20 de mar. de 2007

Mundo: Perguntas a Bento XVI

Sua Santidade ressuscitou o que o concílio Vaticano II havia enterrado: a missa em latim. Uma exigência do Monsenhor Lefebvre, arcebispo suíço excomungado em 1988, por negar-se a aceitar as reformas conciliares.

Quando criança, assisti a muitas missas em latim, com o celebrante de costas aos fiéis, segundo o rito tridentino de meu co-irmão, o papa Pio V, que foi dominicano. Por que permitir a volta ao latim? Quantos fiéis dominam este idioma? Jesus não falava latim. Falava aramaico. Talvez algo de hebraico. E por viver em uma região dominada por Roma, é certo que conhecia alguns vocábulos latinos, como a saudação romana ‘Ave!’, que foi introduzida na oração mais popular do catolicismo, a Ave Maria.

Assim como o grego se universalizou através do Mediterrâneo, graças às campanhas de Alexandre, o Grande, o latim se propagou através das conquistas do Império Romano. Segundo esta lógica, não seria mais adequado adotar hoje em dia o inglês?

Pois bem, a grande maioria dos fiéis católicos encontra-se atualmente na América Latina. E não entende grego, nem latim, nem inglês. Não seria aconselhável que participassem da missa em sua língua natal?

Considerando o empenho de inculturação da Igreja, não é contraditório voltar a missa em latim? Tenho um amigo, ateu até a medula, que gosta muito de assistir a missas em latim. Para ele a liturgia se reduz a um espetáculo, quanto mais glamoroso, melhor. É uam questão de estética, não de uma ponte comunitária entre o nosso coração sedento e o Transcendente. Me inquieta sua (do Papa) afirmação de é "uma praga" casar-se pela segunda vez e proibir aos católicos o acesso à eucaristia. Os evangelhos ensinam que Jesus comungou com pessoas que, vistas daqui e agora, estavam longe da moral vaticana. E defendeu uma mulher adúltera que ia ser apedrejada pelos moralistas da época. Curou a hemorragia de uma mulher da Cananéia sem exigir previamente a adesão dela à fé que pregava. Curou também um servo de um centurião romano sem lhe impor antes a obrigação de repudiar aos deuses pagãos. Jesus fez o bem, sem olhar a quem.

Tenho amigos e amigas que casaram pela segunda vez. Todos por razões muito sérias, que seriam melhor compreendidas por sacerdotes e bispos se estes, como acontecia na Igreja primitiva, tivessem mulher e filhos. (Convém lembrar que Jesus escolheu homens casados para apóstolos, posto que curou a sogra de Pedro).

Contrair matrimônio é algo tão importante que a Igreja fez dele um sacramento. Acontece que, antes de ser uma instituição, o matrimônio é um ato de amor. E há uniões que fracassam, pois todos somos frágeis e pecadores, e nossas opções, sujeitas a chuvas e tempestades, deveriam merecer a misericordiosa compreensão da Igreja.

Tenho amigos e amigas divorciados que reconstruíram suas relações afetivas e se negam a acatar a proibição de comungar.Minha amiga D., três meses depois do matrimônio sufreu com seu marido um grave acidente de trânsito. Ele ficou tetraplégico. Dois anos depois, com a concordância dele, ela contraiu uma nova relação, uma vez que escutou o homem com quem se havia casado na Igreja dizer: "Porque te amo, quero ver-te plenamente realizada como mulher e mãe". Ela e seu novo esposo visitavam periódicamente o homem acidentado, que sobreviveu sete anos e foi o padrinho do primeiro filho do casal. Devo dizer a essa amiga que Deus, que é Amor, não está em comunhão com ela e que, portanto, trate de ficar distante da mesa eucarística, pois a Igreja a considera "uma praga"?

Certa noite, me encontrava na Boca do Acre, em plena selva amazônica, numa celebração em uma comunidade eclesial de base. Dona Raimunda, mãe de seis filhos, cujo marido havia ido para a Transamazônica em busca de trabalho e onde ficou quatro anos sem dar sinais de vida (e ela soube que ele havia constituído outra família lá) - disse na missa, no momento da oração dos fiéis: "Quero agradecer a Deus por haver me dado outro marido, que é um pai bondoso para meus filhos". Dona Raimunda se uniu a outro homem que a ajudava na sobrevivência e na educação dos filhos em uma situação de extrema penúria. Deveria dizer a ela que não se aproximasse da mesa eucarística? Naquele mesmo momento, o Papa Paulo VI, em visita ao Chile, dava a comunhão ao general Pinochet.

Querido papa: leio na primeira Carta de João que "Deus é Amor. Quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele" (4,16). Essas pessoas que citei, e tantas outras que conheço, amam e portanto Deus permanece nelas. Devo advertí-las que não são amadas pela Igreja e que, por isso mesmo, estão proibidas de receber o pão e o vinho transubstanciados no corpo e no sangue de Jesus, o Senhor da compaixão e da misericórdia?

* Frei Betto, frade dominicano. Escritor.

Mundo: Sombras da Inquisição

Hoje é um dia triste para mim. Dói no fundo do meu coração, no âmago de minha fé cristã. O papa Bento XVI, às vésperas de sua primeira viagem à América Latina, faz um gesto que imprime um gosto amargo às boas-vindas: condena o teólogo jesuíta Jon Sobrino, de El Salvador.
Conheço Sobrino de longa data. Estivemos assessorando os bispos latino-americanos em Puebla, em 1979, por ocasião da primeira visita do papa João Paulo II ao nosso Continente. Participamos juntos de muitos eventos, empenhados em nutrir a fé das Comunidades Eclesiais de Base que, hoje, fazem da América Latina a região com o maior número de católicos no mundo.

Sobrino é acusado de, em suas obras teológicas, não dar suficiente ênfase à consciência divina do Jesus histórico. Fica, pois, proibido de dar aulas de teologia, e todos os seus futuros escritos devem ser submetidos à censura vaticana.

O parecer condenatório da comissão da Congregação da Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, parte, sem dúvida, de preconceitos. A leitura atenta das obras de Sobrino revela que, em nenhum momento, ele nega a divindade de Jesus. Nega é o docetismo, heresia já condenada pela Igreja nos primeiros séculos da era cristã, baseada na idéia de que Jesus, de humano, só tinha a aparência, em tudo mais era divino. O que faria da encarnação um embuste e daria asas à fantasia de que, ali na Palestina do século I, o homem Jesus, dotado de onisciência, poderia muito bem ter a antevisão do atual conflito entre palestinos e judeus…

Os evangelhos mostram claramente que Jesus tinha consciência de sua filiação divina. Ao contrário de seus contemporâneos, tratava Javé de modo muito íntimo, carinhoso: Abba, ‘meu pai querido’, uma das raras expressões aramaicas - a língua que Jesus falava - a constar do texto bíblico. Contudo, esses mesmos evangelhos mostram que Jesus, como todos nós, sofreu tentações, teve medo da morte, chorou, experimentou a solidão, pediu ao Pai para, se possível, afastá-lo do cálice de sangue. Ou seja, em tudo foi igual a nós, como afirma Paulo na Carta aos Filipenses, exceto no pecado, pois amava assim como só Deus ama.

Roma, sem dúvida, ainda padece do platonismo impregnado na teologia liberal desde Santo Agostinho. Fala da divindade como se fosse contrária à humanidade. A Criação divina é indivisível. Como diz Paulo, "nele (Deus) vivemos, nos movemos e existimos" (Atos dos Apóstolos 17, 28).

Bem diz Leonardo Boff ao referir-se a Jesus: "Humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo". A nossa humanidade não é a negação da divindade, assim como não o era a de Jesus. A divindade é a plenitude da humanidade e esta, o prenúncio daquela. "Somos da raça divina", afirmou Paulo aos atenienses (Atos dos Apóstolos 17, 28).

Roma, que tanto lida com símbolos, parece desprezar a América Latina ao ignorar que Jon Sobrino vive em El Salvador, cujo arcebispo, dom Oscar Romero, foi assassinado pelas forças de direita ao celebrar missa na catedral, em 1980. No próximo dia 24 comemoram-se 27 anos de seu martírio. Sobrino mora en San Salvador, na mesma casa na qual, em 1989, quatro padres jesuítas, mais a cozinheira e sua filha de 15 anos, foram assassinados pelo Esquadrão da Morte.

Como renovar a Igreja Católica se suas melhores cabeças estão sob a guilhotina de quem enxerga heresia onde há fidelidade do Espírito Santo?: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya, em 1997; Anthony de Mello, em 1998; Reinhard Messner, em 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal, em 2001; Roger Haight, em 2004. Nenhum deles, porém, foi excomungado como apregoam os fundamentalistas católicos.

O que está por trás da censura a Sobrino é a visão latino-americana de um Jesus que não é branco nem tem olhos azuis. Um Jesus indígena, negro, moreno, migrante; Jesus mulher, marginalizado, excluído. Aquele Jesus descrito no capítulo 25 de Mateus: faminto, sedento, maltrapilho, enfermo, peregrino. Jesus que se identifica com os condenados da Terra e dirá a todos que, frente a tanta miséria, se portam como o bom samaritano: "O que vocês fizeram a um dos menores de meus irmãos, a mim o fizeram" (Mateus 25, 40).

* Frei Betto, frade dominicano. Escritor.