22 de fev. de 2007

A herança branca da escravidão negra


Em todo o Brasil discute-se a validade da política de quotas para minorias raciais nas universidades e outras instâncias da vida social. No mundo, organizações civis e mesmo Estados, constituídos por herdeiros de antigos escravos, exigem-se indenização pelo sofrimento de seus avós. Esta compensação não lhes trará de volta a vida dos que derramaram seu sangue no jugo da escravidão, mas, ao menos lhes possibilitará reorganizar a vida de suas famílias e seus países, até hoje prejudicados pelas conseqüências deste crime terrível. É urgente tomar consciência da atualidade deste problema. Por isso, a ONU considera o 23 de agosto, "dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e sua abolição".


A ONU fala de "lembrança do tráfico e da escravidão" como se fossem crimes do passado, mas, infelizmente, continua acontecendo em todo o mundo o tráfico escravagista. Um relatório da Câmara dos Deputados assegura: o tráfico mundial de pessoas, que inclui, em sua maioria, crianças e adolescentes, movimenta 12 milhões de dólares, o equivalente a R$ 36,468 milhões por ano. Além disso, em muitos países dos cinco continentes, 180 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham, e o fazem nas piores das condições. Uma organização humanitária inglesa põe militantes na fronteira do Sudão para comprar adolescentes, trazidos em caminhões para serem vendidos como escravos, em países vizinhos. Compra-os para libertá-los, mas, ao comprá-los, acaba legitimando o tráfico humano. No Brasil, a escravidão no campo, nas carvoarias de vários estados e em fábricas semi-clandestinas da periferia de São Paulo, continua forte e implacável.

No século XIX, a luta contra a escravidão durou 80 anos. O Brasil foi o último país do hemisfério a abolir este crime. Em alguns aspectos, aquela luta contra a escravidão nos recorda a atual dificuldade de implantar uma reforma agrária justa e ampla no país. Naquele tempo, muitos proprietários de terra estavam convencidos de que abolir a escravidão seria destruir o país e criar anarquia. Se não tivesse outro caminho, os proprietários de escravos deveriam ser indenizados pelo Estado em um processo "lento, gradual e seguro". De fato, não o foram, mas o Estado nada fez para integrar os antigos escravos na vida nacional. Os abolicionistas falavam em uma reforma agrária que integrasse a população negra como cidadãos deste país. Na realidade, quase 800 mil negros foram abandonados na mais terrível miséria. Não tinham terra, casa, emprego, previdência social ou de saúde. Nada. A sobrevivência em tais condições foi quase mais heróica do que a resistência na escravidão.

No Brasil atual, a forma mais comum de escravidão continua ligada à Terra e ao fato de que esta se encontra concentrada nas mãos de uma minoria que se acha com o direito de lucrar o que pode com a exploração do trabalho de homens que não têm como se defender ou escapar.

Em Brasília, funciona a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Reúne, além de membros do Poder Executivo e do Judiciário, integrantes de entidades representativas e organizações nacionais e internacionais da sociedade civil. Na semana passada (2a feira, 16), Nilmário Miranda, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), apresentou ao presidente Lula um relatório sobre os primeiros 18 meses do plano federal voltado para a erradicação do trabalho escravo. Só podemos ficar contentes com o fato de que, em 18 meses, 99 operações coordenadas pelo Ministério fiscalizaram 387 propriedades rurais. Foram libertados 6.465 trabalhadores e foram lavrados 3.633 autos de infração. A soma dos direitos trabalhistas pagos chegou a R$ 8,7 milhões.

Apesar dessas conquistas, há pontos que revelam a dificuldade que o Ministério enfrenta para aprovar uma lei que acabe com a impunidade de quem pratica a escravidão no campo. Parlamentares ruralistas ou ligados ao agro-negócio criam obstáculos para aprovar o projeto que prevê expropriação para fins de reforma agrária de fazendas nas quais os lavradores são escravizados. Também não aprovam a resolução que impede liberação de crédito de bancos públicos e mesmo privados a quem pratica escravidão. Como não se consegue aprovar a emenda que remete esse tipo de crime para a alçada da Polícia Federal e para o Tribunal Superior, parece que a exploração de mão de obra escrava não soa como absurdo para quem vive do agro-negócio. Há anos, um deputado, vice-presidente da Câmara, é acusado de trabalho escravo no Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão e até aqui não foi julgado nem afastado de suas funções legislativas.

Ao saber desses problemas, a gente constata o óbvio: se, de fato, for cumprida, a lei pode impedir que um proprietário escravize um lavrador ou o trate desumanamente. Mas, nenhuma lei pode obrigar um senhor a amar o seu empregado, um branco a estimar um negro ou indígena, alguém da elite a valorizar a cultura própria de um analfabeto. Só a espiritualidade, ou seja, a energia amorosa decorrente da fé pode propor e desenvolver esta atitude mais profunda de integração cultural e humana. Por isso, é fundamental ligar fé e vida, falar de Deus de modo que, ou se compreende que está se falando da energia amorosa divina que se manifesta no interior de cada um de nós ou Deus não existe.

Nunca pense em Deus como algo que existe acima dos humanos, um espírito oposto à matéria. Tradições religiosas, como o cristianismo, ensinaram que Deus é transcendente ao universo, como Pai e criador de todos. Isso é uma parábola. Deus é mistério e ninguém pode defini-lo. O que sabemos é que está no regaço da terra, na voz inquietante do vento, na alegria dos pássaros que voam. Manifesta-se na união sexual de duas pessoas que se amam, como também na amizade e na beleza das obras de arte.

Paul Tillich, um dos maiores teólogos evangélicos do século XX, dizia: "O nome da profundidade e do que está no mais íntimo de todo ser é Deus. Esta profundidade é o próprio sentido da palavra Deus. Se vocês virem o que há de mais importante e profundo na cultura e na vida de alguém ou de um povo, vocês estão tocando no mistério da presença de Deus"[1].

Por isso, recordar a memória do tráfico e da escravidão, como também saber que este crime continua a ser praticado no mundo atual e, às vezes, não longe de nós, nos interpela a uma ação solidária para acabar com isso. A crueldade deste crime nos atinge a todos. Enquanto existir no mundo pessoas escravizadas, nós temos algo a ver com isso. E poderíamos aplicar a isso o que, há dois séculos, dizia Pascal: "Jesus Cristo continua na cruz, sofrendo sua paixão".


[1] - PAUL TILLICH, The Schaking of Fundations, p. 63, citado por DIEUDONNÉ DUFRASNE, Célébrer les événements salutaires d’autrefois ou d’aujourd’hui?, in Paroisse et Liturgie 1969/ 3, p. 221.


* Irmão Marcelo Barros, Monge beneditino

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