19 de fev. de 2007

Eucaristia: comunhão ou ato de exclusão?



Caro irmão João Paulo II,

No dia 17 de abril, 5ª feira santa, o senhor divulgou a sua 14ª carta encíclica: Ecclesia de Eucharistia.
Em primeiro lugar, quero agradecer o seu testemunho de fé e de amor ao ministério. É bom saber como senhor interpreta a fé e a missão da Igreja. É baseado neste mesmo amor que gostaria de levantar algumas questões e conversar com o senhor sobre pontos de sua carta que têm provocado sofrimentos e dificuldades tanto para pessoas que se sentiram excluídas da eucaristia como para grupos ecumênicos que trabalham sobre este assunto há décadas. Sinto que, ao lhe escrever sobre isso, represento muitos cristãos que desejam servir à Igreja e viver o amor à eucaristia da melhor forma possível, mas para isso precisamos compreender alguns pressupostos básicos. Sei que não é usual um simples monge escrever ao papa. Não me comparo com religiosos como Bernardo de Claraval e Catarina de Sena que escreviam a papas. Menos ainda comparo o senhor com os papas da Idade Média. Entretanto, o Concílio Vaticano II exortava os leigos (por que não os monges?) a “manifestar aos pastores suas inquietações e desejos com aquela liberdade e confiança que convém aos filhos de Deus e irmãos em Cristo. (...) Segundo o seu conhecimento, sua competência e habilidade, têm o direito e, por vezes, até o dever de exprimir sua opinião sobre as coisas que se relacionam com o bem da Igreja” (Lumen Gentium 37).
Neste mesmo espírito, escrevo-lhe esta carta chamando-o familiarmente de “senhor” e lhe expondo algumas dúvidas que sua encíclica suscitou em mim e em muitos pastores, teólogos e leigos da nossa própria Igreja e em muitos cristãos de outras Igrejas.

1 – A Igreja vive da Eucaristia

O senhor escreve: “A Eucaristia é o próprio núcleo do mistério da Igreja” (n. 1) e cita o Concílio Vaticano II ao insistir: “A eucaristia é a fonte e o cume de toda vida cristã” (LG 11).
A Igreja vive em eucaristia permanente no sentido de que toda sua experiência de vida tem sua fonte na eucaristia e nela culmina. Há uma relação íntima entre eucaristia e a vida cotidiana, em todos os aspectos, sociais, econômicos, políticos e culturais. A eucaristia é fonte: provoca todos estes aspectos da vida da Igreja e os supõe para poder ser cume deles.
A eucaristia é fonte e cume da vida eclesial, enquanto sinal. Será que, muitas vezes, não confundimos o sinal com a realidade? Não podemos dizer que a eucaristia é o núcleo do mistério da Igreja como quem afirma que o principal do amor entre duas pessoas é o carinho corporal. Ele é a expressão máxima entre duas pessoas que se amam, mas ninguém pode viver um casamento em função do sexo. Comer é fundamental para viver. As refeições são momentos centrais do dia. Mas, não vivemos para comer. O núcleo do mistério da Igreja é a solidariedade, ágape, expressa na eucaristia. Não podemos valorizar a fonte e o cume, esquecendo o caminho, isto é, o que concretamente a eucaristia produz e o que ela supõe, exatamente para ser fonte e cume de toda a vida da Igreja. Então, não seria mais correto dizer que a Igreja vive do amor solidário, testemunho do Reino de Deus, e isso se expressa como sinal na eucaristia?
Se é assim, por que, ao falar da eucaristia, dedicamos tão pouco espaço à sua relação com a vida social e às exigências da solidariedade entre nós? Não foi isso que Paulo fez ao abordar a questão da eucaristia na carta aos coríntios? Para ele, participar de modo correto ou receber indignamente a Ceia do Senhor dependia de como os cristãos de Corinto tratavam os pobres que quando chegavam à ceia não encontravam mais o que comer (Cf. 1 Cor 11, 26 ss). A sua encíclica dedica um número (o 20) à relação entre a eucaristia e “a responsabilidade pela terra presente”. Diz que, no 4º Evangelho, o relato do lava-pés “ilustra o profundo significado do sacramento”. Lembra que Paulo chama de “indigna” a comunhão de uma comunidade que participe da Ceia em contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (Cf. 1 Cor 11). Entretanto, só toca nesta relação entre eucaristia e justiça no final do capítulo 1, como se fosse conseqüência da eucaristia e não o seu pressuposto fundamental. O que isso denota como visão de Igreja e da fé?
Os cristãos primitivos chamavam a eucaristia de “repartição do pão” e certamente isso não é por acaso. É importante lembrarmos isso aqui no Brasil neste momento em que o governo federal propõe o Fome Zero.

2 – A Missa, memorial do único sacrifício

Na carta, o senhor cita várias vezes o Concílio Vaticano II e alguns documentos do magistério recente, mas a doutrina expressa em sua encíclica é anterior ao Concílio de Trento. Paul de Clerck, professor de Liturgia do Instituto de Teologia de Paris, diz que esta encíclica se baseia na teologia eucarística do século XIII. Ora, esta foi feita para responder a problemas daquela época. O senhor a julga atual e a propõe para a Igreja toda (n. 9).
Sem dúvida, o senhor está ao par de todo o trabalho teológico, nos últimos séculos, elaborado sobre a eucaristia, com todo um cuidado de falar a linguagem da humanidade de hoje. Em nenhum momento da encíclica, o senhor leva em consideração esta pesquisa e reflexão. Ao contrário, até na linguagem, recua em relação ao Vaticano II. Em nenhum momento, fala nem rapidamente na Palavra de Deus, elemento, desde os tempos apostólicos, essencial à eucaristia. Não valoriza a Liturgia da Palavra e fala do “santo sacrifício da Missa” e não na Ceia do Senhor; chama os ministros de sacerdotes e não de presbíteros.
O senhor insiste que a eucaristia é “sacrifício em sentido próprio e não apenas simbólico ou figurativo”. Sem dúvida, usa esta expressão não para dizer que o Pai quis a morte do Filho ou para dizer que Jesus morreu para pagar a dívida da humanidade ao Pai, como era a teologia medieval (Santo Anselmo). Parece usar o termo sacrifício no sentido de “entrega da vida ao Pai”, doação total de si mesmo. E neste sentido, nós todos cremos.
Hoje, nenhuma Igreja nega que a Ceia do Senhor tem intima relação com a Cruz de Jesus. É memorial da morte de Jesus que foi relida pelas Igrejas primitivas como “sacrifício”. O termo “sacrifício” não foi usado explicitamente para a eucaristia por nenhum documento do Novo Testamento. Hoje, esta linguagem provoca dificuldade entre muitos cristãos. Por que impor a todos uma interpretação da fé como se fosse a própria fé, quando esta forma de falar não diz nada a muitos católicos e nos divide de irmãos de outras Igrejas? Não seria mais de acordo com a fé na eucaristia, seguir o conselho do papa João XXIII e afirmar a fé de modo que una os irmãos e não nos divida?
Como falar de Deus Amor que se agrada com o sacrifício e a morte do Filho para reconciliar-se com a humanidade? Para testemunhar que Deus é Paz e dom de vida, devemos substituir esta categoria do sacrifício por um equivalente que valorize a doação de Jesus aos seus, sua fidelidade ao projeto do Pai, a entrega de sua vida a Deus e como na cruz ele nos revelou uma nova face de Deus. Celebrar a Ceia é testemunhar um Deus Amor que dá a sua vida por todos os homens e mulheres, perdoa a todos e não exclui ninguém.
Conforme Paulo, não celebramos dignamente a Ceia do Senhor se mantemos privilégios e exclusões, como a das mulheres nos serviços ministeriais e dos leigos considerados “menos capazes para exercer o ministério”. O sacrifício de Jesus foi o da entrega de sua vida “pela unidade de todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52). Este sacrifício, ensina Santo Agostinho, acaba com todos os sacrifícios. A partir dele, não é mais necessário nenhum outro sacrifício.
Com muita felicidade, o senhor escreve em sua carta: “Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » inclui, para quem participa na Eucaristia o compromisso de transformar a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda eucarística » (n. 20). E cita S. Agostinho, em uma de suas homilias na noite da Páscoa: “O apóstolo diz: « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27). Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis » (...) « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade » (n. 40).

3 – Celebração eucarística e celibato

O senhor insiste em que a eucaristia é essencial e depende do sacerdote ordenado. Repete que as comunidades não podem celebrá-la sem o padre e que os cultos dominicais sem padre não substituem a eucaristia.
Os pais da Igreja ensinavam que quem faz a eucaristia é a comunidade. No Brasil, são milhares de comunidades católicas que, cada domingo, não têm padre e fazem o culto da Palavra. Por que será que todas estas comunidades não têm padre e por que algumas só recebem visita de um padre algumas vezes por ano? Não seria pelo fato do senhor não aceitar abrir mão do celibato obrigatório e ordenar como presbíteros homens casados, dignos e preparados para o ministério. E também não reconhecer a validade do ministério de padres que casaram e, com alegria, aceitariam exercer o ministério. Como monge, opto pelo celibato e, apesar de minha fragilidade pessoal, o tomo como caminho de vida. Por experiência, sei que o celibato pode ser graça de Deus na vida e no caminho espiritual. Mas, em pleno século XXI, não deveria ser deixado mais livre para os presbíteros? Sem falar que, no Ocidente, a Igreja Católica é a única das Igrejas históricas que não aceita ordenar mulheres. Por que? Nesta encíclica, o senhor ensina que a eucaristia é o mais importante dom de Deus à Igreja. O que, então, é mais importante: a eucaristia dominical assegurada por bons presbíteros ainda que casados ou manter como lei obrigatória o costume latino do celibato obrigatório?

4 – Ceia de inclusão e de amor

A encíclica liga a eucaristia à pessoa de Jesus para afirmar o seu “sacrifício” mas faz poucas referências à sua vida concreta. Não lembra como ele comeu com pecadores e com gente de má vida. E todos os autores que meditam sobre a Eucaristia insistem que não se compreende a natureza da eucaristia se não se levam a sério as refeições que Jesus tomou com sua comunidade de discípulos/as e amigos/as, ao longo da sua vida pública. “Nas refeições, Jesus se revela e revela um rosto de Deus. “Il y a là bien la revélation dirècte de Jésus dans sa simple verité...” (Jacques Guillet[1]).
Nos anos 80, a Conferência dos Bispos da Alemanha publicou um “Catecismo para Adultos” no qual ensina: “As refeições que Jesus partilha com os discípulos durante toda sua vida anunciam e antecipam a refeição do fim dos tempos (...). Ao mesmo tempo, significam que as pessoas que se consideravam perdidas, vêem-se acolhidas na comunidade. (...) As refeições de Jesus eram sinais da salvação que ele inaugurava, sinais da nova comunhão com Deus e de uma nova fraternidade entre os seres humanos”[2].
Nestas refeições cotidianas, Jesus anunciou uma nova fraternidade entre os seres humanos e significou o Reino abrindo a participação em sua mesa a todos, pobres, pecadores e gente marginalizada. Se, como dizem os bispos alemães e tantos teólogos, estas refeições são modelos para a eucaristia, então que sentido tem a disciplina eclesiástica tornar a eucaristia uma mesa fechada e excludente?
Nos séculos antigos, em Igrejas locais, verdadeiramente comunitárias e plenamente Igrejas, com um regime organizado de catecumenato e penitência, estas normas com relação às exigências para os fiéis se aproximarem da Eucaristia tinham sentido. Eram justas. O espírito não era excluir ninguém e sim preparar as pessoas pela penitência quaresmal para uma participação verdadeira e profunda. Hoje, dizer que uma pessoa divorciada não pode comungar simplesmente a exclui da Ceia do Senhor, em muitos casos, para sempre. Ao menos que se pretenda cometer a injustiça de mandá-la despachar o novo cônjuge, às vezes até com filhos e filhas.
Na sua encíclica, o senhor lembra que só pode aproximar-se da Eucaristia quem estiver “livre” de pecado grave. Mas, o que é pecado grave? Sei que estou entrando em assunto delicado e faço isso com todo o respeito ao senhor, mas por exemplo, em suas viagens pelo mundo, freqüentemente o senhor deu a comunhão a presidentes da República, casados em segundas ou terceiras núpcias, como era o caso do Collor no Brasil e do Menen na Argentina. Por que um presidente da República pode e um cristão comum não pode? Estranho isso menos do que ver pela televisão que, em plena ditadura chilena, o senhor celebrou a eucaristia no palácio presidencial e deu a comunhão ao General Pinochet que, apesar do sangue derramado dos oponentes, é casado na Igreja e é contra o divórcio. Que Deus torne a Igreja semelhante a Jesus que comeu com gente de má vida e disse: “eu vim para os pecadores e não para os justos”.
O senhor repete o que diz a declaração Dominus Jesus: reconhece como “Igrejas” as ortodoxas e chama as Igrejas evangélicas de “comunidades eclesiais”. E proíbe que católicos comunguem em celebrações eucarísticas destas igrejas “para não dar aval a ambigüidades sobre algumas verdades da fé” (n. 44). Como conciliar esta concepção de Igreja com a eclesiologia do Concilio Vaticano II? Como continuar o caminho ecumênico depois disso? Será que os tantos acordos ecumênicos já feitos entre algumas Igrejas não valem mais? Por que não foram lembrados? O que é mais importante a clareza intelectual ou a caridade e o testemunho do amor? Será que “a clareza sobre algumas verdades da fé” é mais importante do que a acolhida mútua e a unidade real vivida por cristãos que pensam diferente mas celebram com respeito e carinho o memorial do Senhor, neste mundo dividido e no qual as religiões representam forças de oposição e não de unidade?
Como argumento contrário à intercomunhão o senhor diz que a eucaristia só tem sentido quando expressa a unidade já vivida. No campo do ecumenismo, o senhor insiste na exigência de unidade já realizada, mas não exige a mesma coisa ao falar da justiça e do compromisso com a vida no plano social. Além disso, se como ensina o Vaticano II, cada Igreja local não é apenas um pedaço da Igreja e sim uma Igreja em sentido pleno, este argumento de uma unidade já realizada não poderia ser conferido neste plano das Igrejas locais? Se um determinado grupo, como, por exemplo, a comunidade de Taizé, a de Grandchamps e tantos grupos teológicos que trabalham há décadas e têm uma fé absolutamente em comum na eucaristia, por que proibi-los de comungar?
Deixo ao senhor estas perguntas e fico orando por nossa Igreja para que seja como afirmaram, um dia, os bispos da América Latina: “uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a).


Irmão Marcelo Barros, osb

[1] J. GUILLET, Jésus dans la foi des premiers disciples, Desclée de Brouwer, 1995, p.
[2] - CONFÉRENCE ÉPISCOPALE ALLEMANDE, La Foi de l’Église, Cathéchisme pour les Adultes, Paris, Ed. du Cerf, 1987, p. 334.

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