito. Entendi como provocação e profunda falta de ética o tom do discurso do ex-ministro. Sei que Dom Cappio é um Homem público, com H maiúsculo, e que representa importante segmento da sociedade civil organizada, que são as pastorais sociais e os movimentos populares. Essas organizações são muito bem assessoradas e têm informações seguras para denunciar o projeto de transposição, algo insano, ilegal, contrário ao interesse público, um crime sócio-ambiental.
Antes Ciro Gomes já havia se referido também a João Abner Guimarães como idiota. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Abner é contra o projeto de transposição. Ele conseguiu refutar um a um, tecnicamente, os argumentos falaciosos dos estudos realizados sobre a Transposição. Por isso também se tornou, na fala do arrogante Ciro, um idiota, alguém que só quer aparecer.
Quando me manifestei, por não concordar com as ofensas dirigidas a D. Cappio, o ex-ministro me provocou para que eu dissesse porquê são mentirosas as suas afirmações. Tenho certeza que D. Cappio conhece profundamente todas as questões e tem toda a legitimidade de quem convive com o povo ribeirinho da bacia sanfranciscana há mais de trinta anos e estudou bastante todas as questões da bacia.
Foi então que me levantei e dirigi-me para dar a resposta à provocação. Para minha surpresa, o petulante deputado federal não consegue ouvir ninguém. Dava ordens como um Senhor de Engenho aos negros nas lavouras. Tentou me ridicularizar quando calmamente falei que ele demonstrava irritação incontrolada e, na falta de argumentos, partia para a agressão.
Moral da história. Vendo que não tinha nada a aprender com aquele homem que se coloca na posição de representante do povo, mas que na realidade representa apenas a si mesmo, à velha oligarquia brasileira, consegui apenas expressar em breves palavras o reconhecimento que o povo brasileiro tem pelo religioso e pela liderança legítima de D. Luiz Flávio Cappio. Ao final, ainda que rapidamente, falei de aspectos do projeto que são ilegais e inconstitucionais. Vale destacar, por exemplo, a ausência de audiências públicas legítimas, já que essas foram realizadas dentro de hotéis 5 estrelas, ou sem o financiamento público para o deslocamento das pessoas, impossibilitando a participação da população efetivamente atingida, a falta de estudos acerca dos impactos sobre as comunidades quilombolas e as reservas indígenas existentes na bacia, cuja existência foi textualmente negada pelo ex-ministro. Falei também da disposição do povo brasileiro em lutar democraticamente contra esse projeto insano e faraônico.
Para mim ficou mais claro ainda que o projeto é inconstitucional, ilegal e contrário ao interesse público. Também é uma farsa acreditar que vão fazer reforma agrária nos 2,5 quilômetros de terras desapropriadas ao longo do canal. Os pequenos agricultores não terão como pagar as contas de água e de luz necessárias para tocar suas atividades.
Na minha cabeça continua martelando uma última frase do ex-ministro, antes de eu sair. Após afirmar que estamos numa democracia disse: “apesar de vocês, o projeto vai ser executado”. Muito democrático mesmo, não? E ainda dizem que todo o poder emana do povo. Já disse o poeta mineiro: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender!”

Delze dos Santos Laureano, e-mail: delzesantos@hotmail.com

[1] Delze dos Santos Laureano é advogada da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares, especialista em assessoria técnico-legislativa e mestre em Direito Constitucional pela UFMG é professora no Curso de Direito da Escola Superior Dom Héder Câmara. E-mail: delzesantos@hotmail.com

[2] Cf. reportagens dos Jornais ESTADO DE MINAS, DIÁRIO DA TARDE e O TEMPO, de 27/04/2007, sobre a passagem de Ciro Gomes em Minas Gerais.

REDUÇÃO DA IDADE PENAL: SOLUÇÃO OU ILUSÃO?

MITOS E VERDADES SOBRE O TEMA:

1 - MITO: Os adolescentes não respondem por seus atos perante a sociedade e a Justiça, estando acobertados por uma espécie de "imunidade", sinônimo de "impunidade";

- VERDADE: Os adolescentes, na forma da lei, já são devidamente responsabilizados por seus atos anti-sociais, sendo passíveis de SANÇÕES estatais que, apesar de tecnicamente não serem chamadas de "penas" (são conhecidas por "medidas sócio-educativas"), extrinsecamente a elas em muito se assemelham, e para o leigo com elas acabam se confundindo, como é o caso da medida de "prestação de serviços à comunidade", que tem até o mesmo nome que uma pena destinada a adultos prevista na lei penal e das medidas de "inserção em regime de semiliberdade" e "internação", que importam na restrição e privação de liberdade (respectivamente), e quanto ao regime de cumprimento equivalem às penas de detenção e reclusão para os adultos, vez que são aplicadas nos regimes semi-aberto e fechado respectivamente. Em muitos casos o tratamento dispensado a um adolescente pode ser mais rigoroso que aquele, em situação idêntica, a Lei Penal confere a um adulto, valendo lembrar que em TODOS os atos infracionais praticados por adolescentes a autoridade policial tem o DEVER DE AGIR, independentemente da provocação da vítima ou de seus representantes, ao passo que em relação a certos crimes praticados por adultos, como o ESTUPRO, a AMEAÇA, a LESÃO CORPORAL LEVE e o DANO, somente poderá agir se AUTORIZADA PELA VÍTIMA ou seus representantes que, em determinados casos (como - pasmen - o ESTUPRO), para ver o adulto infrator processado perante a Justiça terá de CONSTITUIR ADVOGADO e, às suas expensas, ingressar com ação penal privada. De acordo com o previsto no próprio Estatuto, a privação da liberdade do adolescente pode se estender por até 06 (seis) anos, sendo 03 (três) anos em regime de internação e outros 03 (três) anos em semiliberdade. Esta drástica solução, no entanto, é utilizada apenas em última instância, e sempre como MEIO de promover a recuperação do jovem (através de atividades educativas e profissionalizantes - que são obrigatórias nas unidades onde a medida é cumprida) e jamais como um fim em si mesma. Eventual inércia das autoridades (seja por desconhecimento, seja por pura indolência) não pode ser creditada à lei nem servir de pretexto para sua alteração, demandando apenas a orientação e/ou responsabilização dos omissos, por não estarem cumprindo DEVER funcional.

2 - MITO: Os adolescentes são responsáveis por grande parte da violência praticada no País;

- VERDADE: Os adolescentes são responsáveis por MENOS DE 10% (DEZ POR CENTO) das infrações registradas, sendo que deste percentual, 73,8% (SETENTA E TRÊS VÍRGULA OITO POR CENTO) são infrações contra o patrimônio, das quais MAIS DE 50% (CINQÜENTA POR CENTO) são meros FURTOS (sem, portanto, o emprego de violência ou ameaça à pessoa), geralmente de alimentos e coisas de pequeno valor, que para o Direito Penal se enquadrariam nos conceitos de "furto famélico" e "crime de bagatela", impedindo qualquer sanção a adultos. Apenas 8,46% (OITO VÍRGULA QUARENTA E SEIS POR CENTO) das infrações praticadas por adolescentes atentam contra a vida (perfazendo cerca de 1,09 - UM VÍRGULA ZERO NOVE POR CENTO do total de infrações violentas registradas no País), sendo que, historicamente, crianças e adolescentes são muito mais VÍTIMAS que autores de homicídios (na proporção de 01 homicídio praticado para cada 10 crianças ou adolescentes mortas por adultos). Ocorre que as infrações praticadas por adolescentes ganham grande VISIBILIDADE e REPERCUSSÃO na mídia, que nos últimos anos, além de DESINFORMAR a população sobre a VERDADE relacionada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, deflagrou verdadeira CAMPANHA a favor da redução da idade penal, elegendo de forma absolutamente INJUSTA adolescentes como "bodes expiatórios" da violência no País, para qual comprovadamente os jovens contribuem muito pouco.

3 - MITO: Os adolescentes devem ser punidos como adultos porque "já sabem o que fazem", tendo perfeita capacidade de discernir entre "o certo e o errado", podendo inclusive votar e dirigir;

- VERDADE: A questão do discernimento é absolutamente irrelevante, haja vista que a capacidade de distinguir "o certo do errado" é encontrada mesmo em crianças de menos de 04 (quatro) anos de idade. A fixação da idade penal em 18 (dezoito) anos ou mais - critério adotado por 59% (CINQÜENTA E NOVE POR CENTO) dos países do mundo, se deve não apenas a questões de "política criminal", mas também - e especialmente, em razão da COMPROVAÇÃO TÉCNICO/CIENTÍFICA de que, na adolescência, onde há a transição entre a infância e idade adulta, a pessoa atravessa uma fase de profundas transformações psicossomáticas, tornando-a mais propensa à prática de atos anti-sociais (não apenas crimes, mas toda e qualquer forma de manifestar rebeldia e inconformismo com regras e valores socialmente impostos, facilmente identificáveis pela forma de se vestir, colocação de tatuagens e "piercings", fumo, consumo de bebidas alcoólicas, drogas etc.), em especial quando o jovem se envolve com algum grupo, perante o qual sente necessidade de se afirmar. A condição sui generis do adolescente demanda um tratamento diferenciado, com especial enfoque para sua orientação e efetiva recuperação, que somente pode ser obtida em instituição própria, onde exista uma PROPOSTA PEDAGÓGICA SÉRIA e bem definida. Aqueles que utilizam o direito de o adolescente, a partir dos 16 (dezesseis) anos votar, como argumento para a redução da idade penal se esquecem que, em primeiro lugar, o voto até os 18 (dezoito) anos é FACULTATIVO, e em segundo que, apesar de poder votar (e as estatísticas revelam que menos de 25% - VINTE E CINCO POR CENTO dos adolescentes de 16/17 anos se inscrevem como eleitores, demonstrando franco despreparo para o exercício do voto), o adolescente NÃO PODE SER VOTADO, não podendo exercer cargos públicos de qualquer natureza (que em muitas vezes exigem idade superior a 21 ou mesmo 25 anos), obviamente porque o legislador constituinte entendeu não terem os jovens a maturidade suficiente para assumirem tais cargos. Quanto à condução de veículos automotores, TODOS os OITO projetos de lei que permitiam a concessão de habilitação a maiores de 16 (dezesseis) anos foram ARQUIVADOS pelo Congresso Nacional, sendo que no início de 1999, o art.11 da Resolução nº 50/98 do CONTRAN que permitia a condução de CICLOMOTORES por adolescentes foi apressadamente REVISTO pelo Ministro da Justiça, que através da Deliberação nº 04/44, posteriormente referendada pelo próprio CONTRAN, exigiu que, mesmo para condução de tais veículos, é necessária a idade mínima de 18 (dezoito) anos. Em países desenvolvidos, como a Alemanha, não apenas houve o retorno da maioridade penal aos 18 (dezoito) anos, como está sendo criada uma sistemática também diferenciada para o tratamento de infratores com idade entre os 18 (dezoito) e os 21 (vinte e um) anos.

4 - MITO: Somente com a diminuição da idade penal e imposição de verdadeiras penas a adolescentes, em patamar elevado, que haveria uma diminuição da violência nessa faixa etária.

- VERDADE: Está mais do que provado que a punição pura e simples, bem como a quantidade de pena prevista ou imposta, mesmo para o adulto, não é um fator de diminuição da violência. Exemplo claro é aquele dado pela chamada "Lei dos Crimes Hediondos" (Lei nº 8.072/90), que através de um tratamento mais rigoroso com os autores de tais infrações, pretendia diminuir sua incidência. Ocorre que, nunca foram praticados tantos crimes hediondos como hoje, estando nossas cadeias e penitenciárias abarrotadas a tal ponto de se estar estudando a revogação ou modificação dessa lei, de modo a permitir a progressão para um regime prisional menos severo tal qual previsto para os crimes comuns. Nos Estados Unidos, onde existe a previsão de penas de morte e prisão perpétua, em 07 (sete) anos de recrudescimento de sentenças aplicadas a jovens, o que se verificou foi a TRIPLICAÇÃO dos crimes praticados entre adolescentes, sendo comuns casos de "chacinas" promovidas por jovens em escolas. O que é importante para a redução da violência é a AÇÃO RÁPIDA e EFICAZ das autoridades encarregadas da segurança pública e da própria Justiça, de modo que os crimes praticados sejam rapidamente elucidados e seus autores - adolescentes ou não, recebam a devida sanção. A sistemática prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente visa justamente isso, de modo que, por exemplo, um adolescente possa ser sentenciado a uma medida de prestação de serviços à comunidade ou obrigação de reparar o dano NO DIA SEGUINTE à prática infracional, desde logo iniciando o cumprimento da medida. Se isso não ocorre na prática, a culpa não é da lei, mas sim da falta de uma estrutura adequada para sua implantação. A proposta do Estatuto é tão boa e avançada que, no Brasil, foi COPIADA pela chamada "Lei dos Juizados Especiais Criminais" (Lei nº 9.099/95), destinada a crimes de menor potencial ofensivo praticados por adultos, bem como vem sendo estudada e tendo sua sistemática também adotada por vários outros países, em especial da América Latina.

Crianças e adolescentes são diariamente vítimas, por ação ou omissão da família, sociedade e do Estado, de toda sorte de violência (não apenas física), violência essa que na maioria das vezes passa desapercebida por todos. Quando um desses vitimizados assume a condição de "infrator", não raro fazendo de seu ato anti-social um verdadeiro PEDIDO DE SOCORRO, quando não uma "LEGÍTIMA DEFESA" contra aqueles que, tendo POR MANDAMENTO LEGAL E CONSTITUCIONAL O DEVER DE PROTEGÊ-LOS, lhes negam o exercício de seus direitos fundamentais, passa então - e somente então, a ser o objeto da atenção de todos, que desejam vê-los o mais longe possível, de preferência para nunca mais voltar...

Se esquecem, no entanto, que as condições que geraram esses "seres indesejados", permanecem latentes, e outros casos iguais ou ainda piores em breve surgirão. Mesmo aqueles, "exportados" para cumprir suas penas em outras localidades, cedo ou tarde por certo retornarão às suas origens... mas serão eles melhores do que quando saíram? Ou retornarão brutalizados e completamente "formados" na "universidade do crime" que são nossas penitenciárias?

Segundo dados oficiais, o sistema penitenciário brasileiro oferece pouco mais de 107.000 (CENTO E SETE MIL) VAGAS, para uma população carcerária que beira os 350.000 (TREZENTOS E CINQUENTA MIL) DETENTOS. A superpopulação carcerária é alarmante, e os índices de reincidência em alguns casos ultrapassam os 80% (OITENTA POR CENTO), tendo o egresso, com o estigma de "ex-detento", pouca ou nenhuma chance de emprego e reinserção social. Mesmo aqueles que defendem a redução da idade penal reconhecem que nosso sistema penal NÃO RECUPERA os adultos nele inseridos. É esse o destino que queremos para nossos adolescentes e nossa sociedade?

Melhor não seria CUMPRIR A LEI e, a par da criação e manutenção, em cada município, de uma ESTRUTURA DE ATENDIMENTO ADEQUADA a crianças, adolescentes e famílias fragilizadas, com enfoque eminentemente PREVENTIVO, implantar medidas sócio-educativas em meio aberto, com uma proposta pedagógica séria e voltada à efetiva recuperação e reinserção social e familiar de nossos jovens, que nos casos mais graves seriam então encaminhados a unidades de internação e semiliberdade de pequeno porte (o CONANDA, através de sua Resolução nº 46/96, fixa em QUARENTA o número máximo de adolescentes por unidade), situadas nas diversas regiões do Estado, mais próximas à realidade conhecida pelo adolescente e de sua família, que PRECISA integrar o processo desencadeado com vista a seu resgate, onde o mesmo seria tratado e educado, bem como inserido em cursos profissionalizantes, que lhe proporcionariam alternativas viáveis à delinquência e fazem, em alguns casos, o índice de reincidência ser da ordem de meros 03% (TRÊS POR CENTO)?

O que conseguimos ao longo dos séculos em que se adotou uma postura unicamente punitiva e retributiva, e em especial nos últimos dez anos com "Lei dos Crimes Hediondos"?
A diminuição da violência?

Saímos de casa e dormimos tranquilos?

E é essa fórmula, comprovadamente ineficaz em relação aos adultos, que queremos reproduzir para nossos adolescentes? Não seria melhor seguir o caminho INVERSO, transportando integralmente (parcialmente como vimos já o foi) a sistemática prevista pelo Estatuto também para os imputáveis?

Até quando vamos continuar nos iludindo com o DISCURSO FÁCIL daqueles que, ao invés de combaterem de forma efetiva e eficaz as VERDADEIRAS causas da violência pregam o singelo ataque a seus efeitos, contribuindo assim apenas para a perpetuação e agravamento do problema?

Diante de tais informações, não é difícil concluir que a modificação do sistema hoje vigente em relação a adolescentes acusados da prática de atos infracionais não será a melhor solução para o problema da violência no País, nos fazendo então pensar a quem de fato interessa a redução da imputabilidade penal.

Os únicos beneficiados com a sistemática que se pretende ver implantada serão os "governantes de plantão", que com a solução simplista do encarceramento dos jovens "socialmente indesejáveis" agora a partir dos 16 anos (já se fala em 14), e amanhã talvez dos 12 ou 10 anos de idade, não terão de ser criadas mais escolas e programas de atendimento especializado, tal qual previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A propósito, o verdadeiro foco de nossa preocupação deveria ser justamente com o cumprimento dos dispositivos constantes do Estatuto e da Constituição Federal que prevêem, para a área da infância e juventude, um tratamento PRIORITÁRIO, e com prioridade ABSOLUTA, que importa, dentre outras, na "preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas" e na "destinação privilegiada de recursos públicos..." (art.4º, par. único, alíneas "c" e "d" da Lei nº 8.069/90).

Uma vez que existam programas de prevenção e proteção em número suficiente a atender a demanda, com especial enfoque no atendimento, orientação e restruturação das famílias, que têm por obrigação participar do processo de educação de seus filhos, inclusive no sentido de conscientizá-los de que têm eles os mesmos direitos e deveres de qualquer cidadão, aí sim se estará enfrentando a questão da forma correta, combatendo a violência praticada por e contra crianças e adolescentes (esta como vimos de incidência muito maior que aquela) de forma realmente eficaz e duradoura.

Nosso compromisso, portanto, tem de ser com o CUMPRIMENTO DA LEI E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, com a devida COBRANÇA no sentido de que nossos governantes destinem à área da infância e juventude a PRIORIDADE ABSOLUTA que a mesma merece. Assim agindo, estaremos garantindo não apenas que adolescentes autores de condutas anti-sociais recebam a devida sanção, tal qual previsto na legislação específica, mas sim lhes assegurando verdadeiras condições de recuperação e reinserção social e familiar, de modo a se tornarem cidadãos úteis à sociedade, o que por certo não acontecerá caso sejam eles encaminhados para nosso sistema penitenciário há muito falido, onde serão privados não apenas de sua liberdade, mas de toda e qualquer possibilidade de escolarização, profissionalização, perspectiva de um futuro melhor e da própria dignidade como seres humanos, retornando assim ao meio social ainda jovens porém em condições infinitamente piores do que quando foram recolhidos.

A pergunta que se deve fazer, portanto, não é se o adolescente deve ou não ser responsabilizado por seus atos, pois isto como vimos já ocorre a contento, mas sim que espécie de tratamento deve ele receber: o previsto no Estatuto, no qual existem chances concretas de recuperação ou aquele hoje destinado aos adultos, onde será apenas "guardado" por um período (que por certo não será muito dilatado) e devolvido à sociedade com toda a carga negativa acumulada no sistema penitenciário?

A resposta, que se espera seja unânime, somente reafirma a certeza de que a redução da imputabilidade penal, além de não ser a resposta para o problema da violência no País, para qual comprovadamente os jovens contribuem muito pouco, trará muito mais prejuízos do que vantagens à sociedade brasileira, que contra tal proposta deve se mobilizar em defesa própria e acima de tudo de suas crianças e adolescentes, que longe de serem vilões, são as maiores vítimas dessa mesma violência, que já começa quando são privados de condições dignas de sobrevivência pela falta de políticas públicas adequadas, passando pela omissão de suas famílias (e aí não se fala apenas naquelas carentes) e pela falta de uma educação (na mais ampla acepção da palavra) adequada, que os priva de seus direitos fundamentais e lhes veda o acesso à cidadania.

Apenas com o cumprimento da lei e da Constituição, com o envolvimento de todos (família, sociedade e Poder Público) na PROTEÇÃO INTEGRAL de crianças e adolescentes, com o tratamento PRIORITÁRIO que o tema reclama, é que nossos jovens se tornarão verdadeiros cidadãos, e como tal, conhecendo e tendo respeitados seus direitos, saberão exatamente quais são seus deveres e limites, respeitando também os direitos de seu próximo, o que por certo irá destruir a problemática da violência em suas origens, para o benefício de toda a sociedade.

De José Carlos Costra, para a REDEX, fevereiro de 2007