19 de abr. de 2007

Indagações a Bento XVI

Frei Betto

Vossa Santidade ressuscitou o que o Concílio Vaticano II havia enterrado: a missa em latim. Uma exigência de monsenhor Lefebvre, arcebispo francês excomungado em 1988 por se recusar a aceitar as inovações conciliares.
Criança, assisti a muitas missas em latim, com o celebrante de costas para os fiéis, segundo o rito tridentino de meu confrade, o papa Pio V, que foi dominicano. Por que permitir a volta do latim? Quantos fiéis dominam este idioma? Jesus não falava latim. Falava aramaico. Talvez um pouco de hebraico. E por viver numa região dominada por Roma, com certeza conhecia alguns vocábulos latinos, como a saudação romana Ave, que se introduziu na oração mais popular do catolicismo, a Ave Maria.
Assim como o grego universalizou-se pelo Mediterrâneo graças às campanhas de Alexandre, o latim estendeu-se na proporção das conquistas do Império Romano. Por esta lógica, não seria mais adequado adotar, hoje, o inglês? Ora, a grande maioria dos fiéis católicos encontra-se, hoje, na América Latina. E não entende grego, latim ou inglês. Exceto poucas palavras, como paróquia, pedra e futebol. Não é bom que participem da missa em língua vernácula?
Considerado o empenho de inculturação da Igreja, não é contraditório voltar o latim à missa? Tenho um amigo, ateu até a medula, que adora freqüentar missas em latim. Para ele, a liturgia reduz-se a um espetáculo. É uma questão de estética, não a ponte comunitária entre o nosso coração sedento e o Transcendente.
Inquieta-me a sua afirmação de que é “uma praga” casar pela segunda vez e proibir os católicos que o fazem de acesso à eucaristia. Os evangelhos revelam que Jesus comungou com pessoas que, vistas de hoje, andavam distantes da moral vaticana. Ele defendeu uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos moralistas da época. Curou o fluxo de sangue de uma mulher fenícia sem, antes, exigir dela adesão à fé que ele propagava. Curou também o servo do centurião romano sem primeiro impor-lhe a condição de repudiar a seus deuses pagãos. Jesus fez o bem sem olhar a quem.
Tenho amigos e amigas que contraíram segundas núpcias. Todos por razões muito sérias, que seriam melhor entendidas por padres e bispos se eles, como na Igreja primitiva, tivessem mulher e filhos. (Convém lembrar que Jesus escolheu homens casados para apóstolos, pois curou a sogra de Pedro).
Contrair matrimônio é algo tão transcendente que a Igreja fez disso um sacramento. Ocorre que, antes de ser uma instituição, o casamento é um ato de amor. E há uniões que fracassam, pois somos todos frágeis e pecadores, e nossas opções, sujeitas a chuvas e trovoadas, deveriam merecer também a misericórdia da Igreja.
Tenho amigos e a amigas divorciados que reconstruíram suas relações afetivas e se recusam a aceitar a proibição de comungar. Minha amiga D., três meses após o casamento, sofreu com o marido um grave acidente de trânsito. Ele ficou tetraplégico. Dois anos depois, com a anuência dele, ela contraiu uma nova relação, pois ouviu do homem com quem se casou na Igreja: “Por te amar, quero-te plenamente realizada como mulher e mãe.” Ela e o novo marido visitavam periodicamente o homem acidentado, que sobreviveu por sete anos e torno-se padrinho do primeiro filho do casal. Devo dizer a essa amiga que Deus, que é Amor, não está em comunhão com ela e, portanto, trate de manter distância da mesa eucarística, pois a Igreja a considera “uma praga”?
Certa noite eu me encontrava em Boca do Acre, em plena selva amazônica, numa celebração de Comunidade Eclesial de Base. Dona Raimunda, mãe de seis filhos, cujo marido havia partido para a Transamazônica em busca de trabalho - onde ficou quatro anos sem dar notícias (e ela soube que, lá, ela constituíra outra família) -, disse na missa, no momento da Oração dos Fiéis: “Quero agradecer a Deus por me ter dado um outro marido que é um pai bondoso para os meus filhos.”
Dona Raimunda se uniu a outro homem que a ajudava na sobrevivência e na educação dos filhos numa situação de extrema penúria. Eu deveria dizer a ela para não se aproximar da mesa eucarística? Naquele momento, o papa João Paulo II, em visita ao Chile, dava comunhão ao general Pinochet.
Querido papa: leio na Primeira Carta de João que “Deus é Amor: aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (I João 4, 16). Essas pessoas que citei, e tantas outras que conheço, amam e, portanto, Deus permanece nelas. Devo adverti-las que não são amadas pela Igreja e, portanto, estão proibidas de receber o pão e o vinho transubstanciados no corpo e no sangue de Jesus, o Senhor da compaixão e da misericórdia?

Dogmáticos X Teologia da Libertação

Para constar nos anais da história, transcrevo abaixo os debates que estão ocorrendo durantes os últimos dias acerca da Teologia da Libertação na América Latina.

CARTA DE DOM PEDRO CASALDÁLIGA


A VERDADE, PILATOS, É…
Em fraterna comunhão total com Jon Sobrino,
teólogo do Deus dos pobres,
companheiro fiel de Jesus de Nazaré,
testemunha dos nossos mártires.

Que é a verdade? Quem tem a verdade? Qual é a política verdadeira? Qual é a verdadeira religião? Essas perguntas, com tom diverso e às vezes provocando desconcerto e indignação, são perguntas universais e de cada dia e não as podemos ignorar, nem na política, nem na religião. A globalização, se por um lado nos amarra ao lucro desalmado, por outro lado nos proporciona espaços novos de diálogo e convivência, na verdade compartilhada.
Nossa Agenda Latinoamericana Mundial, nestes anos de 2007 e 2008, pergunta pela verdadeira democracia e denuncia a falsa política. Em 2007, “Exigimos e fazemos outra democracia”; e, em 2008, “A política morreu, viva a política”.
Aqui, em Nossa América, no meio de ambigüidades, crispações e desencantos, esta-se dando uma virada para a esquerda. Mas, em congressos e publicações, estão-se fazendo as perguntas inevitáveis: O que é a esquerda, o que é a democracia, qual é a verdadeira política, qual é a verdadeira religião, qual é a verdadeira igreja?
Não tem dúvida que caminhamos, apesar das dramáticas estatísticas que o PNUD e outras instituições de opinião nos dão. São 834 milhões de pessoas as que passam fome no mundo e cada ano são 4 milhões mais. Um 40% da população mundial vive na pobreza extrema. Na América Latina são uns 205 milhões de pessoas na pobreza. Na África Sub-saariana são 47 milhões. O economista Luís de Sebastián recorda que “África é pecado de Europa”, a maior dívida atual da Humanidade. O mundo gasta anualmente um trilhão de dólares em armas, quantidade 15 vezes superior à quantidade destinada à ajuda internacional... A desigualdade em nossa aldeia global é uma verdadeira blasfêmia contra a fraternidade universal. Um exemplo: a renda anual das pessoas mais ricas (em média) dos EE UU é de 118.000 dólares; e a renda anual das pessoas mais pobres (em média) de Serra Leoa é de 28 dólares.
Caminha o diálogo ecumênico e inter-religioso, mas ainda nas margens, minoritário ainda. O fenômeno grave e mundial da migração está exigindo respostas e decisões que afetam aos diferentes povos e culturas e religiões. De quem é a verdade? De quem não é?
A Igreja, a Igreja católica, celebra, em Aparecida, (Brasil), neste mês de maio, a V Conferência do Episcopado Latinoamericano e Caribenho. E já se têm levantado vozes, sinceras e dignas de toda participação, cobrando “o que não pode faltar em Aparecida”: a opção pelos pobres, o ecumenismo e o macroecumenismo, a vinculação de fé e política, o cuidado da natureza, a contestação profética ao capitalismo neoliberal, o direito dos povos indígenas e afroamericanos, o protagonismo do laicato, o reconhecimento efetivo da participação da mulher em todas as instancias eclesiais, a corresponsabilidade e a subsidiariedade de toda a Igreja, o estímulo às CEBs, a memória comprometedora dos nossos mártires, a inculturação sincera do Evangelho na teologia, na liturgia, na pastoral, no direito canônico. Em fim, a continuidade, atualizada, da nossa “irrenunciável tradição latinoamericana” que arranca, sobretudo, de Medellín.
O tema do V CELAM é: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele os nossos povos tenham vida. Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. (As discípulas e missionárias, não entrando no enunciado, esperamos que entrem nas decisões da Conferência...). O discipulado e a missão são a vivência concreta e apaixonada do seguimento de Jesus, “na procura do Reino”. O teólogo A. Brighenti assinala que o déficit eclesiológico do Documento de Participação se expressa, sobretudo, no eclipse do Reino de Deus, citado apenas duas vezes em todo o documento. Por que será que se tem tanto medo ao Reino de Deus, que foi a obsessão, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus?
Nessa Conferência do CELAM não está tudo tranqüilo. Com um gesto mais do que suspeito, agora, nas vésperas da Conferência, estourou o processo do nosso querido Jon Sobrino. Muito sintomático, porque um cardeal da Cúria romana já tinha declarado que antes de Aparecida estaria liquidada a Teologia da Libertação. Esse ilustre purpurado terá de reconhecer, imagino, que depois de Aparecida continuará vivo e ativo o Deus dos pobres, e continuará subversivo o Evangelho da libertação; e que infelizmente a fome, a guerra, a injustiça, a marginalização, a corrupção, a cobiça, continuarão a exigir da nossa Igreja o compromisso real ao serviço dos pobres de Deus.
Eu escrevi a Jon Sobrino, recordando-lhe que somos milhões os que o acompanhamos e é, sobretudo, Jesus de Nazaré quem o acompanha. Recordava a Jon aquela décima que escrevi a raiz do martírio de seus companheiros da UCA: “Ya sois la verdad en cruz / y la ciencia en profecía / y es total la compañía, / compañeros de Jesús”. Por tua santa culpa, dizia-lhe a Jon, muitos estamos ouvindo, transpassada de atualidade, a pergunta decisiva de Jesus: “E vocês, quem dizem que Eu sou?” Por que é ao verdadeiro Jesus a quem queremos seguir.
Com desdém prepotente Pilatos pergunta a Jesus o que é a verdade, mas não espera a resposta e o entrega à morte e se lava as mãos. Maxence van der Meersch responde a Pilatos e nos responde a todos: “A verdade, Pilatos, é estar do lado dos pobres”. A religião e a política têm de acolher essa resposta até as últimas conseqüências. Toda a vida de Jesus, aliás, é essa mesma resposta. A opção pelos pobres define toda política e toda religião. Antes era “fora da Igreja não há salvação”; depois, “fora do mundo não há salvação”. Jon Sobrino nos recorda, mais uma vez, que “fora dos pobres não há salvação”. João XXIII advogava por “uma Igreja dos pobres, para que fosse a Igreja de todos”. O certo é que os pobres definem, com sua vida proibida e com sua morte “antes de tempo”, a verdade ou a mentira de uma Sociedade, de uma Igreja. Diz nosso Jon Sobrino: “Quem não saiba explicitamente de Deus, já o terá encontrado se amou ao pobre”; e isso diz repetidamente o Evangelho na palavra e na vida de Jesus, em seu presépio e em seu calvário, nas bem-aventuranças, nas parábolas, no julgamento final...
Irmãos, irmãs, gente querida e tão próxima no mesmo desvelo e na mesma esperança, sigamos. Tentando “fazer a verdade no amor”, como pede o Novo Testamento, em comunhão fraterna e na práxis libertadora. “Com os Pobres da Terra”. Sendo “vidas pelo Reino da Vida”, como apregoávamos na Romaria dos Mártires da Caminhada.
Seja esta pequena circular um grande abraço de compromisso, de gratidão, de esperança invencível, Reino adentro.

Circular 2007
24 de março, Páscoa de São Romero


RESPOSTA DO SR. FELIPE AQUINO DA CANÇÃO NOVA


D. Pedro Casaldáliga,
lamento profundamente o seu artigo A VERDADE, PILATOS, É... onde o Sr. mostra que apesar de já advertido cordialmente pelo Vaticano continua incorrigível, envenenando o povo com a teologia da libertação, que aniquila a verdadeira fé, subverte a salvação soteriológica como disse o então Ratzinger.
Por que será que ele agora é Papa? Deixe-me dizer que é porque o Espírito Santo o escolheu através dos cardeais, de maneira tão rápida... Ou será que os cardeais para o Sr. também são fantoches?
Não, D. Casaldáliga, Cristo conduz a sua Igreja, ou será que não acreditas mais nisso? (Mt 28,20; Jo 16,12-13; 14, 15.16, favor conferir). Se não crês mais nisso, não deverias estar mais nessa Igreja, por coerência. "Quem vos ouve a mim ouve, quem vos rejeita a mim rejeita" (Lc 10,16).
Chega D. Casaldáliga de pessoas como o Sr., que mesmo como bispo emérito, carregado de anos, continua como Boff, Betto, Jon, etc. a discordar da Igreja, a criticar o Papa e tudo mais. Seria mais conveniente e coerente deixar o redil que o Papa conduz e não agitar mais este Rebanho que "o Senhor conquistou com o seu sangue" (At 20,28).
Sinceramente tenho que lhe dizer; o Sr. já agitou muito esta América Latina; por que não vai agora descansar na sua Espanha tão longe de Deus, tão atéia, tão descristianizada; Cristo agradeceria a sua volta para lá para reacender lá, na sua terra, o Cristianismo que agoniza. Tenha agora um pouco de amor a seu povo que agoniza na fé. Disso o Sr. nunca falou nada. Aprovar o aborto, a eutanásia , o casamento de homossexuais, a ordenação de mulheres, etc, para vocês da teologia da libertação não tem nada demais... que horror! É como se Cristo e o Espírito Santo tivessem enganado a Igreja durante 2000 anos.
Não espere não uma mudança do Papa bávaro, Ratzinger, o Espírito Santo o fez Papa para vencer o ateísmo e a ditadura do relativismo religioso e moral que a teologia da libertação encobre e aprova na surdina. Por favor, não descaracterize a viagem do nosso Pastor, do "Joseph de Deus" que vem a nós. Não jogue o povo de novo contra ele e contra a Igreja, mais uma vez como fez duramente com João Paulo II.
D. Casaldáliga, D. Paulo Arns já está descansando embora entre nós, também D. Luciano Mendes, D. Ivo, D. Hipólito...um a um dos que erraram o caminho, o Espírito Santo está retirando do palco. Me desculpe, diante do seu artigo, não pude me calar, para o bem da Igreja e dos seus filhos.

Prof. Felipe Aquino

CONTRA-RESPOSTA AO SR. FELIPE AQUINO POR CLAUDEMIRO NASCIMENTO


ANÁS OU CAIFÁS? NÃO IMPORTA... É FARISEU!

Relutei muito para escrever poucas palavras. Palavras que refletem minha indignação pedagógica como sempre, mas antes de tudo, trata-se de uma indignação evangélica, reinocêntrica. Há algum tempo estou vendo a execração pública daqueles e daquelas que defendem a Teologia da Libertação, bem como os que acreditam na opção preferencial pelos pobres e excluídos. Trata-se da mesma opção de Jesus. Todos sabem quem eram os amigos de Jesus, com quem Jesus andava e com quem se relacionava. Não preciso aqui citar textos do Evangelho para comprar este fato, está lá. Os leprosos, os doentes, os paralíticos, os cegos, os camponeses, as mulheres, os jovens, as prostitutas, entre outros, são todos e todas os preferidos de Deus. Ninguém poderá negar esta verdade histórica. Temo que tentem mudar as palavras do Evangelho daqui em diante, seria no mínimo compreensível em se tratando de tempos escuros que a Igreja de Roma vive.

No entanto, algo me perturba. As palavras contra Dom Pedro Casaldáliga proferidas por aquele que se diz professor, membro da comunidade Canção Nova, Felipe Aquino, foram deveras ofensivas contra um homem santo. Não falo da santidade canônica, mas da santidade de vida, do testemunho, do diálogo, do serviço, do anúncio do Evangelho e da denúncia profética contra as injustiças sociais, entre elas, o latifúndio e o desrespeito aos povos indígenas.

Ao mesmo tempo que me perturbou não assustou-me. Compreendi perfeitamente a nova tentativa de execração contra os bispos e com eles todo o Povo de Deus que construiu uma Igreja do Povo e como disse nosso querido João XXIII, a Igreja dos Pobres. Há tempos, o Anás-Caifás da Canção Nova vem tentando instigar uma guerra demoníaca contra Frei Betto, Leonardo Boff, Jon Sobriño, Carlos Mesters, Clodovis Boff e agora Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Ivo e Dom Adriano Hipólito.

Por que tanto ódio? Por que tanta discórdia num coração que se apresenta ao público na televisão como se fosse O Teólogo, sendo que nem cursou uma disciplina sequer de Teologia? Por que a perseguição contra homens que doaram suas vidas pela causa de Jesus que, em muitos momentos, não é a mesma causa da Igreja de Roma? Considero preocupante o momento em que vivemos.

O fariseu que destilou tal inverdades considera a Teologia da Libertação um veneno. Pergunto: a serviço de quem está este Anás-Caifás? Sei que é a serviço daqueles mesmos que há 2000 anos mandaram prender e matar Jesus na cruz. Mas, hoje, quem são eles? Não tenho dúvidas que o fariseu de plantão se encontra a serviço dos grupos hegemônicos que conseguiram encontrar uma forma poderosa de penetrar na Igreja via movimentos neo-pentecostais que exaltam a Teologia da Prosperidade e o Espírito do Capitalismo. Infiltraram-se nas comunidades para destruírem o ideal do Evangelho e, com isso, restabelecer o retorno a Cristandade Medieval: Sallus ecclesiam non est. É realmente vergonhoso, a elite se utilizar da Igreja para atacar o que mais temiam, a conscientização do povo. Por isso mesmo é que tentam novamente aprofundar o nível de alienação dos católicos hoje.

Sei perfeitamente que não deveríamos responder ao fariseu de plantão. Mas se Jesus perdoou Anás e Caifás em seu tempo por que não perdoaríamos hoje? Não podemos concordar com o fariseu da Canção Nova que se esconde por trás de uma televisão para cumprir seu officium maior: eliminar todas as tendências de libertação que venham afetar seu grupo econômico. O Anás-Caifás de nossos dias se encontra extremamente ligado aos mesmos que ontem mataram Irmã Dorothy, Padre Josimo, Padre Ezequiel, Marçal, Santo Dias, Joílson, entre tantos mártires. É a eles que o Anás-Caifás responde camufladamente, é claro.

A CNBB e os bispos do Brasil, as igrejas-irmãs, todos os homens e mulheres de bem são chamados a dar um basta nisso. Não podemos nos silenciar diante de uma frase como esta: “D. Casaldáliga, D. Paulo Arns já está descansando embora entre nós, também D. Luciano Mendes, D. Ivo, D. Hipólito... um a um dos que erraram o caminho, o Espírito Santo está retirando do palco”. O fariseu fala em nome de quem? Da Igreja do Brasil? De quem? Da Canção Nova? Por mais que discorde das práticas pastorais dos bispos acima citados, o mesmo deveria ter o bom senso da alteridade e respeitar as decisões da Igreja do Brasil que foram coletivamente decididas entre todos os bispos.

Ao contrário do Anás-Caifás de plantão não pude me calar, para o bem do Reino, que está acima da Igreja que é feita por mãos humanas. Espero ver a indignação evangélica dos bispos, dos padres e do Povo de Deus que se encontram em nossas comunidades invadidas pela “praga” farisaica que todos sabemos qual é.

Do irmão da caminhada

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação pela Unicamp. Doutorando em Educação pela UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás – UEG.
E-mail: claugnas@terra.com.br


RESPOSTA DO SR. FELIPE AQUINO A CLAUDEMIRO NASCIMENTO


Claudemiro,


D.Pedro insinuou que o Papa e a Curia Romana agem como Pilatos, e voce acha que nós temos de ficar calados?... Até quando ele pensa que pode ofender o Papa e a Santa Sé?
Antes de tudo quero dizer que a minha Carta a D. Pedro foi exclusiva para ele; não a coloquei no Portal da Canção Nova, nem no meu blog e nem na minha página na internet; não a divulguei nem pela Rádio e nem pela TV Canção Nova. Lamento alguém ter agido de maneira anti-ética e a ter divulgado. Não foi uma Carta Aberta. Se fosse esta a intenção ela seria mais explicativa. Houve infelizmente uma violação de correspondência.
D. Pedro me respondeu em duas linhas me dizendo apenas que fica feliz por haver na Igreja diversidade de pensamentos.
A Canção Nova não tem nada a ver com isso; e ninguém lá tem responsabilidade por isso; portanto seria injusto e desleal querer partir para acusações à CN. A iniciativa foi somente minha.
Já que infelizmente a carta veio a público, contra a minha vontade, quero dar algumas explicações. Conheci D. Luciano, conheço D. Paulo e D. Pedro, e não deixo de reconhecer os seus méritos e o valor de cada um; e minha intenção não foi de ofende-los; mas apenas dizer que sempre discordei profundamente do caminho que tomaram, dando o apoio que sempre deram à teologia da libertação (com o desagrado do Vaticano).
Quis lamentar não terem colocado todo o potencial e luta que vivem e viveram em outra direção, numa catequese mais espiritual. É apenas isso.
Quando eu disse que “erraram o caminho” e que o Espírito Santo os tirou do palco, não foi com maldade ou com a intenção de ofendê-los ou de dizer que desejava a sua morte; apenas quis dizer - e nada mais - que graças a Deus deixaram de emprestar sua voz em defesa da teologia da libertação, que eu considero a pior coisa que aconteceu na Igreja aqui nos últimos anos, pois esvaziou a fé, politizou-a; deixou o povo `a mingua da verdadeira catequese, esqueceu da moral, abandonou o sagrado, e forçou o povo a buscar tudo isso nas seitas e igrejas protestantes.
O pregador do Papa, frei Cantalemessa, disse certa vez que que a TL fez uma opção preferencial pelos pobres, mas estes fizeram uma opção preferencial pelas seitas, porque ficaram sem Deus. Os jovens e muitos adultos não sabem o que são os Sacramentos, os Mandamentos, os pecados capitais, o Credo, nada... Durante anos ensinaram-lhes apenas que o único pecado era o social, o social, o social,...
Não fosse o advento da Renovação Carismática (ação do Espírito Santo em todo o mundo!) a devolver ao povo o sagrado e a Palavra de Deus, e trazer o povo de volta para a Igreja (isto é inegável), acho que sucumbiríamos.
O então Cardeal Ratzinger, hoje Papa, em 1984 disse que "a teologia da libertação é uma heresia singular" (“Eu vos explico o que é a Teologia da Libertação, em TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, editora Cléofas, SP); eu fiquei assustado quando eu li esta carta do homem que era o Prefeito da Congregação da Fé.
Como não dar um peso enorme a essas palavras que vêm de um homem que foi o braço direito do Papa, e agora Papa? Se o Magistério da Igreja afirma que a TL é uma “heresia singular”, o que fazer, senão combate-la?
Fiz questão de me aprofundar no assunto, li muitos livros, ouvi Bispos e constatei que era mesmo verdade. Fiquei horrorizado com as posições (imorais) de adeptos da TL, como frei Betto, e a posição herética de frei Boff no livro IGREJA CARISMA E PODER (Vozes); questionando a perenidade dos Dogmas e a Instituição divina da Igreja.
Sei que há pessoas "heróicas" , mas que erraram o caminho; "de boas intenções o inferno está cheio", diz o povo. Em matéria de fé e de doutrina não basta ter heroísmo, é preciso obedecer a Igreja e seu Sagrado Magistério.
Mais uma vez digo que reconheço as lutas árduas dos Bispos ligados à TL, mas lamento que tenham seguido este caminho, repito, condenado pela Igreja. Nada mais.
Não podemos disfarçar e escamotear a verdade; as ações do Papa João Paulo II atestaram isso: Por que ele dividiu a arquidiocese de S.Paulo em 4 no tempo de D.Paulo? Por que ele levou D.Luciano para Mariana e não para uma grande capital? Como Presidente da CNBB por tantos anos, em SP esperavam que D.Luciano fosse a cardeal; não foi; por que? Por que o Papa não nomeou bispos comprometidos com a TL? Ora, é fácil fazer uma leitura de todos esses fatos.
Ora, nunca ninguém neste mundo, durante 2000 anos, fez tanta caridade e defendeu tanto os fracos e oprimidos (asilos, creches, sanatórios, hospitais, escolas, etc., etc., etc.), como a Igreja, e ela nunca precisou de "métodos especiais", inspirados no marxismo, para promover o pobre. Quem promoveu tanto os fracos como os Santos? Mas lhes deram Deus acima de tudo, e nunca estimularam ações fora da lei (invasões de terra, e outras coisas). João Paulo II disse aos bispos do Brasil em 1996 que "o povo tem muito mais fome de Deus do que de pão". A caridade de Cristo não pode envolver luta de classes e desrespeito às leis. É crime incentivar movimentos que agem fora da lei como o MST, que nem coragem tem de se legalizar, afim de poder conseguir as benesses do governo Lula sem poder ser pego nas malhas da lei.
Segue duas respostas: do Pe. José Antônio e do Pe. Geraldo, ambos da Diocese de Mariana.

Brasília, 9 de abril de 2007

Prof. Aquino,
Li seu comentário sobre o artigo de Dom Pedro Casaldáliga A Verdade, Pilatos, é... Não imaginava que seu fundamentalismo e sua fúria contra a teologia da libertação e seus teólogos chegassem a tanto. Tão pouco poderia supor que trouxesse sementes de xenofobia em sem coração. Sim, porque propor a dom Pedro que volte para sua pátria de origem é, no mínimo, sinal de xenofobia. Esse como os demais sentimentos expressos em sua resposta não coadunam, em absoluto, com o ser cristão. Sua defesa da fé cristã e da Igreja nos passa a imagem de um cristão modelar, ilibado, portanto, não lhe caberiam tais sentimentos.
Que o senhor faça opção por uma eclesiologia alienada e alienante, alimentada por uma cristologia, da mesma forma, desencarnada e a-histórica, a gente compreende e aceita. Agora, desqualificar com linguagem arrogante, xenófoba, fundamentalista, homens que fazem e fizeram de sua vida, tal como Cristo, um aniquilamento em favor dos pobres e excluídos, é imoral, antiético, anticristão. O amor deles pela Igreja de Cristo é de tal profundidade que ultrapassou sua capacidade de compreendê-los. Talvez isso o tenha deixado confuso, perturbado, levando-o a escrever o que escreveu.
Sua resposta, prof. Aquino, revelou seu desequilíbrio diante do plural e diferente que marcam não só a sociedade como também a Igreja nela inserida. Mais ainda. Transpirou ódio contra homens que são referência para a Igreja do Brasil e cuja vida é admirada por todos que sonham com uma Igreja servidora dos pobres. O senhor tem ciúmes por não ser capaz de dar semelhante testemunho da fé?
Ah, se o senhor conhecesse esses homens!.... Mas, fique tranqüilo. A grandeza deles, sua honra, seus méritos, não serão afetados por suas palavras. Tanto os que caminham conosco, dom Pedro e dom Paulo, quanto os que, merecidamente, participam da Glória do Pai, dom Luciano e dom Hipólito (para ficar apenas nos que foram citados em seu artigo) já perdoaram seu desvario. A santidade deles é infinitamente maior que seu fundamentalismo arrogante e preconceituoso. Esta é sua sorte: o coração deles é grande o suficiente para perdoar os míopes na fé.
Como o senhor está bastante desinformado sobre a biografia dos que afirma terem "errado o caminho", envio, anexos, alguns depoimentos e testemunhos acerca da vida e da obra de dom Luciano com quem convivi 18 anos na diocese primaz de Minas Gerais. Sinto, portanto, o dever imperioso de dizer-lhe que, ao ofender dom Luciano, o senhor ofendeu toda a Arquidiocese de Mariana e a Igreja do Brasil.
Ao terminar, faço minhas as palavras de dom Demétrio Valentini, bispo de Jales (SP):
"A morte permitiu também que D. Luciano usasse da mesma delicadeza que sempre teve com as autoridades eclesiais, que nem sempre compreenderam sua grandeza de ânimo. Completados 75 anos, já tinha apresentado ao Papa sua carta de renúncia. Pois bem, a morte de D. Luciano livrou a Igreja de um constrangimento crucial: dispensar os serviços de uma pessoa tão indispensável como D. Luciano! Deus mesmo se encarregou de aceitar, não sua renúncia, mas sua própria vida. Agora, o povo está disposto a dispensar a Igreja de outro constrangimento: canonizar logo D. Luciano. Pois todos já temos completa certeza, a mesma do centurião ao pé da cruz: Verdadeiramente, este homem foi um santo!"
Igualmente, faço minha a afirmação de Cândido Mendes ao discursar minutos antes do sepultamento de seu irmão cuja vida e obra jamais se apagarão de nossa memória:
"Não sei se a melhor forma de falar de Dom Luciano é: 'Enfim, descansou'. Descansou coisa nenhuma! Dom Luciano, necessariamente em Deus, vai continuar, não na facilidade do apenas merecer a vida eterna. Ele já está fazendo muito barulho na comunhão dos santos no que efetivamente representa esta condição.
Também não me digam que temos um santinho lá no céu. Por favor, Dom Luciano não é, primeiro, nenhum diminutivo, a não ser o diminutivo carinho. Em segundo lugar, o que quero salientar é que o que Dom Luciano nos dá, definitivamente, é a alegria do céu trazida para a terra. Dom Luciano não é um santinho lá. Ele é a presença invasora, permanente, da graça e de Deus entre nós".

Com votos de feliz páscoa,

Pe. Geraldo Martins
Assessor da CNBB – Comunicação e Informática
http://www.arqmariana.com.br/Pe_Geraldo_Dias/2007/Geraldo_09_abril_07.htm


Carta a Felipe Aquino
Sr. Aquino;
Tenho certeza absoluta de que você não conheceu dom Luciano e não conhece dom Paulo Evaristo, dom Pedro Casaldáliga e outros pastores que critica.
Quem conhece não teria a coragem de escrever o que você escreveu.
Convivi por mais de 15 anos com dom Luciano. Sou testemunha do seu amor incondicional à Igreja, a Jesus Cristo, aos pobres e sofredores, aos presidiários, aos enfermos. Sou testemunha das noites passadas em claro, das viagens de ônibus, da presença nos lugares mais simples. Sempre mostrou ao povo um Deus mãe, como sempre enfrentou com coragem profética os que exploram e oprimem.
Já com câncer, pouco antes de ser internado pela última vez, se juntou ao povo que lutava por energia elétrica mais barata, para enfrentar os soldados que atacavam aquela gente simples a cavalo, com armas e cachorros.
Se você conhecesse um por cento do que fez e foi dom Luciano, não teria a petulância e a falta de respeito de dizer que o Espírito Santo o tirou do palco.
Isso dói lá no fundo do coração, porque é um insulto ao próprio Deus, é pisotear a memória de alguém que deixou uma vida de conforto, no seio de uma família abastada, para viver pobre e pelos pequenos. É espezinhar a honra de alguém que é venerado por tantos e tantos que o veneram.
É pena que você não tenha tido a honra de conhecê-lo, de saborear da sua sabedoria e santidade, da sua sensibilidade e coragem profética.
Você também não conhece dom Paulo. Não sabe do seu sofrimento, da sua coragem, dos riscos que correu durante o tempo da ditadura, para defender torturados e injustiçados. Ou você faz parte dos torturadores? Ou você é da elite que sempre pisou e explorou o povo brasileiro?
Você não conhece dom Pedro, que deixou um país europeu, que abriu mão de qualquer conforto para se embrenhar no interior mais esquecido do Brasil, numa região onde padres e bispos se negam a ir, para ser pastor e enfrentar os donos do poder e do dinheiro. Que viu morrer um companheiro, quando a intenção era matá-lo, justamente quando defendiam uma mulher marginalizada e injustiçada.
Perdão, mas essas pessoas falam muito mais de Jesus Cristo do que você e até mesmo que nosso querido papa. São sinais e encarnação do Jesus simples, que era boa notícia para os pequenos e sofredores, e uma pedra no sapato para os grandes e opressores.
É pena que a diocese de Mariana tenha aberto as portas para receber nos próximos dias um grupo de evangelizadores da Canção Nova. Esse grupo não poderia ser bem-vindo numa Igreja onde seu pastor é considerado como alguém que errou o caminho. Um grupo que tem alguém capaz de dizer que "João Paulo II escondeu D. Luciano em Mariana".
Pelo menos de minha parte, vocês não merecem nossa acolhida.
Já dei meu parecer contra a vinda do grupo a Barbacena, onde trabalho, e vou encaminhar meu repúdio a Viçosa, onde vão se apresentar.
Que Deus o perdoe.

Pe. José Antonio de Oliveira

Entrevista com Leonardo Boff

Na entrevista que concedeu com exclusividade para a IHU On-Line, o teólogo Leonardo Boff Sobrino pensa a tarefa da teologia a partir das vítimas e do povo crucificado, "o que exige da Igreja uma clara opção pela vida destes todos. Essa conversão custa muito àqueles estratos da instituição que, de certa forma, se fossilizaram em seu status quo". Renomado teólogo brasileiro, Leonardo Boff foi um dos criadores da Teologia da Libertação e, em 1984, em razão de suas teses a ela ligadas e apresentadas no livro Igreja: carisma e poder – ensaios de eclesiologia militante (3. ed. Petrópolis: Vozes, 1982) foi condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano. Deixou, então, a Ordem dos Freis Franciscanos e desde 1993, é professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, entre os quais citamos Ética da Vida (Rio de Janeiro: Sextante, 2006) e Virtudes para outro mundo possível II: convivência, respeito e tolerância (Petrópolis: Vozes, 2006). Boff escreveu um depoimento sobre as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, publicado na edição especial de natal da IHU On-Line, número 209, de 18 de dezembro de 2006. Eis a entrevista de Leonardo Boff à IHU On-Line, por e-mail.

IHU On-Line - A recente notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre duas obras de Jon Sobrino coloca novamente em pauta a Teologia da Libertação. Por que motivo esta teologia, que alguns chegam a considerar defunta, continua provocando tanta inquietação?

Leonardo Boff
- Esta teologia está viva em todas as Igrejas que tomaram a sério a opção pelos pobres, contra a pobreza, e em favor da vida e da liberdade. O Fórum Social da Teologia da Libertação, celebrado uma semana antes do último Fórum Social Mundial, em Porto Alegre[1], trouxe 300 representantes de todos os continentes e mostrou a vitalidade desta teologia. A notificação contra Jon Sobrino[2], um dos mais significativos teólogos da libertação, mostra que Roma está reagindo porque, no meu modo de ver, está perdendo a batalha contra a Teologia da Libertação. Os dois documentos, um de 1984 e o outro de 1986, não conseguiram abafar esta teologia. Como ela nasceu ouvindo o grito dos oprimidos e hoje este grito aumentou e virou clamor, ela tem todas as razões para continuar viva. Hoje não apenas os pobres gritam, como também gritam as águas, as florestas, os animais e a própria Terra sob a agressão sistemática do modo de produção e consumo globalizado. Assim, surgiu uma vigorosa ecoteologia da libertação, nascida na América Latina e assumida em muitas igrejas e universidades do primeiro mundo. Jon é incômodo à ideologia vigente no Vaticano, cujo objetivo é articular a Igreja Católica com os poderes emergentes. Ele, Sobrino, pensa a tarefa da teologia a partir das vítimas e do povo crucificado, o que exige da Igreja uma clara opção pela vida destes todos. Essa conversão custa muito àqueles estratos da instituição que, de certa forma, se fossilizaram em seu status quo.

IHU On-Line - Uma das grandes dificuldades da ortodoxia católica com respeito à Teologia da Libertação é a afirmação de uma nova hermenêutica que envolve uma ortopraxis. Jon Sobrino fala em hermenêutica da práxis. Para ele, não há como compreender Jesus fora da prática de seu seguimento. Qual o alcance dessa reflexão teológica e em que medida ela provoca uma mudança na reflexão cristológica em curso?

Leonardo Boff - A teologia mesmo tradicional sempre afirmou que a missão da teologia não se esgota na simples compreensão da fé, mas deve sempre pensar a fé informada pela caridade que leva à prática. De mais a mais não é dizendo "Senhor, Senhor"[3] e fazendo cristologia que estamos sendo fiéis à mensagem de Cristo, mas "fazendo a vontade do Pai" que significa uma prática. Em outras palavras, o que salva de fato não é a ortodoxia, mas a ortopraxia, não as prédicas, mas as práticas. Na América Latina esta exigência de prática se chama "seguimento de Jesus", que implica valorizar sua prática libertadora, escutar sua mensagem especialmente aquela que dá centralidade aos pobres (serão nossos juízes definitivos, segundo Mateus, 25[4]) e compartilhar de seu destino que pode ir da maledicência, passando pela tortura, até a morte. Não é sem razão que a única Igreja hoje que possui mártires desde leigos, religiosos(as), padres e até bispos como Dom Romero[5] de El Salvador e Dom Angelelli[6] da Argentina, é a Igreja da libertação. Jon Sobrino mesmo é um sobrevivente do fuzilamento de toda a sua comunidade jesuítica de El Salvador, 6 confrades, além da cozinheira e sua filha de 15 anos. Salvou-se porque nessa noite estava fora de casa[7]. Toda esta temática que envolve tensões e conflitos não agrada Roma, que sempre busca composições para manter uma paz que é aparente e uma harmonia que é duvidosa.
IHU On-Line - Na recente notificação sobre as obras de Jon Sobrino há um questionamento aos pressupostos metodológicos utilizados pelo teólogo de El Salvador, em particular a idéia da Igreja dos pobres como lugar teológico fundamental. Como situar a centralidade da questão dos pobres na Teologia da Libertação?

Leonardo Boff - Há uma diferença fundamental entre o método convencional de se fazer teologia nos centros metropolitanos de teologia e no Vaticano e o nosso da América Latina. Essa diferença ficou clara na recente Exortação Apostólica Sacramento da Caridade, do atual Papa Bento XVI. Esse documento com mais de cem páginas se estrutura em três partes: a primeira, a Eucaristia objeto de fé; a segunda, a Eucaristia, objeto de celebração; e a terceira, a Eucaristia objeto de vivência. Curiosamente, nesta última parte o documento entra na realidade conflitiva do mundo atual, da fome, das guerras e das ameaças ecológicas. Mas isso nada tem a ver com as duas primeiras partes. Portanto, parte-se de cima para baixo, da fé, da tradição e da celebração litúrgica. Só depois se derivam conseqüências. É uma teologia das conseqüências. Nós, da América Latina, inclusive os documentos oficiais da Igreja latino-americana, como Medellin[8] (1968), Puebla[9] (1979) e Santo Domingo[10] (1992), partimos da última parte, quer dizer, da realidade. Esta não vem apenas referida, mas analisada com os instrumentos das ciências sociais, históricas, antropológicas, ecológicas e pedagógicas. Isso para evitar a mera relação de fatos sem discernir as inter-relações entre eles e suas causalidades. Procuram-se as estruturas que funcionam na base destes fatos e que produzem as contradições. Só depois invocamos a Escritura, a Tradição e o Magistério para iluminar, criticar e ressaltar pontos centrais da realidade que deve ser assumida pela Igreja, no caso, pelas Igrejas. Essa virada metodológica é de difícil aceitação por parte do Vaticano e também das teologias progressistas européias e norte-americanas. Antes de tudo, porque a maioria não sabe fazer uma análise consistente da realidade e depois incorporaria outros olhos, com os quais se lê a realidade e os textos fundadores da fé. O método é mais que método. É uma verdadeira conversão pessoal e institucional. Quando partimos da realidade, encontramos, escandalosamente à vista, os pobres e os oprimidos. Escutamos seus gritos, vemos suas chagas. E aí a atitude básica é aquela de Jesus: miserior super turbas[11]. E sentimos a urgência de nos solidarizar, aliviar suas cruzes e colaborar para que saiam desta anti-realidade. Operar isso é obra das Igrejas da libertação e da reflexão que as acompanha, que é a teologia e a pedagogia de libertação.

IHU On-Line - Ainda na notificação sobre as obras de Jon Sobrino há uma inquietação sobre a ênfase dada pelo autor no Jesus histórico, bem como na sua relacionalidade. Na visão de Sobrino, torna-se problemática a absolutização absoluta de Cristo, ou seja, o esquecimento da dupla relacionalidade de Jesus: com o reino de Deus e o Deus do reino. Está havendo um certo risco de cristomonismo, na tendência em curso de questionamento do "reinocentrismo da Teologia da Libertação e o que isso significa para a Igreja na América Latina?

Leonardo Boff - O risco teológico mais antigo da Igreja Romana é o cristomonismo, quer dizer, a ditadura de Cristo na Igreja e no mistério da salvação. Em primeiro lugar há que se afirmar que Jesus é Filho de Deus e não simplesmente Deus, o que remete para o Pai, que na relação com o Filho faz proceder o Sopro, que é o Espírito. Portanto, a inteira Trindade está presente na história e no processo de salvação e libertação. O conceito mais englobante e ligado à prédiga de Jesus é a categoria Reino que envolve toda a criação, as sociedades humanas e as pessoas para culminar no Reino da Trindade. Dar centralidade ao Reino é sermos fiéis ao Jesus histórico, que não se preocupou com a Igreja, mas com o Reino e, ao mesmo tempo, considerarmos que nada está fora do Reino, categoria globalizadora de todas as instâncias do real. Jon Sobrino tem enfatizado que a construção do Reino se faz sempre contra o Anti-Reino, que é uma energia de oposição e anti-crística que encontra base na realidade e foi ela quem assassinou Jesus Cristo e os mártires de toda a história. A categoria Reino, bem como a categoria de Povo de Deus, não são bem vistas pela teologia institucional de Roma porque relativizam a Igreja e fazem dela apenas Sacramento do Reino, mediação do Reino, pálida presença do Reino no mundo, mas nunca o próprio Reino identificado com a Igreja. Essa humildade de ser apenas a vela e não a chama é difícil para uma Igreja que se auto-finalizou e se considera como uma espécie de galáxia englobando todos os sistemas e subsistemas.

IHU On-Line - Quais são os desafios do pluralismo religioso hoje, para o fazer teológico na América Latina?

Leonardo Boff - O desafio primeiro é reconhecer o fato do pluralismo religioso. Isso não constitui uma patologia ou decadência, mas um dado positivo de realidade. É mais ou menos como a biodiversidade. Terrível seria se, na natureza, houvesse apenas pinus eliotis ou baratas. A riqueza está na biodiversidade ecológica analogamente ao valor da diversidade religiosa. Cada expressão religiosa revela algo do Mistério de Deus e nenhuma pode pretender possuir qualquer monopólio, nem da revelação nem dos meios de salvação. A graça e o propósito salvador de Deus perpassam toda a realidade e são oferecidos a todos. O segundo desafio se prende ao valor que damos a esta diversidade. Já o disse: são formas diferentes de expressar o Mistério, e por isso devemos aprender uns dos outros, nos enriquecermos com as trocas, os diálogos e as buscas de convergências, em vista do serviço espiritual dos povos, alimentando neles a chama sagrada da presença de Deus que está na história e no coração de todos. Temos ainda muito que andar para realizarmos esta tarefa. Mas, pelo menos, não temos ainda guerras de religião e entre fundamentalismos que já estão surgindo entre nós.

IHU On-Line - Em recente artigo, o teólogo Clodovis Boff[12] assinalou que a Conferência de Aparecida não poderá ser a repetição, ainda que atualizada, das Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, mas deverá, sim, inovar em sua forma e acento, face aos novos sinais dos tempos. Será o caso? Por quê?
Leonardo Boff - Eu creio que Aparecida deve consagrar a caminhada do magistério das Igrejas latino-americanas, pois não ganhou ainda sustentabilidade e reconhecimento oficial, especialmente por parte do Vaticano. Ai há pontos inegociáveis, como a libertação (Medellin), a opção pelos pobres (Puebla) e a inculturação (Santo Domingo). Mas não basta patinar sobre o mesmo chão. Importa ver quais são os sinais dos tempos hoje e com referência a eles pronunciar uma palavra adequada que tenha o significado de uma boa nova. Os cristãos têm direito de pedir isso a seus pastores. Creio que continua de pé ainda o clamor dos pobres, as desigualdades e injustiças, mas valorizando o que eles estão fazendo em seus movimentos, partidos e articulações de trabalhadores, índios, negros, mulheres. Esses sujeitos históricos se cansaram das elites e resolveram votar em si mesmos e em representantes que vêm de seu meio, assim no Brasil, na Bolívia, no Equador e em outros lugares. Depois, há a urgência que nos vêm do fato de que a Terra vai encontrar um novo equilíbrio aumentando seu aquecimento em até 3-4 graus Celsius, o que pode implicar a criação de milhões e milhões de vítimas e uma fantástica dizimação de seres vivos, emigrações numerosíssimas, destruição de cidades marítimas e outras conseqüências ligadas às mudanças climáticas, gerando fome e sede para milhões por causa da destruição das safras. Todas estas questões estão na ordem do dia das políticas mundiais e deveriam estar na agenda pastoral de nossas Igrejas. Dai a importância de Aparecida estar atenta aos novos sinais dos tempos. Se não estiver atenta aos tempos, como vai ler os sinais dos tempos?

IHU On-Line - Quais são as perspectivas para a 5ª Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida, depois da notificatio sobre a obra de Jon Sobrino?

Leonardo Boff - Creio que não vai ter muita influência negativa. A condenação de escritos de Jon Sobrino, no meu modo de ver, e isso é acenado por ele mesmo, em sua carta ao Geral de sua Ordem, se deve ao furor condemnandi da Teologia da Libertação, furor presente no grupo latino-americano de Cardeais e altos funcionários da Cúria Romana. Não é mistério a oposição sistemática que fazem o Card. Alfonso López Trujillo[13], Dario Castrillon Hoyos[14] e Lozano Barragan[15] e, não em último lugar, Dom Karl Joseph Romer[16], ex-bispo auxiliar do Rio de Janeiro e agora em Roma, sempre zeloso em identificar erros e heresias possíveis em bispos e em teólogos. Eles estão para se aposentar. Quiseram fazer um agrado ao Papa, limpando o terreno para sua vinda ao Brasil, condenando a Jon Sobrino. Batem nele, mas pensam na Igreja latino-americana que querem reenquadrar no processo persistente de romanização que foi iniciada por João Paulo II e está sendo levada avante pelo atual papa.

IHU On-Line - Quais são as possibilidades e os limites da criação de novos espaços para o exercício da reflexão teológica latino-americana, para uma teologia cada vez mais pública?

Leonardo Boff - Estimo que os leigos devem mais e mais assumir a tarefa da teologia e mais ainda, de salvaguardar a herança de Jesus, contra a mediocrização a que está sendo submetida por uma política vaticana mais carnal que espiritual, mais centrada no poder que no carisma, mais eclesiocêntrica do que reinocêntrica. Eles, como leigos, não estão ao alcance das instituições de vigilância dos órgãos doutrinais do Vaticano. E a maioria está dentro das universidades do Estado e por isso gozam da proteção da liberdade acadêmica e das leis, pois o Vaticano passa por cima até dos direitos mais comezinhos quando quer salvaguardar seus interesses. Houve épocas no começo da Igreja nas quais quase todos os bispos viraram hereges nestorianos. Foram os leigos que salvaram a ortodoxia cristológica e mariológica. Talvez hoje estejamos enfrentando situação semelhante.
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[1] Aqui o entrevistado se refere ao I Fórum Mundial de Teologia e Libertação realizado em Porto Alegre de 21 a 25-01-2005. O II Fórum Mundial de Teologia e Libertação aconteceu em Nairóbi, Quênia, de 16 a 19-01-2007. Sobre esse evento, confira as entrevistas Fórum Mundial de Teologia e Libertação: espiritualidade para um outro mundo possível, concedida pelo frei capuchinho Luiz Carlos Susin ao site do IHU em 15-01-2007, e II Fórum Mundial de Teologia e Libertação, publicada em 09-02-2007. (Nota da IHU On-Line)
[2] Jon Sobrino: nascido em Barcelona, na Espanha, no dia 27 de dezembro de 1938, entrou para a Companhia de Jesus em 1956 e foi ordenado sacerdote em 1969. Desde 1957, pertence à Província da América Central, residindo habitualmente na cidade de San Salvador, em El Salvador, país da América Central, que ele adotou como sua pátria. Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de St. Louis (Estados Unidos), em 1963, Jon Sobrino obteve o master em Engenharia na mesma Universidade. Sua formação teológica ocorreu no contexto do espírito do Concílio Vaticano II, a realização e aplicação do Vaticano II e da II Conferência Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano, em Medellín, em 1968. Doutorou-se em Teologia em 1975, na Hochschule Sankt Georgen de Frankfurt (Alemanha) com a tese "Significado de la cruz y resurrección de Jesús en las cristologias sistemáticas de W.Pannenberg y J. Moltmann". É doutor honoris causa pela Universidade de Lovain, na Bélgica (1989), e pela Universidade de Santa Clara, na Califórnia (1989). Atualmente, divide seu tempo entre as atividades de professor de Teologia da Universidade Centroamericana, de responsável pelo Centro de Pastoral Dom Oscar Romero, de diretor da Revista Latinoamericana de Teologia e do Informativo "Cartas a las Iglesias", além de ser membro do comitê editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium. A respeito de Sobrino, confira a ampla repercussão dada pelo site do IHU em suas Notícias Diárias, bem como o artigo A hermenêutica da ressurreição em Jon Sobrino, publicada na editoria Teologia Pública, escrita pela teóloga uruguaia Ana Formoso na edição 213 da IHU On-Line, de 28-03-2007. (Nota da IHU On-Line)
[3] Confira Mateus 7, 21 onde se lê: "Jesus disse: Nem todo aquele que diz: 'Senhor, Senhor', entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu". (Nota da IHU On-Line)
[4] Aqui o entrevistado faz referência ao texto de Mateus 25,31-46. (Nota da IHU On-Line)
[5] Dom Oscar Romero (1917–1980): arcebispo católico, foi assassinado enquanto oficiava missa, na tarde de 24 de março de 1980. Sua dedicação aos pobres, numa época de efervescência social e guerra, converteu-o em mártir. Sobre Dom Romero, confira a notícia El Salvador prepara-se para comemorar martírio de dom Romero, publicada no site do IHU em 17-03-2007. (Nota da IHU On-Line)
[6] D. Enrique Angelelli (1923-1976): assassinado pela ditadura militar por sua defesa da causa dos empobrecidos. Na década de 1970, Angelelli era a figura mais progressista da Igreja argentina. Confira no site do IHU de 05-08-2006, editoria Notícias diárias a notícia Depois de 30 anos de silêncio, Igreja da Argentina homenageia Angelelli, morto pela ditadura. (Nota da IHU On-Line)
[7] Esse episódio aconteceu no dia 15 de novembro de 1988. O jesuíta Ignácio Ellacuría, juntamente com mais quatro companheiros jesuítas e duas senhoras, em San Salvador, El Salvador, foram barbaramente assassinados por terem conseguido fazer da Universidade Centro Americana, confiada à Companhia de Jesus, uma importante força na luta pela promoção da justiça social. Ellacuría era reitor da Universidade Centro Americana. Sobrino, naquele momento, estava na Tailândia, participando de um seminário. (Nota da IHU On-Line)
[8] Documento de Medellín: Em 1968, na esteira do Concílio Vaticano II e da encíclica Populorum Progressio, realiza-se, na cidade de Medellín, Colômbia, a II Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano que dá origem ao importante documento que passou a ser chamado o Documento de Medellín. Nele se expressa a clara opção pelos pobres da Igreja Latino-Americana. A conferência foi aberta pessoalmente pelo papa Paulo VI. Era a primeira vez que um papa visitava a América Latina. (Nota da IHU On-Line).
[9] A Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Puebla, México, no período de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979 e reafirmou a opção pelos pobres feita em Medellin. Foi convocada pelo Papa Paulo VI, confirmada por João Paulo I e inaugurada pelo Papa João Paulo II. O tema desta conferência foi "Evangelização no presente e no futuro da América Latina". (Nota da IHU On-Line)
[10] A Quarta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizou-se em Santo Domingo no período de 12 a 28 de outubro de 1992. A Conferência foi convocada e inaugurada pelo Papa João Paulo II. A convocação colocou em evidência o quinto centenário da evangelização da América. O Papa propôs à Conferência os temas "Nova evangelização, a promoção humana e a cultura cristã". (Nota da IHU On-Line)
[11] Confira Mateus 9, 36: "Jesus, vendo as multidões, teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não têm pastor". (Nota da IHU On-Line)
[12] Clodovis Boff: teólogo e filósofo brasileiro, doutor em Teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica. Sua última obra é Introdução à Mariologia. Petrópolis: Vozes, 2004. (Nota da IHU On-Line)
[13] Alfonso López Trujillo: cardeal colombiano, presidente do Pontifício Conselho da Família do Vaticano. (Nota da IHU On-Line)
[14] Darío Castrillón Hoyos: cardeal colombiano, foi Prefeito da Congregação para o Clero antes de D. Cláudio Hummes. É ex-secretário-geral e ex-presidente do CELAM (Nota da IHU On-Line)
[15] Javier Lozano Barragán: cardeal mexicano, presidente do Pontifício Conselho para a Pastoral dos Agentes Sanitários da Cúria Romana, o que na prática equivale a dizer que é um "ministro da saúde". (Nota da IHU On-Line)
[16] Dom Karl Joseph Romer: cardeal suíço, secretário do Pontifício Conselho para a Família. Foi auxiliar de D. Eugenio Sales na Arquidiocese do Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line) (Fonte: http://www.unisinos.br/ihu)

As grandes incertezas na Igreja atual*

José Comblin
Teólogo, sacerdote, reside na Paraíba, Brasil

Síntese: A Igreja ainda não tomou conhecimento da grande revolução dos anos 70. Não entendeu a grande aspiração para a liberdade e os passos que foram dados. Essa revolução inclui uma crítica de todas as instituições por serem repressivas e obstáculos à liberdade. A crítica das instituições atinge também a Igreja e está na base das crises internas da Igreja desde os anos 70. Doravante a distinção entre Igreja e a instituição é inevitável. A instituição é tudo o que foi acrescentado à mensagem de Jesus. Ela varia e ainda pode e deve variar. A nova situação, provocada pela conquista do mundo pelo sistema capitalista mundial, obriga a mudar de atitude frente ao mundo. A Igreja parece estar muda e desorientada. O Papa poderá dar sinais proféticos claros neste mundo neoliberal? Continuará pensando que a função da Igreja é oferecer uma doutrina social?
Abstract: The Church still does not seem to have become aware of the great revolution that happened in the 70s. It has not understood the great aspiration for freedom and the steps that were taken then. This revolution includes a critique of all institutions as being repressive and obstacles to freedom. This critique also reaches the Church and is at the basis of its internal crisis since the 70s. From now on, the distinction between Church and institution is inevitable. The institution is everything that was added to Jesus’ message. It varies and still can and should vary. The new situation caused by the conquest of the world by the world capitalist system forces the Church to change its attitude towards the world. The Church seems to be silent and confused. Will the Pope be able to give clear prophetic signs in this neo-liberal world? Will he continue to think that the Church’s function is to offer a social doctrine?

1. O fato básico
O fato fundamental é que Igreja ainda não percebeu ou não reconheceu ou não quis aceitar a grande revolução da sociedade ocidental que se manifestou nos anos 70 do século passado e se estendeu rapidamente ao mundo inteiro. O que acontece atualmente na China e nos ”tigres asiáticos” é altamente significativo. Povos que tinham uma longa tradição de civilização adotam com entusiasmo e quase que com fúria a nova sociedade ocidental nascida da revolução dos anos 70.
A Igreja vive ainda na ilusão do mundo do tempo de Vaticano II, como se não tivesse havido uma revolução tão radical como a Revolução Francesa, logo depois do Concílio. Quem hoje em dia lê certos textos conciliares, por exemplo, da Gaudium et Spes, não pode não ficar impressionado pela ingenuidade da concepção do mundo que se fazia naquele tempo. O Vaticano II falou para um mundo que hoje já não existe mais. Entrou na história, mas não fornece orientações para o mundo de hoje.
A partir dos anos 70 começou o desmoronamento da cristandade. Nos tempos do Vaticano II alguns apressados tinham proclamado o fim da cristandade. Mas ainda não era o fim. Pelo contrário, o Concílio viveu num ambiente de neocristandade. Poucos anos depois, começou a grande revolução da sociedade ocidental que repercutiu também dentro da Igreja como um furacão. Muitos católicos separaram-se da instituição, inclusive muitos sacerdotes e muitos religiosos. Os conservadores intransigentes atribuíram esse fato ao Concílio, mas o Concílio não tinha nada a ver com isso. O que aconteceu foi a grande revolução total da sociedade ocidental: revolução na ciência, na economia, na política, na cultura; revolução total e profunda com conseqüências de uma revolução na ética e na religião.
Esta revolução abalou todas as instituições: a família, a empresa, a escola, a universidade, o Estado e, naturalmente, as instituições religiosas. Antigos poderes desapareceram e apareceram novos poderes. Agora sim, estamos chegando ao fim da cristandade. Mas ainda não é o fim da consciência de cristandade dentro da Igreja. Pelo contrário, toda a instituição continua funcionando como se nada tivesse mudado e como se a Igreja ainda tivesse o mesmo poder social de sempre. Há movimentos poderosos que acham que podem refazer de novo uma neocristandade como aconteceu depois da Revolução Francesa. Pura ilusão. Faltam os elementos sociais para recomeçar esta operação.
Porém, esta consciência de cristandade numa situação de esvaziamento dessa cristandade gera um sentimento bastante generalizado de mal-estar. Compare-se a psicologia dos católicos e mesmo do clero com a psicologia dos evangélicos! Entre os evangélicos prevalece um sentimento de euforia, de confiança, de vitória. Os evangélicos sentem-se vitoriosos e os católicos têm a consciência dos derrotados que procuram manter o passado sem muita convicção.
Ora, o fim da cristandade significa que a evangelização e a pastoral já não podem ser feitas a partir de uma posição de poder.
Desde Constantino, a pastoral se fez a partir da posição de poder dos bispos e do clero. Eles ensinam, administram os sacramentos, governam as comunidades. Cada pároco é papa na sua paróquia: ele é infalível, com plena jurisdição. Os leigos são objeto de obrigações: os leigos devem ir para a paróquia, devem obedecer e, sobretudo, sustentar financeiramente uma instituição na qual não têm poder nenhum. E o poder do clero apresenta-se como se fosse o poder de Deus. A paróquia é a imagem do poder. O pároco é enviado pelo bispo sem nenhuma consulta aos leigos. Ele manda, não porque é reconhecido pelo seu povo como a pessoa mais capacitada, mas simplesmente por imposição do bispo. De repente, chega e pode mandar em tudo. O único limite a seu poder é a resistência do povo, a indiferença da maioria e uma atitude de defesa, tão freqüente entre os católicos que faz com que somente uma pequena minoria participe da paróquia.
Quanto à evangelização do mundo, ela se fez quase sempre por imposição. A evangelização acompanhou a conquista pelos poderes da cristandade do Ocidente, por guerras de religião ou conquista de colonização. A América Latina é o exemplo mais completo dessa evangelização pela conquista e conversão forçada. Houve exceções. Houve missionários que protestaram contra a conquista. Mas eles não tiveram nenhuma influência. Os seus escritos não foram publicados antes do século XIX, quando os impérios de Espanha e Portugal já tinham desaparecido. Os povos conquistados receberam o cristianismo pela pressão do poder político e militar associado à missão.
Hoje em dia, a Igreja não tem mais poder ou somente fica com algumas ilusões de poder. Já não pode evangelizar a partir do poder. Isto deixa a Igreja desconcertada, com um sentimento de impotência. Eu mesmo ouvi um núncio dizendo que sem apoio do poder civil a Igreja não consegue evangelizar. Os que ficam apegados à tradição ficam desconcertados. Acostumados à idéia de que o padre é uma pessoa de poder, de repente ficam desorientados, quando percebem que ninguém mais aceita seu poder, salvo algumas senhoras piedosas que cuidam da igreja paroquial. Monsenhor Expedito, de São Paulo do Potengi, contava as palavras do bispo de Natal que o fez pároco. Dizia o bispo: “Expedito, nunca se esqueça de que você é autoridade. Procure ter boas relações com o prefeito, com o delegado e com o juiz. Quanto ao resto, faça o que puder”.
O problema entre todos os problemas, e que está na base de todos, é a necessidade de evangelizar sem poder, a partir de uma relação de igualdade: um ser humano com outro ser humano, como modo de relacionamento entre pessoas iguais e não num relacionamento de superior e inferior.
É o drama de muitos jovens sacerdotes que foram formados para o poder num ambiente de poder e descobrem, de repente, que não existe mais esse poder. Mas não foram preparados para um relacionamento de pessoa a pessoa, como irmãos iguais.
No linguajar do Vaticano II os leigos foram promovidos. Desde então foram publicados muitos documentos excelentes sobre os leigos na Igreja. Os documentos da CNBB são particularmente excelentes e mostram a qualidade dos assessores que assistem os bispos. Porém, na prática, nada mudou. Os leigos não têm mais poder, mais autonomia do que antes. Tudo ficou nas palavras, porque nada mudou na instituição. Durante o pontificado anterior foi publicado um Catecismo católico. Qual foi a participação do povo de Deus na preparação desse catecismo? Nenhuma. Nem se sabia quem eram as pessoas que estavam elaborando esse catecismo. Foi publicado um novo Código de Direito Canônico. Qual foi a participação do povo cristão na redação desse código? Nenhuma. Os leigos não valem nada; na prática, não têm o Espírito Santo. Eles são ignorantes e, como ignorantes, devem aceitar tudo sem reclamar. Antes disso houve reformas litúrgicas. O povo cristão foi consultado? Não. O povo é ignorante, os leigos são ignorantes. Tudo isso, como se o Espírito de Deus estivesse somente na hierarquia. O que dizem os documentos fica nas palavras. Na prática, tudo continua como sempre: um relacionamento de poder e uma pastoral de poder. É isso que deve mudar, se quisermos evangelizar este mundo novo em que ora estamos mergulhados.
Pois estamos num mundo novo. A grande maioria dos batizados já nem conhece o Pai-nosso e ignora tudo da Igreja. A vida é um corre-corre, correndo de uma atividade para outra, para sobreviver. A desorganização social é tal que as pessoas vivem como indivíduos solitários, isolados, sem confiança nos outros, sem relação humana firme: às vezes, nem sequer entre esposos. A cristandade tradicional, com seu modo de viver, sobrevive em algumas tradicionais famílias “mineiras”. Sempre haverá alguns representantes do passado. Porém, eles não exercem mais influência na sociedade e constituem refúgios eclesiásticos. Para os 5 milhões de habitantes dos condomínios de São Paulo que significa a Igreja? Para os 3 milhões de favelados, que significa a Igreja? Qual é seu poder? O que vale são os missionários que conseguiram formar pequenas comunidades vivas a partir de uma relação de irmãos, relação de igualdade, sem invocar nenhum poder eclesiástico.
Este é o desafio prático ainda não assumido coletivamente pela Igreja: reconhecer que não se pode mais evangelizar a partir de uma posição de poder, mas apenas numa relação de seres humanos com seres humanos iguais. Na teoria, ninguém contesta, mas na prática, tudo continua como se a Igreja ainda tivesse na sociedade o poder que teve até os anos 70 do século XX.

2. A grande revolução cultural
Existe uma abundante e excelente literatura sobre a revolução da economia e da política depois dos anos 70. Houve uma transferência de poderes com repercussões imensas na vida diária das pessoas como na vida social. Queria apenas aqui chamar a atenção para a revolução cultural, ou, melhor dito, para alguns de seus aspetos.
Um elemento importante dessa revolução foi, e ainda é, a crítica sistemática de todas as instituições, denunciadas como máquinas de poder e de repressão da liberdade e da personalidade individual. A primeira instituição criticada foi a família, e está claro que a família tradicional se desintegra. Mesmo nos Estados Unidos onde a ortodoxia capitalista sempre tinha postulado que as relações de competitividade e de busca da maior vantagem na vida pública[1] não afetariam a vida privada das famílias, os mais conservadores, como Francis Fukuyama, devem reconhecer que a família está em plena crise. Quem provoca a crise são os jovens que se sentem oprimidos pela cultura antiquada de seus pais, cujos valores eles já não reconhecem.
A segunda crise tem por objeto todo o sistema de educação, desde a universidade até a escola de ensino básico. O sistema foi denunciado como opressor, tanto pela maneira de impor e exercer autoridade sobre os jovens, como pelo vazio de conteúdo que quer impor, e não prepara os jovens para a vida real. Esta crítica provocou, de fato, um enfraquecimento do sistema escolar e educativo no mundo inteiro. Em todos os países se reconhece uma diminuição dos resultados do sistema escolar, cada vez mais improdutivo, de tal modo que a escola aparece como escola de analfabetismo. As estatísticas oficiais são enganosas, porque fornecem índices elevados de alfabetização, mas não referem o número de analfabetos funcionais que são incapazes de ler um texto e de entender seu conteúdo.
A crise do Estado é geral. Ela provoca um desprestígio crescente da democracia e a indiferença política dos jovens, de modo geral. A crise política é objeto de comentários permanentes, desde os anos 70. Na América Latina, a luta contra as ditaduras militares escondeu o que estava sucedendo nos paises dominantes do Ocidente: o desprestígio crescente do Estado. Quando se voltou ao regime democrático, muitos tiveram ilusões, porque não sabiam o que estava acontecendo com a democracia.
Todas as outras instituições foram vítimas da mesma crítica e ficaram desprestigiadas: decadência dos partidos políticos, dos sindicatos, das associações de bairro e de quase todos os tipos de associação. Muitas entraram no caminho da corrupção, a ponto de a corrupção atingir também os próprios clubes de futebol e todo o sistema empresarial. Falta repressão à corrupção, que se tornou a nova instituição social.
A crítica a todas as instituições abriu a porta para uma nova institucionalização. Abriu a porta para as entidades econômicas e para a prioridade da economia na sociedade. Hoje em dia, cada vez mais, o poder pertence às multinacionais, que se concentram cada vez mais e adquirem cada vez mais poder. Em nome da liberdade do mercado, vão adquirindo cada vez mais poder, constituindo uma pequena rede de megaempresas que impõem as suas leis. Conseguem colocar a seu serviço o Estado, o sistema de educação – começando pelas universidades –, o trabalho científico, e corromper, comprar ou subordinar, cada vez mais, toda a rede de instituições privadas. Dirigem todo o sistema de informação e de comunicação, todo o sistema de publicações e de transmissão de mensagens. Transformam a cultura em comércio, isto é, numa fonte de capital. Tudo isso foi muito bem analisado. Aproveitam o vazio de instituições fortes e se transformam num só poder total, que consegue dominar a vida, sem que a maioria dos habitantes possa dar-se conta. Graças à manipulação da mídia conseguem fazer com que os cidadãos se transformem em consumidores, aumentando assim seu poder.
Acontece algo semelhante ao que aconteceu com a Revolução Francesa. Esta suprimiu todos os sistemas de constrangimento do comércio e de circulação de mercadorias e abriu o caminho para o capitalismo. A revolução cultural da atualidade abriu o caminho para uma nova forma de capitalismo, muito mais poderosa, porque invade todos os setores da vida e pode contar com um imenso progresso tecnológico e científico. Como lutar contra os abusos deste novo poder? Será tarefa de um século.

3. A Igreja frente à revolução cultural
Globalmente, durante o pontificado de João Paulo II, podemos dizer que a Igreja tomou uma atitude negativa com relação à revolução cultural. Assim tinha acontecido também depois da Revolução Francesa. Claro está que há aspetos negativos na nova cultura: ela destrói valores que tiveram muita importância no passado, que eram parte do patrimônio da cristandade.
No entanto, há também valores positivos, e, sobretudo, valores definitivos contra os quais é em vão lutar. Sem dúvida, há, desde os anos 70, um despertar da liberdade pessoal, da vontade de conquistar mais liberdade, uma denúncia e rejeição de todas as formas de repressão. Ainda que apareçam novas formas de dependência, a consciência já não é a mesma.
Esta consciência de liberdade despertou, sobretudo, nas mulheres. O que mais mudou foi justamente a consciência das mulheres, que querem ser reconhecidas como seres humanos completos e autênticos, com o mesmo valor dos homens. Pela primeira vez foi uma revolução dirigida por mulheres para a emancipação das mulheres. Mas, há também um despertar de consciência de liberdade nos jovens. Há uma vontade de viver plenamente a vida, ainda que esta vontade possa ser contaminada pelo consumismo.
Há uma vontade de viver plenamente a vida com o desenvolvimento máximo de todas as capacidades. Para muitos, o cristianismo perdeu valor porque ensina uma maneira penitencial de viver a vida. O cristianismo tem fama de ser uma força de repressão de todos os movimentos vitais, um freio à libertação humana.
É preciso reconhecer que, na cristandade, o clero ensinava aos cristãos que a vida cristã era uma vida de sacrifícios, que era necessário não somente aceitar as mortificações que Deus mandava, mas também acrescentar outras, facultativas, para aumentar os méritos. Havia o que Jean Delumeau chamou de pastoral do medo,[2] que consistia em manter vivo um sentimento permanente de pecado, acompanhado pelo medo da condenação final e, por isso, da necessidade de obras de expiação. As mulheres andavam vestidas de preto e cobrindo o corpo inteiro. A revolução cultural libertou dessas coisas que não pertencem ao Evangelho, mas foram introduzidas na cristandade na Idade Média.
Depois da revolução cultural, milhões de homens e, sobretudo, de mulheres saíram da Igreja, não por motivos de doutrina ou de crenças, mas porque não aceitavam mais o estilo penitencial da espiritualidade que se ensinava. Deixaram de ter medo do inferno e dos castigos de Deus. O que rejeitam na Igreja não são os dogmas, menos ainda o Evangelho, mas a austeridade de vida, a preocupação constante pelo pecado e o medo que se infundia na consciência do pecador. Os jovens fogem disso como da peste. Não querem nem saber. Os movimentos integristas, como o Opus Dei e os Legionários de Cristo, devem praticar uma lavagem cerebral radical para que seus membros aceitem essa volta ao passado.
Cristo não veio criar um movimento penitencial, mas anunciar a alegria da chegada do reino de Deus. O centro do cristianismo é a proclamação da ressurreição, que é promessa de vida e de vida abundante.
Precisamos mudar o eixo fundamental da espiritualidade. Durante a cristandade ocidental o eixo foi a Sexta-feira Santa, a maior festa celebrada pelo povo. A espiritualidade estava concentrada ao redor da expiação pelos pecados. A própria eucaristia foi entendida durante toda essa época como oração de sufrágio pelas almas do purgatório. No centro da figura de Jesus estão a paixão e a cruz, então os grandes símbolos da cristandade. Isto penetrou profundamente na mente e no coração do povo católico, e ainda foi acentuado pelas Igrejas da Reforma.
Doravante, o eixo da espiritualidade deverá ser a ressurreição, ou seja, a vitória da vida, apesar da morte e do pecado. Ainda não sabemos qual será o eixo da espiritualidade do novo Papa. Não sabemos se entrará na mentalidade da nova cultura ou se procurará restaurar a espiritualidade medieval.
Por outro lado, com relação ao nascimento de um novo poder, o poder econômico das multinacionais, do sistema financeiro mundial e da formação de uma nova burguesia, o magistério mostrou-se bastante tímido e reservado. Ninguém se sentiu atingido por suas condenações muito vagas. Deu-se, e ainda se dá, a impressão de que a Igreja não quer entrar em conflito com os novos poderes e prefere uma aliança com eles, embora de modo discreto, para não escandalizar os fiéis. Acha que poderá acomodar-se à economia, embora rejeite o conjunto da nova cultura.

4. A crítica da instituição eclesiástica
A crítica das instituições não podia deixar de lado as instituições eclesiásticas. A crítica das instituições que se manifesta claramente desde os anos 70 obriga-nos a fazer uma distinção que não tinha sido feita antes dessa data. Ela ainda está ausente no Concílio Vaticano II. Quando este fala da Igreja, fala ao mesmo tempo da instituição católica romana e da Igreja como mistério de Deus, como realização presente do reino de Deus. Não faz a distinção. Fala como se todo o aparelho institucionalizado e burocratizado da instituição eclesiástica pertencesse à essência da Igreja. Ora, tanto a história, como as ciências humanas, especialmente a sociologia, mostram que todo esse aparelho é uma construção histórica, que variou bastante no decorrer dos tempos e que foi definido a partir de empréstimos feitos a outras instituições que pertenciam às culturas nas quais a cristandade tinha entrado. A instituição mudou e ainda pode mudar, inclusive deve mudar, porque já não constitui uma ajuda para a evangelização, mas, muitas vezes, um obstáculo.
Começaram a manifestar-se movimentos críticos, sobretudo a partir dos anos 70. Antes dessa data, prevaleceu a idéia de que o Concílio Vaticano II tinha trazido as respostas às preocupações do povo de Deus. A partir dos anos 70 a revista Concilium mudou sua orientação: fez-se cada vez mais crítica, sendo porta-voz do pensamento de vários movimentos e de muitas pessoas na Igreja católica em contato com a nova cultura.
A essas críticas feitas à instituição a hierarquia respondeu até agora com um silêncio completo. Ela ignora ou finge ignorar essas reivindicações.
Diante da crítica à instituição, João Paulo II respondeu voltando à grande disciplina. A resposta dele foi restaurar tradições, usos, costumes, devoções anteriores ao Vaticano II e que tinham perdido prestígio ou caído em desuso. O Papa quis restaurar o sacramento da penitência por confissão auricular ao sacerdote, embora essa disciplina tivesse sido introduzida já numa fase bem adiantada da Idade Média e tivesse sido ignorada na Igreja durante quase 12 séculos. Tudo isso, num ambiente de rigor na doutrina tradicional, na liturgia e em toda a organização institucional, declarando terminada a fase da experimentação.
Desta maneira, João Paulo II reiterou o que aconteceu no século XIX depois da Revolução Francesa. A Igreja restaurou o passado a partir da classe dos camponeses. Muitos missionários dedicaram-se a evangelizar o campo e os camponeses ainda eram a grande maioria da população. No meio rural foi possível reconstituir um fragmento de cristandade, ainda que sempre em conflito com a sociedade dominante. A atitude da instituição para com a modernidade foi sempre mais de rejeição, até atingir um ponto culminante no pontificado de Pio X.
Esta nova cristandade não podia deixar de ser frágil, ainda que não se soubesse naquele tempo. Não se podia prever a imensa migração do campo para a cidade. No entanto, era previsível que era perigoso concentrar a Igreja numa classe social que começava a diminuir, e alguns católicos avisaram, porque tinham visto o perigo que havia em rejeitar toda a modernidade. Havia nela valores positivos, que era perigoso atacar. Durante todo o século XIX a atitude dominante foi de rejeição. O preço foi a perda de toda a classe intelectual e das pessoas que tinham estudado, e a perda da classe operária. Quando, finalmente, com João XXIII a Igreja aceitou os princípios da declaração dos direitos humanos, já era tarde demais. A imensa maioria dos católicos já tinha saído.
Até os anos 50 do século XX, a América Latina viveu na dependência cultural da Europa. Foi assimilando a luta contra a modernidade nos seus diversos aspetos, e uma pequena classe operária nasceu quase sem presença da Igreja. Também na América Latina a classe letrada se afastou da Igreja. As mulheres permaneceram fiéis, porque elas não podiam estudar. Quando se lhes abriu a porta das universidades, elas reagiram como os homens. Acharam a Igreja uma instituição respeitável e poderosa entre a classe dirigente, mas sem valor para sua vida pessoal e sem relevância para seu pensamento. Embora menos profunda do que na Europa, a separação entre a Igreja e a classe letrada ainda tem repercussões fortes no mundo universitário e intelectual atual: predomina uma atitude de indiferença. Poucos e poucas acham que poderiam encontrar na Igreja algo importante para sua vida. São cristãos fiéis à mensagem evangélica, mas sem contato com a instituição.
Hoje em dia, a estratégia que consiste em condenar a nova cultura não tem mais o apoio de uma classe de camponeses, porque os camponeses foram para as cidades e os que ainda ficam estão em contato permanente com a cultura urbana mediante a TV. João Paulo II proclamou que os agentes da nova evangelização seriam os chamados movimentos, isto é: Opus Dei, Legionários de Cristo, Focolarinos, Comunhão e Libertação e outros semelhantes. Estes constituiriam uma tropa de choque, mas sem massa para seguir. É uma base muito estreita para fundar uma nova neocristandade.
Quais são as críticas que se fazem à instituição?
Em primeiro lugar, há a crítica da burocratização. Em todos os níveis, o clero ficou burocratizado. A agenda dos padres, dos bispos e da Cúria Romana está cheia de reuniões, seminários, congressos, programação, relatórios, documentos, assessoria, projetos. Naturalmente, tudo isso fica no papel. A burocracia enuncia tudo o que deveria ser feito, mas sem nunca dizer quem vai fazer. Por isso, tudo fica no papel. Isto não importa para a burocracia. Pois a burocracia procura atender e agradar a seu chefe, muito mais do que aos “clientes”. O que importa com toda essa atividade feita de palavras é que se digam coisas que agradem ao chefe. É preciso esconder os problemas, fazer demonstração de otimismo, mostrar que os problemas estão sendo resolvidos. Qual é a finalidade de qualquer burocracia? Sobreviver, crescer, garantir seu futuro e aumentar seu poder. Uma burocracia tem sua finalidade em si mesma. O que acontece lá fora, no mundo, no meio dos homens e das mulheres, não importa muito. Basta evitar que as críticas cheguem até os ouvidos do chefe. Cresce na Igreja a impressão de que tudo o que o clero faz, desde a Cúria Romana até a casa paroquial, é totalmente irrelevante e artificial, e permanece longe da realidade humana. A burocracia constituiu-se num corpo autônomo e independente. A burocracia eclesiástica tornou-se seu próprio fim.
Um publicista francês do século XX, Charles Maurras, fundador do movimento direitista chamado L’Action Française, era agnóstico. Mas um dia declarou que felicitava a Igreja romana, que tinha sido capaz de purificar o cristianismo do perigoso fermento do Evangelho. Na prática, há casos em que, de fato, a burocracia eclesiástica serve para evitar que o fermento perigoso do Evangelho possa penetrar.
Em segundo lugar, apesar da concessão feita no novo Código de Direito Canônico, a Igreja mantém nas cidades a estrutura obsoleta da paróquia. O clero está sendo preparado para atuar dentro do quadro paroquial. Os próprios religiosos estão integrados em paróquias. Ora, estruturalmente, a paróquia é feita para conservar, ajudar, promover os que participam do culto, as pessoas que pertencem à pequena minoria dos que já estão no templo. A paróquia vive em função do templo, ainda que diga o contrário. Em lugar de preparar os cristãos para evangelizar a sociedade, ela se fecha sobre a minoria fiel às instituições do passado.
A paróquia não assume as fábricas nem os supermercados, nem as escolas, nem os colégios, nem as universidades, nem os hospitais, as instituições esportivas, culturais, de diversão, nem os meios de comunicação da cidade. Ela está organizada ao redor dos sacramentos e das festas litúrgicas. Nem sequer consegue organizar a catequese dos adultos, menos ainda sua formação missionária. Ela concentra as energias dos fiéis no próprio templo, em si própria. A Igreja está claramente a serviço de si própria. Não se pode negar as excelentes intenções de muitos párocos, toda a imaginação para fazer uma paróquia missionária. O problema é estrutural. Já foi denunciado por Santo Tomás de Aquino. Depois de 8 séculos ainda não se deu a solução. A conseqüência é um povo passivo, incapaz de dar testemunho na sociedade, fechado em si mesmo, numa espiritualidade de pura interioridade.
No entanto, na América Latina, houve uma experiência básica que podia ter dado uma resposta. Foi a experiência das CEBs. A experiência continua, mas não foi adotada oficialmente pela Igreja. Não se lhe deu nenhum estatuto oficial, e as CEBs permanecem como algo estranho e frágil, porque qualquer pároco ou qualquer bispo pode desfazer um trabalho fecundo de dezenas de anos.
As CEBs que ainda subsistem permanecem subordinadas às paróquias, na dependência dos párocos. Acontece com elas o que aconteceu com a Ação Católica em muitos paises: a subordinação à paróquia é uma esterilização de fato. Os movimentos de Ação Católica, ou não se submeteram à ordem paroquial e foram condenados como no caso da JUC, ou se integraram e foram absorvidos, ou permaneceram como grupos pequenos semiclandestinos. As comunidades devem adotar o programa paroquial e acabam dedicando-se primeiramente ao culto e às festas religiosas, embora conservando o discurso das origens. O modelo inicial de comunidades inseridas no mundo popular e comprometidas com o mundo popular foi desfigurado. O novo clero não o adota. No entanto, a autonomia das pequenas comunidades integradas numa pastoral da cidade e não da paróquia é o único caminho. Não adianta determinar que doravante a paróquia seja missionária. Estruturalmente, ela não pode ser missionária, porque não está organizada em função da cidade, mas em função de seu próprio crescimento.
Em terceiro lugar, a crítica que se faz à Igreja como instituição é que ela mantém um sistema de poder obsoleto e ineficaz. É o famoso problema do clero. O clero monopoliza todos os poderes e está mandando de modo absoluto, unicamente porque foi enviado pelo bispo sem que os leigos pudessem intervir em nada. A cada 5 anos eles têm que se subordinar aos humores do novo pároco. A razão é administrativa. O bispo faz as nomeações em função dos problemas do clero e não em função de sua capacidade evangelizadora. O padre luta para conquistar uma autoridade que se vai perdendo.
O padre não foi preparado para estar no meio do mundo, dando testemunho do Evangelho. Foi preparado para administrar uma paróquia conforme as tradições religiosas. Alguns conseguem ir além da formação recebida, mas a maioria fica com o que aprendeu no seminário.
Já escrevi muito sobre o problema do clero. Não vou repetir o que já disse muitas vezes. Também não creio que o novo Papa tenha a menor disposição para mudar alguma coisa no clero e na estrutura de poder na Igreja.
Há muitos leigos e leigas, que trabalham efetivamente como missionários e missionárias, geralmente sem mandato, sem reconhecimento oficial, sem poder, e gratuitamente. São heróis que conseguem tempo e energia e se dedicam à missão com muita generosidade e gratuidade. Haveria muito mais homens e mulheres, se se lhes fizesse um apelo, oferecendo-lhes reconhecimento, confiança, autonomia, porque muitos não querem ser simplesmente auxiliares do padre. Quantos milhares de pastores evangélicos surgiram no Brasil ultimamente que se dedicam à pregação, à missão, com entusiasmo, sacrifício e dedicação! São mais de 100.000. Muitos teriam podido ser missionários na Igreja católica, se se lhes tivesse oferecido essa missão, confiando neles.
No futuro, os ministros serão reconhecidos e identificados pelas comunidades, graças às suas qualidades de profeta e a seus dons espirituais. Em cada cidade haverá um núcleo de pessoas permanentes, conhecedoras dos diversos aspetos da vida da cidade, que poderão aconselhar e organizar atividades públicas comuns, reunindo a grande comunidade.
Uma quarta crítica tem por objeto a estratégia, que consiste em educar os cristãos quando são crianças. A catequese se dirige às crianças. Desde o século XIX a pastoral da Igreja concentrou-se nas crianças. Por isso se deu prioridade absoluta às escolas católicas e à catequese infantil. Desta maneira, os adultos cristãos parecem infantilizados. Do cristianismo eles sabem o que lhes foi ensinado quando eram crianças. Nunca aprenderam o que significa ser cristão como trabalhador, cidadão, pai ou mãe de família dentro das circunstâncias e dos obstáculos reais da vida.
O resultado é que os meninos educados na catequese católica se tornam evangélicos quando ficam adultos, porque a mensagem dos evangélicos é para os adultos e não para as crianças. A pastoral concentrada nas crianças não tem eficiência na nova sociedade. Já acabou fracassando no século XX.

5. O Evangelho e a instituição
A tarefa principal da teologia vai consistir em identificar o que é do Evangelho, o que foi proposto por Jesus e em que constituiu a instituição atual, em função de desenvolvimentos históricos. Jesus nunca pensou na Igreja na sua forma atual. Isto não quer dizer que o que existe agora seja bom ou mau. Mas muitos elementos se devem à influência de movimentos culturais e de religiões não-cristãs, porque as religiões não-cristãs tiveram uma influência profunda durante toda a cristandade.
No mesmo sentido escreveu Hans Küng, quando propôs que se destacasse o núcleo básico do cristianismo. Esse núcleo somente pode ser o que nos vem do próprio Jesus.
Durante 1000 anos, sobretudo desde o século XIV, a teologia foi apologética e dedicou-se a demonstrar a identidade entre todo o aparelho institucional da Igreja, os dogmas, a moral, a liturgia, a organização eclesiástica com o Evangelho. Mostrou a continuidade. Procurou demonstrar primeiro que tudo estava no Evangelho e, quando os estudos históricos tornaram essa posição insustentável, defendeu o tema da homogeneidade, ou seja, do desenvolvimento homogêneo. A teologia oficial procurou mostrar que todo o sistema institucional tinha por finalidade e por efeito um melhor entendimento do Evangelho. Teria sido um esclarecimento do Evangelho que ainda era confuso.
Ora, todas essas explicações são puramente gratuitas. Serviram para manter a continuidade na cristandade. Mas hoje em dia devemos constatar que o Evangelho é mais claro do que todo o sistema que se construiu sobre ele com a pretensão de explicitá-lo melhor.
Esta teologia apologética esteve a serviço da hierarquia, para defender o status quo da cristandade, mas impediu que a Igreja desse uma resposta adequada aos desafios da modernidade. Essa apologética, que prevaleceu até o Concílio Vaticano II, ainda não desapareceu, sobretudo nas inumeráveis faculdades de teologia situadas em Roma. Para a evangelização do mundo e mesmo do povo cristão, essa teologia foi estéril. Mais ainda: está condenada a ser estéril. Não vai converter nenhum pagão, nem sequer os católicos. Foi a base dos catecismos, mas os catecismos não formaram cristãos adultos e maduros.
Essa apologética forneceu o material que permitiu que o magistério desse resposta negativa aos gritos que surgiram do meio da cristandade durante 1000 anos, pedindo reforma. Em cada geração houve católicos que não puderam aceitar a instituição, porque viam nela uma contradição com o Evangelho. Esse debate deu origem às chamadas “heresias”, que, no fundo, eram todas formas de contestação da instituição. Houve muitos cismas e muita repressão, mas nunca houve aceitação unânime das posições defendidas pela teologia oficial.
Uma vez que nossa tarefa será anunciar o Evangelho a todos os seres humanos sem posição de força, sem poder contar com uma imposição, essa teologia está completamente fora de foco. Não conseguiremos com ela conquistar novos membros para a instituição. Evangelizar é provocar a iluminação dos corações e das mentes, não pela força de uma instituição, mas pela revelação divina que se manifestou em Jesus.
O princípio da nova teologia é que a Igreja está subordinada ao Evangelho e não o Evangelho subordinado à Igreja. Durante a cristandade o poder eclesiástico sustentou que o sistema institucional era a interpretação fiel e a expressão atual do Evangelho. Na prática, a teologia serviu para demonstrar que a Bíblia apoiava o sistema eclesiástico católico, para subordinar o Evangelho à instituição. Agora, a tarefa é diferente. Trata-se de descobrir o que é realmente revelação divina, separando-a de todos os elementos que foram acrescentados.
Tudo o que foi acrescentado teve um papel histórico, positivo ou negativo. Muitos elementos entraram por influência de outras religiões, ou por razões políticas ou culturais do tempo. Podem ter tido em efeito positivo ou negativo e provavelmente algo de positivo e algo de negativo. O problema é que as circunstâncias mudaram e muitos acréscimos que foram úteis no passado aparecem como incompreensíveis e inassimiláveis na atualidade
Quando falamos do Evangelho, queremos pensar naquilo que vem realmente de Jesus. Há nos próprios evangelhos acréscimos que procedem das comunidades, e há dentro da cultura judaica em que Jesus se expressa vários elementos de mitologia. Não podemos conservar essas mitologias dentro do núcleo central.
Claro está que o povo cristão precisa de instituições: precisa de crenças definidas, de ritos e celebrações, de comunidades e de organização das comunidades. Precisa de ministérios organizados. Podemos inclusive pensar que precisa de mitologia. O desafio é que essas instituições ajudem efetivamente a introduzir o Evangelho na vida. Não podem ser consideradas como definitivas, irreformáveis, mas devem deixar lugar para outras expressões institucionais quando os tempos mudaram.
Da mesma maneira os cristãos precisam de sinais de identificação. Precisam realizar gestos significativos, pronunciar palavras significativas, o que lhes permite renovar a consciência de pertencer a um povo, o povo de Deus. Todos os povos têm sinais de identidade e o povo de Deus também. Ora, esses sinais devem ser compreensíveis e ter um conteúdo, não ser puramente gestos mecânicos.
Na realidade, as grandes linhas de uma reforma da instituição já foram explicitadas muitas vezes nos últimos 30 anos. O problema é a vontade de mudança. Toda burocracia tem repugnância a qualquer tipo de mudança porque poderia provocar mudanças na própria burocracia e questionar a carreira dos funcionários. Todos desejam que não mude nada. Ora, a burocracia vaticana adquiriu uma força inaudita durante o pontificado de João Paulo II que não manifestou nenhum desejo de mudar qualquer coisa, a não ser acrescentar novos serviços burocráticos.
Há no povo cristão, em todos os níveis, uma aspiração a uma descentralização do poder romano. Porém, é justamente essa reforma que a Cúria vai impedir por todos os meios à sua disposição. Porque seria para ela uma perda de poder e uma supressão de empregos.
No entanto, o desafio está aí e não vai desaparecer. O sistema burocrático atual impede a evangelização dos povos e desestimula as Igrejas locais. Provocou a saída de milhões de católicos, sobretudo na Europa e na América Latina. Somente o Evangelho de Jesus Cristo pode converter.

6. A Igreja e o mundo
O Concílio Vaticano II proclamou que a Igreja está a serviço do mundo e não é um fim em si mesma. Sua finalidade é a salvação de todos os povos, da humanidade inteira. Ele reconhece a autonomia do mundo e reconhece que já não é a Igreja que dirige o mundo, como nos tempos da cristandade. Na Gaudium et Spes se renuncia ao projeto de cristandade. No entanto, as palavras dizem uma coisa e a realidade é diferente. Na prática, grande parte da Igreja age como se ainda houvesse ou como se se pudesse refazer uma nova cristandade semelhante àquela que havia na primeira parte do século XX.
Quando se fez a separação da Igreja e do Estado no Brasil os bispos não seguiram as recomendações do padre Júlio Maria, mas elaboraram um programa de reconquista do poder perdido, aproveitando as estruturas da sociedade republicana, de tal modo que a Igreja pudesse, na prática, refazer uma cristandade. Adotaram como prioridade a estratégia de sempre: evangelizar por meio das crianças e das instituições de educação. De fato, em pouco mais de 50 anos e sob a batuta do Cardeal Leme, grande admirador da nova cristandade da Europa, a Igreja reconstituiu no Brasil um grande poder. Diziam que 80% das elites brasileiras tinham sido educadas em colégios católicos. De novo, a Igreja tinha uma fachada impressionante. Houve, de novo, um entrosamento entre a Igreja e o Estado. A classe dirigente sentia que precisava da Igreja para manter o povo na submissão, e não poupava os favores e até os privilégios, dos quais foram beneficiárias as instituições católicas.
Quase todos os países latino-americanos tiveram uma evolução semelhante. O modelo era o Estado de Bem-estar da Europa Ocidental, ou seja, um capitalismo limitado por uma legislação social protetora dos trabalhadores e a conservação dos valores éticos tradicionais, sobretudo na família. É verdade que havia uma diferença no campo. Essa nova cristandade não questionou a estrutura do campo e os camponeses permaneceram ignorados e sem influência na vida das nações. O plano da CEPAL combinava com esse modelo porque impedia que o grande capital mundial tomasse conta da economia nacional, embora já tivesse realizado algumas entradas. Tudo parecia estar em paz. Os acordos entre os bispos e Juscelino Kubitschek eram o símbolo das harmoniosas relações dentro de uma neocristandade de fato, em que oficialmente a Igreja não tinha poder político, mas o tinha na realidade, graças a relações cordiais entre o poder religioso e o poder civil, nacional, estadual ou municipal.
Vieram os regimes militares. Salvo no Chile, onde Pinochet introduziu o novo modelo de globalização neoliberal desde os anos 70, os outros governos militares não mudaram basicamente a estrutura da sociedade. No Brasil, a Igreja assumiu a defesa das liberdades civis e dos direitos dos cidadãos, com um certo êxito. Pois, se comparamos os países, a repressão foi muito menor do que na Argentina ou no Chile ou nos países da América Central. Mas não houve muito conflito com relação à estrutura social e econômica. Na prática, os governos militares, salvo no Chile, permaneciam de alguma maneira fieis à concepção social da doutrina social da Igreja, prolongando a fase anterior. Praticavam um nacionalismo que os protegia contra a contaminação pelo modelo neoliberal. Os governos militares concordavam com a doutrina social da Igreja globalmente tomada. Por isso, os episcopados que colaboraram com os governos militares invocavam esse argumento.
Depois dos regimes militares, muitos, entre eles o clero e o episcopado, pensaram que se ia voltar ao sistema anterior, tão harmonioso, de relações pacíficas em que a doutrina social poderia fornecer a ideologia de regimes de Bem-estar social. Como novidade, o Estado de Bem-estar poderia inclusive integrar outros setores da população, por exemplo, os camponeses. Achavam que tinha chegado o tempo da reforma agrária. Um olhar sobre o Chile podia ter despertado mais desconfiança. Pois, no Chile, a democratização manteve o modelo neoliberal sem questionamento real, e a Igreja ficou calada: o partido democrata cristão era o governo e ficou responsável pela continuidade do modelo neoliberal.
Entrou o novo modelo de sociedade que se chama globalização, ou neoliberalismo – não importam os nomes. Tudo isso aconteceu na década dos 90, a “década vergonhosa” depois da “década perdida” dos 80. Os países latino-americanos abriram-se para o modelo neoliberal e integraram-se no império do neocapitalismo das grandes multinacionais. Tudo isso é bem conhecido.
O que tinha acontecido no Primeiro Mundo desde os anos 70 e, sobretudo, nos anos 80, entrou na América Latina nos anos 90 (no Chile nos anos 70), sem efeitos sensíveis sobre a relação Igreja-mundo.
Sob as aparências democráticas, o poder foi transferido dos Estados para os grandes complexos financeiros e as multinacionais. Os governos ainda se proclamam fiéis à doutrina social da Igreja, mas o novo poder econômico mundial ignora completamente essa doutrina. Seus critérios são diferentes. Entre o projeto da Igreja e o projeto do grande capital não há mais contato. O modelo econômico invoca a autoridade da ciência. E contra a ciência não se pode fazer nada.
Isto significa que a doutrina social da Igreja perdeu toda sua força. Ela se tornou irrelevante, porque ineficaz, sem efeito real na sociedade. É como se não existisse.
Por isso, estamos numa situação nova: uma Igreja do silêncio no meio de uma sociedade guiada pelo valor supremo do dinheiro em que as normas são a competitividade e o aumento do poder. Ninguém lê a doutrina social da Igreja, porque todos sabem consciente ou inconscientemente que ela perdeu toda a vigência. A Gaudium et Spes tornou-se irrelevante, sem conteúdo real, porque não tem aplicação.
Então a Igreja deve expressar seu testemunho de outra maneira. Hoje em dia, publicar documentos ou fazer discursos é irrelevante. Ninguém lê esses documentos, proclamações, apelos e assim por diante. Para o FMI, isso é irrelevante. O mundo atual precisa receber mensagens mais concretas, mas fortes, que consigam mobilizar a mídia e despertar a atenção e a emoção das massas.
O que faz um testemunho hoje em dia não são as palavras, mas os gestos. O gesto de Daniel que se nega a adorar a estátua de ouro. Onde está a estátua de ouro? Está em Davos, no clube de Paris, no FMI, na OMC. Está nas multinacionais. Os efeitos são inumeráveis: mercantilização do trabalho, redução do trabalhador a escravo da empresa, exclusão social da metade da população, favelização das grandes cidades e assim por diante. Não são pequenos escândalos isolados, mas fatos imensos. No entanto, esses fatos dizem respeito a seres humanos.
O que se espera são ações proféticas de grande visibilidade que manifestem a palavra de Deus na humanidade, de modo que ela possa, de fato, atingir multidões. Um exemplo pode iluminar essa necessidade. Quando o bispo de Barra, Dom Luís Flávio Cáppio, faz a greve de fome para chamar a atenção sobre as mentiras e as injustiças do projeto de transferência das águas do Rio São Francisco, toda a mídia comunicou a notícia e essa simples ação conseguiu provocar um debate na opinião pública nacional, suspender, e possivelmente para sempre, o projeto. Se a CNBB tivesse publicado um documento ninguém teria tomado conhecimento.
Nos tempos dos regimes militares houve muitos atos proféticos semelhantes, por exemplo, por parte de bispos de grande personalidade, no Brasil, no Chile e em muitos países. A morte de Dom Oscar Romero foi um sinal extraordinário. Naquele tempo os sinais destinavam-se aos povos dominados por ditadores militares.
Hoje em dia, o problema não são mais os militares. Pelo contrário, há militares que podem voltar à tradição nacionalista muito forte na história latino-americana. O inimigo é o sistema econômico ditatorial mundial centrado nos países do Primeiro Mundo.
Desde a entrada do novo sistema de comunicação na Igreja, toda a atenção da mídia foi orientada para a pessoa do Papa João Paulo II, que monopolizou o poder das imagens, porque era o único católico conhecido pela mídia. O Papa tinha o dom da comunicação e consciente ou inconscientemente queria ser a única estrela. O Papa conseguiu dar à Igreja uma visibilidade muito expressiva. Porém, globalmente, sua mensagem estava orientada e de modo bastante unilateral. Não era possível que uma só pessoa concentrasse em si mesma toda a missão de testemunho da Igreja.
A neocristandade criada depois da Revolução Francesa suscitou a criação de muitas obras católicas. Estas conseguiram manter no seio da Igreja os antigos camponeses de cultura rural tradicional. Não conseguiram integrar os operários, nem os intelectuais. Hoje em dia, também aparecem muitas obras “católicas”. Elas têm suas vantagens e seus efeitos positivos.
As obras católicas já não são sinais fortes no mundo de hoje. Antes, parecem ser ilhas, refúgios, entidades que permanecem desconhecidas ao resto do mundo. Servem para os cristãos tradicionais, mas não constituem um anúncio do Evangelho para a grande massa. Não existe mais nem sequer uma massa de camponeses de cultura tradicional. Não faltam casos em que a mensagem difundida por essas obras é que “a Igreja é rica”.
Além disso, elas fazem com que não haja presença católica nas instituições e na sociedade civil. Elas consomem as energias dos católicos mais preparados. Quem vai dar testemunho no meio do mundo? Em lugar de serem enviados como missionários, os católicos vivem juntos numa sociedade paralela sem contato com a grande sociedade. Se a Igreja continuar reservando para si mesma as melhores forças dos religiosos e dos leigos, quem estará presente e quem dará testemunho nas empresas, nos conjuntos habitacionais, nas favelas, nas universidades, nos colégios e assim por diante?
Hoje em dia existem milhares de associações e organizações de luta contra a sociedade neoliberal. Há espaço para os católicos. Pois em todos esses movimentos há necessidade de uma ideologia, de projetos concretos e de dirigentes honestos. Há espaço para que os católicos se manifestem como os servidores mais desinteressados, mais dedicados, mais honestos. Podem ser o sal da terra, a luz que na montanha atrai os olhares.
As exortações oficiais dizem que os leigos devem dar testemunho no mundo, mas como podem fazê-lo, se são mobilizados a serviço das instituições católicas? A Igreja prende muitas pessoas que poderiam estar no mundo. Há uma contradição entre o discurso oficial sobre os leigos e a prática institucional que não se interessa pelo mundo. A hierarquia deveria tomar uma atitude mais clara e dar orientações não contraditórias.
O desafio dos cristãos no mundo é hoje muito mais difícil do que antes. Pois o sistema é muito forte, muito autoritário. Dentro das empresas a vigilância é total. Ninguém pode contestar, ninguém pode protestar, ninguém pode criticar. Quem não se submete como escravo fica suspeito e pode ser eliminado. Por isso, dar testemunho cristão supõe heroísmo. Ao mesmo tempo é preciso ser prudente como as serpentes. Não existe liberdade de expressão. Ao mesmo tempo há uma campanha de lavagem cerebral para manipular as mentes e conseguir que todos se convençam que é preciso obedecer, que não há alternativa e que são muito felizes por estar na empresa. Todas as ciências humanas concorrem para submeter as mentes. A mídia, as instituições, o ambiente global da sociedade: tudo serve para desencorajar qualquer tentativa de mudança. Por isso, somente personalidades fortes, com convicção muito forte, poderão dar testemunho. A maioria ficará calada. A economia neoliberal tem a mesma força dos imperadores romanos. A pressão psicológica é forte. Na prática e de fato, a maioria cede e perde sua própria convicção.
Daí a necessidade de uma preparação e de um apoio muito forte. Sem formação muito profunda ninguém poderá abrir a boca na sociedade e todos repetirão as mentiras divulgadas pela mídia.
A paróquia não dá essa formação. Se quisermos evangelizar o mundo, precisamos tomar como prioridade a formação de leigos em todos os ambientes. Os melhores sacerdotes, os melhores religiosos e as melhores religiosas devem ser reservados para essa formação. Basta de formação para crianças. É melhor deixar paróquias sem pároco, pois leigos podem assumir quase todas as tarefas. Também uma primeira geração de leigos formados pode ser formadora. Mas isto exige 10 anos. Se não se tem a coragem de formar leigos que vão ter que lutar contra uma estrutura mais dura do que o Império Romano, porque submete as mentes, não haverá presença da Igreja no mundo, apesar de todos os textos e de todos os discursos bonitos.
Para tomar somente um exemplo, a corrupção existe em todos os níveis em todas as empresas. Este é um fato mundial e não tipicamente brasileiro. A mídia fala dos casos de corrupção na vida política, porque pode fazê-lo sem temer a repressão. Mas ninguém se atreve a denunciar os casos de corrupção nas empresas, na indústria, no comércio, no transporte, nas prisões, nas escolas, nos hospitais, nas administrações públicas, e até no futebol que agora é uma grande empresa. A regra é que todo mundo pratica corrupção. Como mudar isso? As leis não se aplicam porque todo mundo dá cobertura. Ninguém sabe de nada, ninguém viu nada nem ouviu falar de nada. Quem vai poder ser honesto e negar-se a entrar na corrupção? Precisa ser de uma energia sem par.
A vida atual é uma preocupação permanente para não perder o emprego, para quem já tem, ou para buscar um emprego para quem não tem, ou para achar biscates para sobreviver para quem já desistiu de buscar emprego. Entre todos existe uma competição. Para ter emprego é preciso agradar, bajular, e, sobretudo, ter boas relações. Nesse ambiente como manter o equilíbrio? Como viver serenamente com tais ameaças? Somente heróis.
A pressão social é tão forte que sem uma profunda mística não há maneira de se salvar. O clero não participa de tudo o que acontece na sociedade; está morando num lugar privilegiado e, por isso, não sabe o que acontece. A hierarquia não está consciente dos desafios da sociedade atual. Não adianta pensar que com o desenvolvimento essas coisas vão melhorar por si mesmas, pois no mundo desenvolvido esses problemas são mais fortes ainda.
Por isso, sem mística não se pode agir como cristão no mundo. Rahner já dizia que no século XXI a Igreja será mística ou não será. A formação paroquial não basta. Por sinal, quem vai ao culto, são justamente as pessoas que não vivem nessa pressão permanente.
Não há uma forma única de mística. Há uma grande variedade de místicas que vão surgindo. Sem uma vida em permanente presença de Deus, ninguém agüenta. Hoje em dia a mística não pode ser vivida num refúgio longe do mundo, se não quiser ser um privilégio e salvo algumas vocações muito excepcionais. Deve ser vivida na sociedade, como nos primeiros tempos, isto é, numa sociedade contrária ao Evangelho, alheia aos valores morais, numa sociedade sem amor e em que todos são rivais e todos podem ser machucados, despedidos, abandonados.
A economia neoliberal, a forma como se faz a globalização, não é inevitável. A superação deste sistema é a grande meta do século XXI. Não se fará em poucos anos. Há um despertar, mas ainda falta a participação dos cristãos nesse despertar. Os homens e as mulheres que ali estão já praticam vida evangélica. São da Igreja, mas precisam reconhecer-se, conhecer-se e mutuamente solidarizar-se em vista de mútuo apoio. Este será o papel das pequenas comunidades. Sem pequenas comunidades os heróis irão se cansar e desanimar. Com uma Igreja viva, os heróis podem multiplicar-se e mudar este mundo.
Há uma terrível contradição entre a aspiração à liberdade que nasce na revolução cultural dos anos 70 e o sistema de economia mundial que exerce uma ditadura nos corpos e nas mentes. Quem estiver na frente da luta para superar essa contradição dará um sinal. A mensagem de Jesus não será difundida a partir do poder, mas a partir de pessoas heróicas que se põem à frente do combate somente com a força e Deus.


*Este artigo foi originariamente publicado na REB-Revista Eclesiástica Brasileira 265 (Janeiro 2007) 36-58, e gentilmente cedido por seu Redator, Fr. Elói Dionísio Piva, a quem expressamos nossa gratidão.